As desordens se espalhavam por toda Paris. Resenha do livro de Maurice Grimaud, En Mai fais ce quil te plait
Era quase o Vietnã. Ou uma batalha napoleônica seguida segundo planos minuciosos dos grandes estrategistas. Sobre a parede, não as tropas francesas em Austerlitz marcadas por bandeirinhas no mapa da Europa, mas o mapa de Paris, com todas as suas ruas, pontos e praças rigorosamente demarcadas. Comandando as “operações militares”, o Prefet de Police de Paris, Maurice Grimaud, naquele maio violento de 1968 que ameaçava submergir a França no caos. Bandeiras negras dos anarquistas envolviam, irreverentes, as estátuas dos philosophes que tinham detonado a Revolução de 1789. Bandeiras vermelhas em cortejo desfraldadas ao vento saudavam a foice e o martelo enquanto os gritos ritmados dos jovens estudantes ecoavam em coros dissonantes, dando vivas a Lenin, a Trotsky, a Stalin, a Che Guevara ou como diria um jovem da Politécnica: “A gente dá viva, não importa a quem”. Enquanto isso, reforços para a “revolução” que destruiria o Estado francês e suas injustiças sociais chegavam com os ginasianos, de 12 a 18 anos de idade, fazendo um policial perguntar: “Será que logo vão convocar também as tropas do jardim da infância e do pré-maternal”?
Como em toda batalha, havia os heróis e os covardes. Estes se disfarçavam, com braçadeiras da Cruz Vermelha, para fugir do policial: eram os fuyards. Os heróis dividiam-se nas duas hostes inimigas: havia os jovens corajosos, que erguiam barreiras de carros capotados e incendiados contra o gás lacrimogênio da polícia, e havia os policiais, que não revidavam com a violência aos ataques desiguais de moços e moças que cozinhavam o pixe das ruas para jogar paralelepípedos na cabeça de policiais desprovidos de proteção de dez a dezessete horas a fio.
Os sindicatos, em grande parte controlados pelo Partido Comunista Francês, não aderiam ao que chamavam de “bagunça” dos jovens: quando um “Comitê Revolucionário” da União Nacional dos Estudantes Franceses quis invadir a fábrica da Renault, os operários lhes opuseram uma resistência feroz, em certos pontos mais temível do que a da própria polícia, chamando a atenção para os mocassins caros e para os carros de luxo em que se fazia aquela revolução em que o operariado não depositava a mínima confiança. O proletariado estava muito mais interessado em promover greve após greve, apesar de elas serem proibidas expressamente por lei – as greves eram um golpe a mais na economia vacilante do Estado, pois uma delas apenas deu prejuízos capazes de cobrir todo o orçamento do governo para pagamento dos policiais.
Com o início de incêndio da Bolsa de Valores, até os bombeiros, que vêm apagar as chamas que ameaçam alastrar-se por prédios vizinhos, são atacados com coquetéis Molotov e projéteis de todas as espécies, pelos estudantes e seus simpatizantes. A imprensa, e a população, a princípio francamente favoráveis aos estudantes e suas reivindicações por uma sociedade justa, que elimine os privilégios de uma minoria de parasitas riquíssimos, não tardam em alarmar-se com a proporção crescente dos conflitos de rua: o esquerdista Le Monde, sempre tão severo em dar notas de comportamento ao Brasil, não hesita em evocar a possibilidade de uma devastadora guerre civile que colocaria a França em dois campos inconciliavelmente opostos.
O governo está ausente: o General De Gaulle, o Júpiter daquele Olimpo repentinamente sacudido pelas reivindicações dos dionisíacos, está na Romênia, onde a população oprimida por uma ditadura férrea o saúda como o arauto de libertação e como o defensor da independência dos países satélites da Rússia soviética, assim como ele denunciara claramente os propósitos hegemônicos dos Estados Unidos. M. Pompidou, também está de férias. Volta risonho e corado, descansado, minimizando a princípio as proporções da rebelião estudantil de maio. A polícia pondera: deverá pedir o apoio do Exército para debelar a anarquia? Mas os tanques tinham falhado na revolta de Praga: seu uso não seria exagerado? Afinal, a França não era uma republiquinha qualquer de là-bas, da América Latina, distante e subdesenvolvida... Além disso, a extrema direita contrabalançava as incursões de elementos estranhos ao meio estudantil, ameaçando entrar na escalada de terrorismo e aprofundando as possibilidades de uma autêntica guerra civil.
Quem comanda as operações com habilidade e estratégia insuperáveis é o autor do livro, o prefet de police Maurice Grimaud, uma espécie de Encarregado da Segurança de Paris, cargo sem equivalente em outras cidades francesas e sem tradução exata em português. Aliás, o próprio prefet de police é intraduzível: cita o dramaturgo francês Molière, o romancista Stendhal, o fantasma do pai de Hamlet, o nobre socialista utópico Saint-Simon em suas meditações. E, características inauditas: mistura-se com o povo, com seus subordinados e com os próprios estudantes, desarmado, a pé, além de criticar a pompa e a centralização excessiva do governo e dar grande parte de razão aos conceitos dos jovens por justiça, liberdade, igualdade de direitos para todos. Medita inclusive no paradoxo de enquanto a polícia luta com escudos e nos gás lacrimogênio contra paralelepípedos e coquetéis Molotov, algum dedo frio, , insensível poderá a qualquer momento apertar o botão que detona ogivas nucleares capazes de destruir totalmente a Europa Ocidental, Moscou ou Nova York, à vontade...
Duvida que haja uma “organização internacional” (a CIA? a KGB? Washington ou Moscou via Praga?) por trás das bagarres de maio: elas foram espontâneas, derivam de uma injusta distribuição de rendas e atribuições na própria estrutura, fortemente centralizada e autocrática, do Estado francês. Revolta-se, porém, contra o espezinhamento da memória nacional mais sagrada: o pisoteamento do Monumento ao Soldado Desconhecido, no Arco do Triunfo, no fim da avenida dos Champs Elysées, onde se guarda o pó reverencial do grande mártir da Resistência francesa ao invasor nazista: Jean Moulin – sob torturas atrozes dos alemães no QG da Gestapo, ele preferira esfacelar o crânio contra a parede a revelar o nome de seus companheiros de luta contra o exército estrangeiro de ocupação.
Depois de mais de um mês: chega! É tempo de férias, as universidades vão fechar, as praias ensolaradas da Côte d’Azur e os esportes de inverno nos Alpes falam mais alto. Da trégua se passa, quase que inconscientemente, para a paz, numa guerra sem mortos. Esvazia-se a Universidade de Sorbonne e o espetáculo é patético: em vez de células de bravura encontram-se jovens que não são estudantes, drogados e ratos saboreando o lixo que se acumulou pela falta de higiene e de faxineiros durante mais de um mês de “liberação” do território universitário. Grimaud cita ironicamente o Puntila de Brecht: a sociedade tem dois rostos – a princípio é generosa, impulsiva, radical, depois de passado o estado de embriaguez volta a ordenar o retorno à escola, à fábrica, à “normalidade”. Contados os feridos, o saldo do próximo fim de semana de desastres do trânsito supera facilmente aquela “batalha” campal. Estava debelada a “tirania das ruas” que ameaçava a liberdade dos demais em prol de uma minoria, embora jovem e embora certa em muitas de suas reivindicações. Os líderes dos “rebeldes” confessam, em autocrítica maoísta, que a violência só dá votos para o governo: afinal, o plebiscito solicitado pelo general está próximo e dele o Deus Supremo da grandeur francesa sairá derrotado. Consequência das revoltas de Maio? Grimaud recorre a paralelos históricos para duvidar disso: as revoltas de 1848 derrubaram a monarquia, mas De Gaulle terá caído por suas ideias serem arcaicas no contexto atual mundial ou porque seu orgulho não se satisfez com a votação que não lhe dava plenos poderes para dirigir a França como Soberano supremo de uma democracia nem mesmo relativa? Em vez de “depois de mim, o dilúvio”, ao contrário, depois do dilúvio é que sobreveio a tranquilidade inesperada, serenados os ânimos de forma surpreendente tal a escalada de violência e vandalismo. E, generoso, o prefet de police dá a receita mágica para se conseguir tais milagres: a tolerância policial para com as reivindicações jovens, esse é o ingrediente-chave da vitória. Para bom entendedor, meia palavra basta... Ele argumenta, com fatos, que a Souplesse, a flexibilidade, a instantaneidade de reflexos, a resistência estoica às provocações, o diálogo sereno impedem a fogueira do descontentamento de crescer.
O título do livro, como muitas reflexões sobre a inacessibilidade olímpica di General De Gaulle, é irônico em sua edição original francesa: En Mai, fais ce qu’il te plait. É um adágio popular que se segue a outro que aconselha aproximadamente: Um Avril ne te découvre d’um seul fil, ou, em português, em abril não de descubras de um só fio (porque o inverno está ainda presente com seu frio cortante). Em maio, ao contrário, faz o que te der vontade... Para o leitor atento fica a lição inesquecível: sem o saber o prefet de police foi quem atingiu o objetivo dos jovens irados: colocou “l’imagination au pouvoir”, pôs a imaginação no poder, a imaginação que inclui sempre flexibilidade, tolerância, compreensão, pois só a imaginação nos pode levar a nos colocar no lugar dos pretensos inimigos e suas legítimas pretensões, só ela, portanto, pode se sobrepor ao poder tirânico, venha ele das autoridades, venha ele dos contestadores, novos opressores. A força não é o argumento dos fortes, mas dos fracos: todo totalitarismo só se mantém à custa do terror instalado como estrutura do próprio governo (Uganda, União Soviética, África do Sul etc. etc. etc.). A verdadeira arma da vitória é a tolerância, é o diálogo, é a vivência da verdade alheia. Ou como diria uma teórica política cara aos insurrectos que a conhecessem por acaso em seus escritos, Rosa Luxemburgo: “a nossa liberdade termina onde começa a do próximo”, sem o próximo caímos no abismo autista do Partido único, monolítico e, no fundo, suicida. Não por caso Maio é, na Europa, o mês da primavera: é também o mês da esperança, da volta do sol e da luz, palavra que no latim vem da mesma raiz de lucidez.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
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os despotismos e os totalitarismos},
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doi = {10.5281/zenodo.8368806},
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abstract = {Jornal da Tarde, 1978/05/06. Aguardando revisão.}
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