Para que ler Camus? A grandeza crescente do mais vivo pensador de nossa época

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1980/02/23. Aguardando revisão.

Para que ler Camus hoje, em 1980, no Brasil?

Ele não envelheceu irremediavelmente com toda a sua obra de teatro, de romancista e de combatente político? A rapidez das transformações do mundo tecnológico interdependente de hoje não o tornaram obsoleto seja como literato seja como ensaísta político?

Não.

Qualquer revisão crítica que se fizer dos escritos de Albert Camus, Prêmio Nobel de Literatura em 1957, revelará meridianamente que ele é, depois de sua morte, o pensador mais vivo da nossa época.

Privilégio de poucos, Albert Camus é um nome que só cresce, à medida que as décadas passam. No século XX, são raríssimos os nomes que partilham essa grandeza: Rosa Luxemburgo, Hannah Arendt, Raymond Aron, Norman Mailer, Wilhelm Reich, Jung, Freud e, até certo ponto, Marx. Por que esses e não outros nomes continuam a ser vitalmente pertinentes para os que se debatem com os problemas deste final de século, se eles não podiam prever a escassez de petróleo, o incidente nuclear de Three Mile Island, a destruição da ecologia, o Vietnã, o Cambodge e Cuba, o Afeganistão e a criação de uma “aldeia global” eletrônica reconhecida com a clarividência de uma McLuhan na parte profética de suas descobertas?

Porque eles se inserem todos naquela dimensão galáctica de que falava Einstein ao dizer que nela o Tempo cessa de existir. Da mesma forma, precedendo as conclusões da física contemporânea – de Einstein a Heisenberg, de Oppenheimer aos “buracos negros” e às pulsações dos “quasars” -, as grandes filosofias religiosas da Índia também afirmaram sempre, a priori, que o Tempo é maya, mera ilusão dos seres humanos mortais. As grandes criações do intelecto e da sensibilidade humanos – a Arte, a Literatura, a Música, a Filosofia, a Política etc. – participam dessa abolição do Tempo. Platão e uma estátua de Praxíteles ou Fídias, o romance Guerra e Paz de Tolstoi e as peças e sonetos de Shakespeare permanecem tão válidos hoje quanto a música de Mozart e Bach e Lao Tsé, Buda, Gandhi e as pinturas rupestres da Idade da Pedra.

Albert Camus desafia o Tempo, não envelhece nunca, enquanto o ser humano tiver dignidade, honra, consciência, respeito pelo próximo e amor incondicional à Verdade, em luta eterna contra todas as expressões do totalitarismo que impeçam os homens e mulheres de serem livres na escala política, social, erótica, artística, religiosa, racial.

Como diz a palavra latina, “revisão” quer dizer “olhar para trás, visitar novamente, fazer um novo exame, proceder a uma nova leitura”. Ora, cada nova leitura dos escritos de Camus só verifica e aprofunda sua grandeza independente de modismos como a haute ornao de Paris. Sartre já está tão fora de moda quanto as saias curtas de Christian Dior ou a hoje decadente mania das discotecas. Mas aqui se trata de Camus e não de outros, infinitamente menores, apequenados com o passar do tempo e já hors de saison, fora da estação do ano.

Literariamente, Albert Camus trouxe à literatura francesa (e à literatura ocidental como um todo) o primeiro “Não!”, uma bomba colocada diante da porta de todos os franceses mornos, que aceitaram passivamente a monstruosa ocupação alemã pelas tropas nazistas de Hitler em 1940. A literatura, portanto, está indissoluvelmente ligada à moral, a ética se sobrepondo à estética e lhe dando um sopro de vida flamejante. De fato, L’Etranger, publicado em 1942, portanto dois anos depois que 2 milhões de soldados franceses depuseram suas armas e permitiram que os tanques hitleristas desfilassem na avenida Champs Elysées, sob o Arco do Triunfo. L’Etranger é o primeiro grande romance surgido debaixo das botas de Himmler, Goebbels e de outros carrascos do mundo na França ocupada com mão de ferro pelo inimigo alemão. Camus, como militante ativo e destemido do movimento de Resistência Francesa ao domínio militar selvagem nazista, é a própria voz da França eterna, humilhada na sua honra de Nação superiormente civilizada e pisoteada em seu brio de povo que sonhou, em 1789, com a Igualdade, a Liberdade e a Fraternidade, entre todo os países e todos os cidadãos. Se De Gaulle representou a coragem do patriota que de Londres estimulava seus compatriotas a não compactuarem com a tristeza aviltante de se renderem, submissos, baixando a cabeça diante do invasor, Camus foi o De Gaulle altivo e militante na trincheira literária e na Resistência ativa.

Qual é o grande personagem de L’Etranger? A França. Camus utiliza um artifício ou melhor uma metáfora esplêndida para ludibriar a Censura dos ocupantes nazistas muito semelhante à Censura que o Brasil sofreu durante a ocupação da inteligência e da consciência brasileira durante a ocupação do Ministério da Justiça por dois carrascos da liberdade: Buzaid e Falcão. Camus inventa um personagem que em primeiro lugar não vive na França, nem se situa forçosamente nos dias de hoje: Meursault mora na distante Argélia, país onde Camus nasceu e que sempre amou entranhadamente. Meursault simboliza a França invadida: age mecanicamente, sua vida não tem nem uma chama interior nem um sentido maior que a justifique. Mas, no interior da sua mente, Meursault vibra intensamente com uma série de sonhos e ambições frustradas, mas tão mais reais do que a vida de robô que ele é forçado a levar. Como assinalou a unanimidade dos críticos, franceses ou estrangeiros, toda a criação literária, de dramaturgia ou ideológica, de Camus está sob o emblema inarredável do Sol, com maiúscula. O sol cambiante, mas sempre presente desde o amanhecer até o crepúsculo na sua Argélia natal é a antítese do sol aguado, desfibrado, da Europa gélida e demasiado cerebral. O sol, como para a Grécia Antiga, é o princípio, o meio e o fim da vida humana: sem o sol o homem perece, sem luz, sem calor, sem tônus vital.

No romance, o sol é um personagem sempre atuante. Nas palavras lúcidas de Roland Barthes, o sol é o fator ambiental que dá o tom aos três momentos fundamentais do livro. No início, quando Meursault acompanha, a contragosto, o enterro da própria mãe, é um sol causticante, que extrai dos homens o suor e o cansaço. Na praia, é um sol inclemente, impassível diante das paixões humanas: transforma o mar numa espada líquida e como que endurecida e o gesto humano se torna o movimento da mão que assassina o próximo. No final, quando Meursault vai a julgamento perante os tribunais pelo crime que não quis cometer, mas cometeu, o sol é um sol que transforma tudo em poeira: os arquivos, a corte judicial, os rostos das testemunhas, do advogado de defesa, do promotor, do próprio réu indiferente e impassível, Meursault. Há uma razão para essa insistência nas imagens do Sol. O Sol é a natureza, milenarmente indiferente a tudo que os seres humanos possam sentir de êxtase ou desespero em suas vidas breves e insignificantes. Mas o Sol é também a Esperança, ou como se diz de acordo com o chavão político: a luz no fim do túnel de todas as ditaduras, de Direita ou de Esquerda. Imediatamente, o romance de Camus teve um sucesso fulminante em Paris e em toda a França. Ano após ano, sua criação literária continua a desafiar o Tempo e a causar uma diminuição crescente de toda a parte da Esquerda francesa, liderada por Sartre, depois de sua ruptura com Camus, que colava na obra camusiana rótulos prontos de antemão e que servirão enquanto o totalitarismo de Esquerda vigorar: é um “alienado”, um “vendido à CIA” um “lacaio do imperialismo norte-americano”, um “anticomunista veemente”.

Em janeiro de 1965 o hebdomadário parisiense Arts indaga, intrigado: “Por que Camus continua a despertar o agrado e a simpatia das jovens gerações?” Poucos meses depois, um órgão da Esquerda lúcida, portanto pensante e autocrítica, Le Nouvel Observateur, muda a frase para uma hipotética interrogação negativa: “Camus já está ultrapassado?” Em 1970 Le Figaro Littéraire salomonicamente dedica uma capa a Camus. Nesses últimos dez anos, o saldo dos “prós” só tem subido vertiginosamente e os “contras” têm decrescido assustadoramente.

Literariamente, Albert Camus se assemelha em um ponto ao grande escritor italiano Cesare Pavese (que o Brasil, para seu infortúnio e empobrecimento, ainda desconhece a não ser nas camadas da elite cultural nacional): ambos têm como matriz literária a lição do romance norte-americano. Melville, Steinbeck, Dos Passos, influenciam marcadamente os dois escritores, o francês nascido na Argélia e o italiano. O melhor amigo de Camus durante a sua vida e seu companheiro de ideais, Jean Grenier, revela que havia dois escritores que Camus adorava acima de todos os outros: Melville, autor de Moby Dick, aquela terrível epopeia marítima do Captain Ahab procurando a baleia assassina como única tarefa de sua vida, e Simone Weil, a judia que se converteu ao catolicismo e que em Londres escreveu sobre a experiência, que lhe deixou cicatrizes para o resto da vida, de viver, como operária voluntária, junto dos operários e compartilhar da não-vida deles, presos ao relógio de ponto, aos salários de fome, ao trabalho maquinal, massacrante e totalmente desumanizante.

Tanto Simone Weil quanto Herman Melville estão sempre presentes na obra literária, teatral ou ideológica de Camus: Melville o incita, sem esmorecimento, a lutar contra o totalitarismo de qualquer nuance política, qualquer sectarismo dogmático, marxista ou nazista, de Hitler ou de Stalin, de Franco, Mussolini ou Lênin. Weil não lhe dá a mínima trégua no combate à injustiça e é sob a égide dessa batalha eterna em dois campos ao mesmo tempo – da Justiça e da Liberdade – que ele escreverá e lutará: contra a violência, política ou social. Sem qualquer contato documentável com as teorias de Gandhi do ahimsa, a não-violência, Camus condena a violência, o assassinato “justificado” pelos ideais políticos. Mais ainda: ele ousa recusar a fórmula marxista-leninista de que “todos os meios são bons, lícitos e justos quando se quer atingir um fim maior”. Não, não há um fim justo nem libertador se os meios não forem éticos também. Como em seu outro romance alegórico, La Peste, não basta ficarmos passivos diante da Peste (neste caso o nazismo e as torturas da Gestapo, a ocupação de países subjugados pela Alemanha como a Holanda, a Dinamarca, a França, a Noruega etc. etc.). É preciso combater a peste antes que ela nos devore a todos. Que mensagem mais atual poderia haver para um país como o Brasil, que absolveu torpemente o nazista Gustav Franz Wagner? Para um país como a Alemanha Ocidental de hoje onde grupos de nazistas se reorganizam em Nuremberg e desfilam em Frankfurt?

Deixando de lado um livro lírico de amor à terra, ao mar, ao sol, ao ser humano como Noces ou L’Été (publicados recentemente no Brasil pela Editora Nova Fronteira), deixando de lado também a influência do cinema na prosa toda visual, concisa, feita de imagens, sons e cores e com um tom pretensamente impessoal de uma câmara que só retrata o que vê, raízes do seu estilo de narrador, o Camus mais atual, inacreditavelmente atual nesta revisão ou neste reencontro é o outro Camus, indissociável do literário: o desassombrado escritor e editorialista político. Enquanto em 1949 Sartre e outros representantes da intelectualidade francesa se recusavam ostensivamente a assinar uma petição em prol da libertação dos prisioneiros russos confinados nos gélidos campos de concentração soviéticos (o Gulag era um termo que não existia ainda no Ocidente, antes do aparecimento de Solzhenitsyn), pois isso “iria fortalecer apenas o imperialismo norte-americano”, Camus em seu diários comentários no jornal que fundou, Combat, descobre como que o segredo de ser eterno, afirmando verdades que nunca perdem nem perderão a sua atualidade. Por exemplo, o Brasil acabou de sair das trevas da ditatura mais repressiva que tivemos desde o Estado Novo de Vargas, a ditatura totalmente repressiva do general Médici e seus seguidores e sequazes. Eis algumas das coisas que Camus ousa destemidamente dizer, alto e bom som, imediatamente depois da libertação da França da ditadura da monstruosa ocupação nazista: La Nuit de la Vérité (Combat, 25 de agosto de 1944) A Noite da Verdade.

“Enquanto as balas da liberdade continuam sibilando na cidade, os canhões da liberdade atravessam as portas de Paris, no meio de gritos e de flores. Na mais bela e na mais quente noite de agosto, o céu de Paris mistura às estrelas de sempre as balas que lavram pela terra, a fumaça dos incêndios e os foguetes multicores da alegria popular. Nesta noite sem igual terminam quatro anos de uma história monstruosa e de uma luta indizível na qual a França estava em luta com a sua vergonha e seu furor.

Todos aqueles que nunca desesperaram de si mesmos nem do seu país, encontra, sob este céu, sua recompensa. Esta noite vale certamente um mundo inteiro: é a noite da verdade, verdade armada e combativa, a verdade provida de força depois de ter sido durante tão longo tempo a verdade de mãos vazias e de peito descoberto. Ela está em toda parte nesta noite em que o povo e os canhões retumbam juntos. Ela é a voz desse mesmo povo e desses canhões, tem o rosto triunfante e exausto dos que combateram nas ruas, debaixo das cutiladas e do suor. Sim, é realmente a noite da verdade e da única verdade que seja válida, aquela que consente a luta e a vitória.

Quatro anos atrás, alguns homens se ergueram no meio dos escombros e do desespero e afirmaram com tranquilidade que nada se perdera. Disseram que era preciso continuar e que as forças do bem podiam sempre triunfar sobre as forças do mal, com a condição de pagar o preço exigido. Eles pagaram o preço. E esse preço, sem dúvida, foi pesado, carregou dentro de si todo o peso do sangue, o peso cansativo e apavorante das prisões. Muitos dentre esses homens morreram, outros vivem, há anos, em masmorras cegas. Era o preço que se tinha de pagar. Mas esses mesmos homens, se pudessem, não nos censurariam por esta alegria terrível e maravilhosa que nos invade como uma maré montante.

Por que esta alegria não lhes é infiel? Ao contrário: ela os justifica e nos diz que eles tiveram razão. Unidos pelo mesmo sofrimento durante quatro anos, continuamos unidos nessa mesma embriaguez, conquistamos nossa solidariedade. E reconhecemos com surpresa, nesta noite que nos transtorna, que durante quatro anos nunca estivemos sós. Vivenciamos os longos anos de fraternidade.

Duros embates nos aguardam ainda. Mas a paz voltará a esta terra eviscerada e aos corações torturados por esperanças e lembranças. Não se pode eternamente viver às custas de assassinatos e de violência. A felicidade, a meiguice justa terão a sua vez. Mas esta paz não nos apagará a memória. E para alguns dentre nós, o rosto de nossos irmãos desfigurados pelas balas e a grande fraternidade viril de todos estes anos não nos abandonarão nunca. Que nossos camaradas mortos guardem para si essa paz que nos é prometida nesta noite ofegante e que eles já conquistaram. Nosso combate será o deles.

Nada é dado gratuitamente aos homens e o pouco que eles podem conquistar se paga por meio de mortes injustas. Mas não é aí que se encontra a grandeza do ser humano. Ela está na sua decisão de ser mais forte do que a condição que lhe foi imposta. E, se a sua condição é injusta, só há uma forma de vencê-la que é a de se tornar, ele próprio, um justo. Nossa verdade dessa noite de hoje, a que plana no céu de agosto, constitui justamente o consolo do ser humano. E é a paz dos nossos corações idêntica à dos nossos companheiros mortos: a paz de poder dizer diante da vitória ganha, sem espírito de astúcia nem rodeios de reivindicação: “Fizemos o que era preciso fazer”.

Camus tem a lucidez do sol mediterrâneo ao debruçar-se tanto sobre o horror quanto sobre a esperança. Recorda que um dos maiores criminosos de toda a História, comparável a Nero, Calígula e outros celerados célebres, Himmler tinha uma sensibilidade tão sutil e requintada que voltava para casa de madrugada depois de dirigir, como regente de uma orquestra tétrica, as torturas infligidas aos prisioneiros capturados pela Gestapo e sem fazer barulho descalçava os sapatos, entrando pela porta dos fundos para não despertar seu canário favorito. O mesmo Himmler que mandava tirar fotografias das camponesas russas grávidas e acorrentadas no solo, de ventre para cima, pouco antes de, a uma ordem sua, os tanques alemães passarem por cima das mães e seus fetos, pois assim uma sub-raça, a eslava, desaparecia mais rapidamente para dar lugar à predominância, que deveria ser mundial, da super raça ariana cantada por Hitler, Wagner e o Conde de Gobineau: a germânica, loura de olhos azuis.

O escritor adverte, porém, que um governo totalitário pode matar e macerar um corpo como o do resistente heroico francês Jean Moulin, que não revelou os nomes dos companheiros da Resistence anti-nazista mesmo depois que a Gestapo lhe arrancou todas as unhas, todos os dentes, os globos oculares e os testículos. Mas ninguém pode matar uma ideia ou fuzilar uma alma. “Mil fuzis apontados sobre ele e prontos para disparar não impedirão que um homem creia em si mesmo e na justiça da sua Causa”. Ou ainda:

“Matar o justo não é suficiente, portanto, é preciso matar o espírito para que o exemplo de um justo que renuncia à dignidade humana desencoraje todos os justos juntos e desencoraje a própria justiça em si. Há dez anos, um povo dedicou-se diligentemente a destruir almas. Estava suficientemente certo da sua própria força para crer que a alma de agora em diante era o único obstáculo e que era preciso dar-lhe a atenção devida. Foi o que eles fizeram, para infortúnio deles mesmos, às vezes conseguiram seus objetivos. Sabiam que existe sempre uma determinada hora do dia e da noite em que o homem mais corajoso se deixa vencer pela covardia.

Souberam sempre esperar por essa hora. E aí procuraram atingir a alma através dos ferimentos do corpo, tornaram a alma desvairada e dementes e, às vezes, traiçoeira e mentirosa”.

A atualidade assombrosa dos escritos ideológicos de Camus adquire uma dimensão mais aguda ainda quando ele, em plena França liberada finalmente do jugo nazista, adverte sobre um problema que hoje, ontem e sempre permanecerá como um dos problemas decisivos do mundo: a responsabilidade moral dos jornalistas diante do público leitor. Com um destemor que chega às raias da temeridade, na edição de Combat de 31 de agosto de 1944 ele já clama, presciente, por uma imprensa livre, lúcida e ética.

Sem se alterar uma vírgula sequer, é um texto que se aplica ao Brasil de 1980, à Nicarágua, à Argentina, ao Chile, às duas Coréias, às duas Alemanhas, aos Estados Unidos, à União Soviética, à Suíça, à África do Sul como à França e à Índia.

Referindo-se à imprensa amordaçada pelos ocupantes alemães, de 1940 a 1944, ele diz que ela foi o opróbio da França e faz alusão à imprensa clandestina – e corajosa, adjetivo que ele não usa, mas que se deduz nas entrelinhas – que por meio da Resistência ao inimigo tentava solapar a colaboração francesa com os ocupantes e ao mesmo tempo libertar a imprensa do jugo aviltante do dinheiro. Uma Imprensa que pode ser usada para fins ignóbeis políticos ou manipulada venalmente pelo suborno são imprensas, para ele e para nós, equivalentes. Com suas palavras:

“Nosso anseio, nosso desejo, tanto mais profundo pois que na maioria das vezes mudo, era o de liberar os jornais do poder do dinheiro e de lhes dar um tom e uma verdade que colocam o público à altura daquilo que nele existe de melhor e mais elevado. Pensávamos então, naquela época, que um país frequentemente vale tanto quanto a sua imprensa. E se for verdade que os jornais são a voz de uma nação, nós estávamos decididos, em nossos espaços e com os recursos frágeis de que dispúnhamos, a engrandecer esse país enobrecendo a sua linguagem. Errados ou certos, foi por esse motivo que muitos dentre nós morreram em condições inimagináveis e outros suportam a solidão e as ameaças da prisão... O que queríamos nós? Uma imprensa clara e viril, de linguajar respeitável. Para tantos homens que, anos a fio, a escrever um artigo, sabiam que esse artigo podia pagar-se com o cárcere e a morte, era evidente que as palavras tinham seu valor e que cada palavra tinha de ser refletida e ponderada. E é essa responsabilidade do jornalista diante dos que o leem que eles queriam restaurar.”

Ele lamenta tanto a preguiça dos jornalistas que apelam para o sensacionalismo ou para o fácil quanto para os que não repensam as fórmulas e chavões remastigados sem pensar e os colocam diante do leitor. Aí se trata de uma questão eminentemente moral e que ele discerne com lucidez cristalina: a imprensa é o espelho moral do seu país, sela ele qual for e sob qualquer regime político. O jornalista – e neste termo genérico se incluem, obviamente, o repórter, o fotógrafo, o redator, o redator-chefe, os diretores e proprietários de jornais – dever ter presente sempre a noção elevadíssima de que ele é quem está dando à sua nação uma voz, a voz profunda que as censuras plurais querem silenciar ou mutilar ou exilar.

Por último, pois o assunto Camus é tão múltiplo, rico e complexo que nem mil páginas de um jornal lhe fariam justiça, é indispensável mencionar, renunciando a muitos outros aspectos dessa grande consciência do século XX, uma das supremas do século de Hiroshima, Dachau, o Gulag, a preocupação profética de Albert Camus com a criação de um movimento que só hoje, 20 anos após a sua morte, se esboça nos EUA e na Inglaterra: o da Democracia Internacional. O que é isso?

“O que é a democracia nacional ou internacional? É uma forma de sociedade na qual a lei está acima dos governos, essa lei constituindo a expressão da vontade de todos, representada por um corpo legislativo. É isso que se tenta fundar hoje em dia? De fato, está sendo elaborada uma lei internacional. No entanto, essa lei é feita ou desfeita pelos governos, ou seja, pelo poder executivo. Portanto, estamos submetidos a um regime de ditadura internacional acima dos governos, por conseguinte, criarmos essa lei, dispormos de um parlamento, portanto, constituirmos esse parlamento por meio de eleições mundiais das quais participarão todos os povos do mundo. E já que não contamos agora ainda com esse parlamento, o único meio que nos resta é o de resistir a essa ditadura internacional em um plano internacional e adotando meios que não contradigam o fim a que nos propomos.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Para que ler Camus? A grandeza crescente do mais vivo pensador de nossa época .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.