Angola escreve. Uma arte mágica e sofrida vinda de onde não se sabe

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1981/07/04. Aguardando revisão.

África Negra. A mera enunciação das duas palavras desperta interpretações e fantasias conflitantes. Para alguns, o adjetivo será considerado insultuoso, típico do racista que mantém o preconceito inflexível contra tudo o que for “coisa de negro”, portanto, nesta acepção a priori os termos significam tudo que for desprezível, pejorativo, “inferior. Há depois as nuances de”piedade” dos “coitadinhos”, matizes que vão do missionário em catequese sincera, querendo salvar aquelas almas pagãs para a única Fé, a de Jesus Cristo, como a devoção dos bem-intencionados que querem transmitir às populações negras o alfabeto, a roda, a escrita, a indústria, a medicina em vez dos feiticeiros da tribo, a favela em vez das choças tribais.

Mas a África Negra evoca também escravidão, repulsa ética pela violência que árabes, portugueses, ingleses, franceses, holandeses, belgas e outros praticaram, arrancando à força de seu continente de origem famílias inteiras, desmembradas e levadas do Brasil às Antilhas e à Virgínia integrando o cativo trazido em navios negreiros até a Nação que reconhecia em sua Constituição separatista da colonizadora Inglaterra “como fato evidente por si mesmo que todos os homens nascem iguais perante Deus”. Nos Estados Unidos da América entendia-se que os homens têm até o direito constitucional de “procurar sua felicidade”. E que felicidade poderia haver nos campos de trabalho forçado no cultivo do algodão, nas fazendas do Sul, a não ser a alegria dominical do coro negro nas igrejas protestantes do Senhor branco? Aí se esqueciam as dores, cantavam-se os salmos que falavam do cativeiro dos judeus na Bíblia. Eram lamentos que no estrangeiro se adaptavam perfeitamente aos negros cativos em terras da América. A melancolia resignada, temperada pela Fé dos spirituals, aquela melodia plangente adaptada aos versos severos do Velho Testamento é a parte sacra da arte do desterro negro. Os blues serão a sua saudade e tristeza profanas, em contraste com a Fé rural, os olhos voltados para vida plena depois da morte, no Céu sem epidermes de Jesus e seus Apóstolos, regido por um Deus justo, amoroso e sem etnias de almas. Os blues falando de amor frustrado, de miséria, de marginalização social urbana dos discriminados entregues à bebida, à pobreza, ao trabalho mal pago, à promiscuidade – eram “coisas de negro”.

Depois, com a figura excelsa do reverendo Martim Luther King, que se inspirou na nobreza ética e religiosa de Gandhi, na Índia, de não apelar para a violência a fim de obter a defesa de direito dos oprimidos, surgem as marchas em favor do voto negro, do acesso dos negros às Universidades, aos drugstores, aos motéis, aos hospitais, aos bebedouros e bancos de jardim “só para brancos”. A revolução do black pride – o orgulho de ser negro – explode nas cidades, pinta murais de negros ilustres nas paredes de Chicago, impõe o estudo de línguas como o suahili, do Quênia, muda o nome do boxeador negro Cassius Clay para Mohamad Ali, convertido à fé islâmica dos black muslins. Esquecido, é verdade, em seu fervor muçulmano impulsivo de que os árabes foram, historicamente, dos primeiros “inventores” da escravidão de negros, um “comércio” rendoso nas “partidas”, para as Américas, de “cargas” humanas.

Não importa: James Owens, atleta negro, vencerá as Olimpíadas em Berlim, no ano de 1936, quando a “superioridade intrínseca e imbatível da raça branca” tinha já sido proclamada absurdamente pela doutrina nazista. Hitler, no estádio repleto, se recusara a apertar a mão daquele “macaco corredor”, e daí? A vitória do negro nos esportes só iria se acentuar nas décadas seguintes. No futebol, Pelé, no boxe Joe Louis; na música, o jazz; no canto erudito, Marian Anderson; na música popular do Brasil, da Jamaica, dos Estados Unidos, a liderança e a criatividade negra sempre determinantes. De repente, é bonita a carapinha, o denegrido “cabelo ruim” desprezado pelos brancos ou pelos mulatos claros passa a ser moda e autenticidade. Nada de alisamentos a ferro: como campânulas, os cabelos aureolam rostos que não se mostram mais submissos e que criam uma cultura negra dentro do Establishment dominante branco.

Numa euforia até hoje insuperável, descobre-se a celebração literária: grandes poetas como Aimé Césaire e Léopold Senghor (ex-presidente do Senegal) elevam a Négritude a seus píncaros: exalta-se a beleza da mulher africana, como Picasso se influenciava pelas máscaras da África Negra; reconhecem-se os valores negros como incomparavelmente superiores, eticamente, à crueldade do egoísmo e à injustiça do branco: em vez da luta individual consumista e sem nexo, a ternura, a doçura, a solidariedade comunitária, o desapego às conquistas meramente materiais: o emprego bem pago, mas que escraviza o ser humano à linha de montagem repetitiva e alienante, ao automóvel, ao álcool, ao ter muitas posses e ser apenas um dente de uma engrenagem que tritura todos seus componentes.

Os argumentos dos racistas se tornam, pelo avesso, motivo de orgulho: os pretos nunca inventaram nada, nem a roda, nem a crise econômica, nem o clorofórmio, nem a penicilina, nem a pólvora, nem a escola, nem as letras, nem o trem, o vapor, a fábrica, a poluição, a perda da identidade de cada um na massificação anônima das violentas metrópoles modernas. Paralelamente, uma a uma, dezenas de ex-colônias na África Negra se emancipam, depois de séculos de dominação europeia, n década de 60. Se, de meados de 1800 até meados deste século a África foi uma torta repartida ao sabor dos comensais do banquete africano nas conferências europeias da alegre partilha do Continente Negro, agora no pós-guerra, depois de desmoronado o nazifascismo, com Hitler, Mussolini e logo Franco e Salazar, as nações africanas surgem, miseráveis mas com um potencial plural inimaginável: petróleo, minério, terras férteis, mentes abertas e alertas, reerguendo tradições seculares pisadas pela arrogância do homem branco missionário do Partido Único da Fé Verdadeira. A minúscula e sórdida administração do Congo, composta por funcionários belgas, por exemplo, ao debandar de sua imensa colônia africana deixa… por mais inacreditável que pareça… deixa apenas 14, exatamente dez mais quatro, formados por universidades: quem assume o poder no novo país, o Zaire, é obviamente, o caos.

Mesmo Portugal, que com mão férrea estrangulara o Brasil até 1822, é forçado a abrir mão de suas remotas “províncias ultramarinas”: os níveis médios da hierarquia militar portuguesa reconhecem e demonstram a inutilidade, o desperdício, a injustiça estéril de querer se manter uma ilusão alimentada séculos a fio. A independência política, porém, não passa de uma etapa formal, propensa a retóricas fáceis e retumbantes nos discursos nem populistas de tão demagógicos: populeiros na sua exaltação de uma soberania pro forma, que só seria real quando tivesse o sustentáculo dos adjetivos substanciais: econômica, cultural, ideológica, efetiva. Pobre Angola! Mal passado o longo pesadelo do colonialismo do fascismo de direita, é vítima do fascismo de esquerda, das tropas de Fidel Castro a recolonizar, como prepostos da Mamãe Rússia, as terras ricas, as mentes fecundáveis, a economia, como dantes, espoliável. Novamente um poeta sobe, na África Negra, ao poder: Agostinho Neto. Mas sobe sobre armas, apoiado na facção que venceu a dilaceração fratricida, o MPLA, até hoje em escaramuças mais ou menos sérias com o grupo do Unitas. Aliás, cada vitória, ou derrota depende do parti pris de cada agência noticiosa ou de cada jornalista e sua interpretação abusivamente subjetiva dos fatos que nos chegam deturpados, longínquos, praticamente inverificáveis… A criação artística, essa brotava mesmo entre as grades da prisão como já se tornara comum na literatura desde Dostoievsky preso pelo Czar, até Ho Chi Minh e Solzhenitsin e Graciliano Ramos, se tomarmos em seu sentido mais lato a criação literária, depoimento e volição. Agostinho Neto, antes de morrer, assinala em seus versos candentes, vigorosos, seu desprezo pela civilização branca, ocidental, grosso modo, que jogou o negro de Angola no Rio de Janeiro, na Bahia, no Harlem, nos mesmos “alagados”, nas mesmas favelas, nos mesmos slums fétidos, e infra-humanos. A exploração do operário preto a cavar nas minas dos brancos na África do Sul do apartheid, a abrir os esgotos das castas claras dominantes é uma elegia densa, trágica que ele traça candentemente em seus poemas. São os momentos em que o caderno de versos repousa ao lado das armas, com a ajuda maciça dos Volódias (apelido carinhoso que se dá em russo para os homens de nome Wladimir), sua ajuda em seus apetrechos bélicos vários: Kalinishkovs, tanques, aviões Illyushin e uma chusma imensa de “irmãos cubanos” e “conselheiros” soviéticos que vivem segregados em guetos longe dos habitantes aborígenes de Luanda. Como são numerosos os “conselheiros”! Angola precisa, urgente, de milhares de “adidos da Embaixada”, depois, sim, de agrônomos, professores, engenheiros, peritos em balística e estratégia militar, enfermeiros, operadores de rádio, operários graduados da indústria siderúrgica, mineira ou de extração de petróleo ou diamantes, pois não?

Já o Brasil, que sempre fizera ouvidos moucos à libertação das colônias ultramarinas portuguesas, para não desfazer o elo sentimental do triângulo de rebuçados de Lisboa a se desenhar sobre o Atlântico: lá em cima a Terrinha-Metrópole insaciavelmente ávida de bens materiais – terras, pedritas preciosas, impostos, escravozitos, minérios, ai, qualquer coisa que pudesse ser abocanhada sem escrúpulos e com farsas de cristianíssima vergonha. Este era o vértice principal do triângulo cabalístico-mítico que desaguava, em suas partes inferiores (geograficamente, bem entendido) nas terras do Brasil e da África, onde se tentava falar, com certa graça e até com açúcar (de cana) o “pretoguês”, ora, pois!

Hoje, a avidez pelos mercados africanos da defunta África Lusitana (ai, o rio Luando, não leva mais riquezas par o rio Mondego!) mudou os vértices do triângulo: sôfrego, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o governo marxista-leninista da Angola do MPLA: também, tudo pesado, quem ajudará remotamente a Unitas a reconquistar Angola amanhã? E é hoje que o Brasil precisa do petróleo abundante de Angola e de colocar no mercado africano seus manufaturados, suas exportações de alimentos, tudo envolto no manto retórico-hipócrita sentimental das “afinidades étnicas”. É pena que não tenhamos elefantes, mas em compensação os africanos não têm índios, nem falam tupi-guarani; fora disso, o lema é sagrado, perdão, sagrada e a Revolução. Como, qual Revolução? A da libertação de Angola, é lógico. E vivam tanto Angola livre como os mercados livres de Angola e suas jazidas minerais! Não insistamos nas leves incongruências de um País que defende a civilização democrática e cristã abraçar afoito um irmão que nega Deus pela Bíblia leiga escrita por Marx e Engels (que muitos nativos acham serem a mesma e uma pessoa, nova encarnação daquele estranho filho de Deus, Jesus Cristo, que morreu em nome da redenção de todos os homens). Isso são detalhes.

Nessa tragi-comédia político-econômica, sobre a literatura. Tirando meia dúzia de profundos conhecedores brasileiros do que já havia de literatura importante no mundo de expressão portuguesa, como se diz pedantemente na eufemística Avenida da Liberdade de Lisboa, desde os tempos de Salazar & Cia. Ltda., a Editora Ática, paulista, está trazendo para cá raridades nunca sonhadas pelo leitor brasileiro. Como sempre acontece, porém, quando intervém o colonialismo (português ou russo, belga ou francês, não importa) junto com a separação das tribos milenarmente assentadas em determinadas regiões devido ao recorte ditado pela cobiça europeia na Conferência oitocentesca de Berlim, também os livros e autores nos chegam desamparados, órfãos de qualquer ancestralidade. Teria a literatura angolana brotado do nada? Ex nullo magnificat? Porque os vários autores que nos chegam, quase vinte, nos são apresentados, tanto em prefácios como em notas da Editora, como criadores de uma literatura contemporânea, vivaz. De acordo, mas surgidos não se sabe de que origens. É infantil querer dar como única matriz literária a fogueira do patriotismo da emancipação política: mais de 400 anos decorreram também em Angola antes da independência de Portugal. Em Angola, não há os nossos equivalentes a Gregório Matos Guerra? Um piedoso sacerdote português, êmulo do Padre Vieira? Um poeta que sonhasse, em versos, com a independência africana como entre nós o mineiro Claudio Manoel da Costa? Se não houve acesso por parte dos escritores angolanos a um arcadismo português, por que não a um romantismo, um realismo, um simbolismo, embora todos ainda de importação europeia?

Se os diversos autores que a Editora Ática nos apresenta não têm antecessores mencionados, logo se destacam tendências na prosa de Angola, uma prosa, é preciso reiterar, recentíssima, como nos é apresentada, pois são todos autores das últimas duas décadas. Sem nenhum maniqueísmo, mas como constatação apenas, são duas as correntes principais de Angola.

Há os autores políticos, que escrevem profundamente engajados com a ideologia da Libertação, com os traumas e ferimentos da Revolução, sobre a longa violência da dominação branca e discriminatória de forma sutil, vale dizer: hipócrita.

E há os escritores – na maioria pretos, mas não exclusivamente – que se dedicam recapturar o lirismo nativo, o mundo de magia, de ironia cheia de graça, de pilhéria, de ternura e hierarquia etária típica das sociedades comunitárias africanas, que não votam o velho ao exílio social, em que os nossos idosos apodrecem nos “asilos” ou a perambular, esmolando, pelas ruas.

Em ambas as vertentes, há uma acentuada mescla de idiomas – diálogos inteiros são reproduzidos em quimbundo, um dos idiomas aborígenes angolanos, ao lado da narrativa, que transcorre predominantemente em um português de gramática incorreta quase sempre. Um português que para um leitor brasileiro soa castiçamente lisboeta no léxico, com termos que caíram em desuso no Brasil, se é que aqui tiveram guarida durante algum tempo: miúdo em vez de menino, bichas em vez de filas, rebuçados em lugar de balas de confeitaria, além de muitos outros vocábulos. As falas de transcrição fonética do quimbundo (vez ou outra se menciona um dialeto ou outra língua nativa) se, por um lado, dão todo o interesse que o desconhecido e a magia da estrutura de sons trazem a um texto novo, por outro lado interrompem o fluxo narrativo, pois o leitor tem de recorrer, forçosamente, às notas de pé de página ou, mais laborioso ainda, aos glossários do final do livro, onde os diálogos e as palavras estão classificados alternadamente por ordem alfabética ou pelo número de página em que aparecem: maçante depois de alguns minutos de prazer interrompido pela incompreensão.

Devido à fartura de títulos e nomes, a escolha sabidamente arbitrária de uma análise genérica baseada em gêneros – romance, conto, poesia – visa a evitar o caos d mera enunciação de obras e autores. Assim, neste primeiro segmento, o da literatura em prosa, destacam-se, nitidamente, de um lote de seis escritores, os dois primeiros: Uanhenga Xitu (que também usa o pseudônimo aportuguesado de Agostinho Mendes de Carvalho) e José Luandino Vieira, criadores de livros encantadores ou aterradores, conforme o tom de graça colorida de fantasia e lirismo, de Uanhenga Xitu, ou o relato político de tortura e da repressão da litografia veemente de José Luandino Vieira. Desbotados os restantes: Pepetela (nome de guerra de Artur Pestana), Manuel Pedro Pecavira. Um caso à parte – e de extraordinário impacto dentro de uma visão ortodoxamente marxista, mas literariamente válida e, por vezes, fascinante de inteligência e sátira – é o de Mauel Rui, contista absolutamente excepcional.

Os livros que mais inegavelmente se destacam, tão objetivamente quanto for possível uma avaliação que quer ultrapassar o subjetivismo de uma avaliação crítica, honesta, isenta de parti pris, são, sem dúvida: A vida verdadeira de Domingos Xavier, de José Luandino Vieira, e os dois tomos de Uanhenga Xitu: Maka na senzala (com o subtítulo de Mafuta) e Manana – sobretudo este, deliciosamente reminiscente de um Lima Barreto naïf , ambas edições cuidadíssimas portuguesas, das Edições 70, com distribuição no Brasil entregue à Livraria Martins Fontes, de São Paulo.

José Luandino Vieira vem precedido de resenhas tão laudatórias quanto arrevessadas de críticos e professores portugueses – fado amargo a que não escapam os livros maravilhosamente singelos de Uanhenga Xitu… Mas José Luandino Vieira tem uma lição espantosa a recordar aos brasileiros de hoje, fora de qualquer perspectiva ideológica ou de participação ativa na Revolução de libertação de Angola e sem a menção, literariamente secundária, dos empregos que teve ou de sua idade (46 anos par aos curiosos de cronologias precoces ou tardias). José Luandino Vieira vê a tragédia do colonialismo do racismo, da opressão diária, mesquinha e múltipla, com os olhos voltados para o fraco, o pisoteado, o que em Angola quer dizer, em 90% dos casos, o negro, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, no entanto, restabelece aquela noção que o dramaturgo Vianinha (Oduvaldo Viana Filho) já, antes de morrer, aos 38 anos de idade, considerava basilarmente normativa para a literatura que retratasse o real sem deturpações nem sem “rebaixar-se até o povo” por meio de maniqueísmos idiotizantes ou de uma pobreza de conceitos e de vocabulário que, na realidade, consistiam, na realidade, numa afronta ao povo. A Vida Verdadeira de Domingos Xavier é uma narrativa que deslumbra o leitor pela sua veracidade: há seres humanos, com matizes de qualidade e defeitos, não há heróis sem mácula nem tiranos monolíticos.

É claro que José Luandino Vieira nunca esconde os pormenores horripilantes do preconceito racial, mesmo entre os portugueses, que de todos os povos europeus é, talvez, o único a se destacar por uma quase (quase, acentue-se) total cegueira étnica. Como as senhoras portuguesas que reclamam da entrada de um passageiro preto em farrapos numa condução, pois isso feria suas narinas ociosas do lar.

“O motorista até já tinha espreitado, resmungando qualquer coisa. O operário, pedreiro ou caiador, trazia o fato coberto de nódoas de cal e os seus pés se escondiam nuns velhos quedes. Assim como estava, o cobrador achava que ele não podia viajar. Duas senhoras brancas concordaram, acrescentando que, qualquer dia, nenhuma pessoa decente podia andar nos maximbonbos (ônibus) por causa do cheiro dos negros (sic)”

O autor não pinta bonecos de cera do Museu de Mme. Tussaud: ao contrário, os cipaios (tropas africanas a serviço dos antigos colonizadores portugueses) e os pretos empregados nas empresas comerciais ou estatais dos dominadores são indivíduos: uns servis, sem dignidade diante de tudo o que o branco afirma ou inventa, outros se rebelam surdamente; outros se envaidecem com os cargos de brilharecos com os quais o regime colonialista lhes adoça a alienação e a escravidão disfarçada; outros ainda ignoram os brancos, fiéis à sua tradição aborígene, mas sem delatar os que tramam a derrubada do regime fascista português daquela época anterior à libertação formal de Angola. Domingos Xavier adquire, sem exageros, a grandeza histórica de um Jean Moulin, o inacreditável membro de uma Résistance francesa que morreu vítima da Gestapo, depois que os nazistas lhe arrancaram os testículos, as unhas, os dentes, e os olhos mas não lhe arrancaram os nomes dos companheiros da luta contra o ocupante alemão. São inesquecíveis as páginas secas, carregadíssimas de horror e altivez, que descrevem, com uma secura que não desagradaria a Graciliano Ramos, as torturas e a resistência sobre-humana que um humilde tratorista negro lhes opõe com seu silêncio destemido e teimoso: “Não digo!” tornando-se o trissílabo do seu vigor incoercível. O leitor merece ler este livro terrível, que fala de um problema que se coloca no Brasil, no Uruguai, na Argentina, em Cuba, na União Soviética, no Cambodge, onde quer que haja torturados e mártires voluntária ou involuntariamente silentes.

Para um país como o Brasil, que se apresentou praticamente de gavetas abertas, iniciada a abertura política, este livro é um soberbo exemplo de literatura política válida, sem reduções ridículas a chavões e sem ceder ao pieguismo ou ao doutrinarismo político: um Hemingway radicado em Angola e em certos pontos mais certeiro do que o autor de Por quem os Sinos Dobram”, é esse José Luandino Vieira, cujas obras restantes serão aguardadas com ansiedade justificada pelo público no Brasil que se interessa por literatura político-social de tão alta e rara categoria. Sem ser um Goytisolo nem um Jorge Semprum, José Luandino Vieira, incomparavelmente menos culto o que estes, mais direto e mais voluntariamente testemunha simples de seu tempo, é talvez o único – haverá outros – que no campo da língua portuguesa nos recorda que a arte engajada tem o seu primeiro e inevitável engajamento com a arte como depoimento, não como sectarismo panfletário e artisticamente famélico.

Uanhenga Xitu é muito mais difícil para quem não conhece o quimbundo, de que se serve com uma fartura talvez exagerada em suas evocações de uma África brincalhona, galhofeira, , impregnada de feiticeiros, de sortes tiradas quando surgem pássaros portadores de decifrações do futuro, de uma população em transição entre os doutores do hospital (europeu, ocidental) e os feiticeiros curandeiros da milenarmente ancestral tradição tribal. É, porém, retrato contagiantemente delicioso da mulher africana que Senghor já cantara em seus esplêndidos versos da négritude, que Uanhenga Xitu desenha com mil ardis, mil trapaças ao lado do homem casado que esconde da linda moça de um bairro distante do seu, em Angola, seu casamento para pedir-lhe a mão e fazer toda uma patusca encenação de namora, noivado e casamento, até o desenlace trágico e a destruição do precário triângulo amoroso. As figuras femininas destacam-se na composição de Uanhenga Xitu: é a sogra obediente ao machismo prevalente, aos valores impostos pelos brancos à revelia dos valores africanos; é a esposa traída, sofrida e compreensiva no seu desemparo e sua suspeição do marido Malazartes e Don Juan estroina e simpaticíssimo made in Africa.

Por último, Manuel Pedro Pacavira com Nzinga Mbandi (também Edições 70), parece-nos dispensável, pois adere com demasiado ardor à linha – piorada – de Raízes, o fantasioso best-seller norte-americano levado à televisão. Revela verdades tão monstruosas quanto inegáveis a respeito da escravidão dos negros pelos europeus e árabes. Mas sua Nzinga Mbandi não é nenhuma Xica da Silva, nenhuma versão feminina do Zumbi dos Palmares; é uma composição oca, falsa, com alguns trechos convincentes porque meramente documentais do desaparecimento de pessoas, tribos inteiras acorrentadas rumo aos navios negreiros eu os despejavam no litoral brasileiro. Contudo, não há impacto que o autor consiga transmitir à comoção do leitor, por raquitismo de talento? Por desleixo? Nas cenas de aprisionamento, de queimada de lavouras, de choque das intenções espirituais dos jesuítas com a cupidez dos colonos e da Coria de Portugal a se apoderar de terras, gentes e riquezas dos “gentios”, Manuel Pedro Pacavira escreve com vigor, mas infelizmente com arremedos de erudição histórica, enfileirando descrições tediosas e enumerações inúteis. Ele será, com otimismo, um autor do qual se possa esperar – passe o chavão – um aperfeiçoamento do seu frágil talento.

Desta primeira leva de angolanos, permanecem o desenho e o colorido. O colorido ingênuo, adorável de Uanhenga Xitu. O desenho trágico, goyesco, de José Luandino Vieira, em qualquer cena colhida a esmo entre suas poucas e magnificas páginas:

“O corpo do tractorista caíra em cima dos presos já adormecidos àquela hora da noite. Era princípio da madrugada, com o silêncio vencendo todos os ruídos, e o ranger da grande porta acordou nos presos, que ficaram de olhos abertos, querendo adivinhar no escuro quem tinha sido trazido para ali. Ouviram o cipaio dar voltas à grande fechadura, correr a tranca, afastar-se em seguida, conversando em voz baixa com alguém.

Uma lua grande brilhava no céu sem nuvens, cheio de estrelas, e a luz branca entrava a jorros pela janela banhando os corpos estendidos no chão. Eram muitos, sem cama, dormindo aos montes no cimento, ou embrulhados em trapos e velhos cobertores. Criados trazidos nos patrões, homens desempregados apanhados sem cartão assinado, bêbados agarrados na porta de tabernas sempre abertas, pequenos larápios, desordeiros, unidos no mesmo destino, de porrada e trabalho na estrada. A entrada de mais um preso era sempre acolhida com indiferença, alguém resmungava qualquer coisa, mas ninguém se preocupava. Só de manhã se ia ver quem era o infeliz, antes da hora de sair nos trabalhos forçados.

Mas logo que os passos dos cipaios deixaram de se ouvir e o silêncio caiu novamente, os presos, acordados pelo cair do corpo em cima deles, se levantaram admirados daquele patrício que nem se mexia!

Um homem virou Domingos Xavier de costas e, na pálida luz do luar, a cara inchada do tractorista apareceu entre os farrapos da camisa suja de sangue. Um vento de frio correu no meio dos homens. Era terrível aquela cara, quase sem feições, sangrenta, mas um sorriso teimoso nos lábios. O mais miúdo se abaixou e, tirando um lenço, começou a limpar com todo o cuidado o sangue na cara de Domingos Xavier. O homem alto e forte deitou-lhe, depois, cm muito jeito no chão, enquanto um velho, ainda cheirando a vinho, começava a choramingar. Alguém que tinha um cobertor abriu-lhe em cima do tractorista e cobriu com ele o corpo magro e torturado. O miúdo baixo e forte continuou a limpar a cara sangrenta com cuspo que punha nas pontas do lenço. Uma expressão de muita tranquilidade se sentou na cara endurecida e inchada do tractorista. A respiração era muito fraca, mal mexia a camisa, e o miúdo, cada vez que ele respirava, limpava o pequeno fio de sangue que estava a sair no canto da boca. Domingos Xavier, olhos fechados, nem se mexia, não gemia sequer. Só sentia a vida esvaziar naquele corpo martirizado”

Até o coro que se ergue na prisão, paralelo ao sangue que se esvai:

“Uexile kamba diami

Una uolobita

Uafu

Mukonda kajimbuidiê”:

Era meu amigo

Aquele que vai a passar

Morreu

Porque não quis falar”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Angola escreve. Uma arte mágica e sofrida vinda de onde não se sabe .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.