Kafka (Curso)
Paralelamente aos acontecimentos de repercussão mundial da sua época, a vida de Kafka traça uma parábola simbólica: de 1883 coincidindo com a publicação de Assim Falava Zaratustra de Nietzsche até 1924 quando Hitler termina a redação de Minha Luta. No meio, dilacerando a Europa em duas frentes de batalha, a Primeira Guerra de 1914. Em 1917 a revolução bolchevista na Rússia.
E à medida que Kafka se distancia mais e mais do mundo seu contemporâneo, devorado pela tuberculose que o arrebataria à criação solitária de sua longa muralha da China aos 41 anos de idade, agita-se simultaneamente a Europa do seu tempo: em 1922 ele se isola num sanatório na Thecoslováquia.
Cessando sua breve correspondência com Milena, a amada ideal que se aliara como católica e democrata ardente aos judeus de Praga sendo enviada pelas tropas nazistas invasoras ao campo de concentração de Ravensbrück onde vem a falecer depois de quatro anos de inferno. Em 1922 Mossolini marchava sobre Roma e atiçava o apetite territorial do fascismo em expansão militar na África. Stálin ascendia na hierarquia da União Soviética como secretário geral do Partido Comunista.
Encerrava-se todo um capítulo definitivamente da história da humanidade. Gasset diagnosticara a ascensão das massas sufocando os valores individuais. O colonialismo ruia na África e na Ásia. A Espanha servia de ensaio geral para a Segunda Guerra Mundial.
As reivindicações sociais e políticas dos oprimidos por oligarquias internacionais afirmavam-se na libertação da Argélia da tutela francesa, na concretização da fundação de Israel, na independência da Índia obtida graças à doutrina do ahimsa, não-violência de Gandhi e nos Estados Unidos os negros liderados por Martin Luther King e os poetas da negritude chefiados na África por Léopold Senghor, afirmavam em nossa época a autonomia das minorias em busca de sua identidade social e humana.
Kafka deteve-se no umbral da era atômica como ele próprio declarava: “Eu não tive ingresso na vida, como Kierkegaard, pela mão do Cristianismo, nem, como os Sionistas, pude agarrar a última fímbria do manto sacerdotal que se afastava celeremente dos judeus. Sou um fim ou um princípio”.
Depois de Kafka, desfila em sucessão desconexa e caótica a era contemporânea em que as lutas políticas nos ensinaram no planisfério da angústia moderna a geografia sangrenta dos choques armados.
Sem participar diretamente dos embates da sua época, Kafka percorria os labirintos subterrâneos da velha cidade de Praga onde nascera às margens do Danúbio evocando o castelo inacessível que se ergue no alto de uma montanha de cumes cercados de neblina:
“Era certo que eu encontraria um meio de acesso a este mundo? Não poderia o exílio de um lado, coincidindo com a rejeição por parte do outro (mundo) ter-me esmagado no ponto do seu choque? É realmente uma espécie de marcha sem rumo a que empreendo, perdido no deserto… creio que estou continuamente caminhando ao longo de suas fronteiras, embalado pela esperança pueril de que talvez ficarei em Canaã, afinal de contas, quando na realidade todo esse tempo permaneci décadas a fio nesta região êrma e estas miragens foram geradas pelo meu desespero, principalmente nas ocasiões frequentes em que me sinto a mais mísera de todas as criaturas prisioneiras do deserto e em que Canaã é forçosamente a minha única Terra Prometida, pois não existe um terceiro lugar para a humanidade.”
Mas Praga é apenas um símbolo do seu exílio, da sua impossibilidade de integração naquele tríplice gueto que circundou a sua angústia: de cultura alemã, ele vive em Praga onde nasceu, originário de uma família judia ortodoxa, socialmente abastada, burguesa, dedicada a um próspero comércio.
Por si só a justaposição desses fatores contraditórios ilustra a fragmentariedade da sua vida: Kafka não consegue integrar-se na sociedade, à vida de conforto material, de segurança financeira, de gostos artísticos conformistas e acadêmicos. Abomina a religiosidade puramente exterior, aparente do pai que lhe parece adorar a letra e não o espírito do Talmud numa atitude farisaica que é ao mesmo tempo hipócrita e indigna da pureza e do absoluto religioso que Kafka ambiciona para a balbuciada tentativa de culto do homem à divindade inescrutável.
Incapaz de integrar-se na sociedade da região boêmia que constituia parte do império Austro-Húngaro, uma sociedade cristã, católica, eslava que já ambicionava sua identidade nacional divorciada da tutela austríaca.
E elaborando a sua obra – que constitui, à par das novelas de Thomas Mann a mais esplêndida contribuição da literatura de expressão alemã à literatura contenporânea – Kafka passaria a assumir, a encarnar a angústia atual do século que substituiu a fé medieval pelo niilismo esterelizante e/ou pela crença no progresso puramente material apoiado pelo absolutismo do Estado e uma “mística” de esquerda.
Seus relatos passam a ser sintomáticos, proféticos anunciando o advento de uma era em que a humanidade estaria encerrada, enferma, entre campos de concentração e explosões atômicas, na imensa faixa de terror que une Dachau a Hiroshima.
Num período histórico em que parte da literatura conduziu à filosofia do primado do absurdo, do existencialismo, a sua é como que uma “vasta invocação do milagre”, como o autor que como ressalta o poeta inglês Auden, mantém com o século XX a mesma relação que Dante com a época medieval e Shakespeare com o período elisabetano do renascimento inglês.
Porque para nós o clima irrepetível da angústia que Kafka passou a evocar, mais ainda: que ele passou a assumir em si próprio, além de brotar de conexões significativas com o seu mundo interior refletido nos seus diários, nas suas cartas a Milena e ao pai. No entanto, ela parte de uma consciência profundamente religiosa em choque com um mundo secularizado e herético no ápice da fase de massificação das sociedades humanas desumanizadas nas suas relações sociais, na sua arte, nas suas diversões e transformada meramente numa cifra burocrática de organismos gigantescos regidos por citérios da cibernética e da estratégia da biologia e das necessidades político-sociais do momento.
[o restante do texto foi impresso no livro de LGR Os Cronistas do Absurdo, cap. 2: “A busca do absoluto perdido”]
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Kafka (Curso)},
booktitle = {Testemunhos Literários do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {3},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-3/4-franz-kafka/00-kafka-(curso).html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Inédito, Sem data. Aguardando revisão.}
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