Quem tem medo de Hilda Hist?

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Polímica: revista semestral de crítica e criação nº 2, 1980. Aguardando revisão.

Macunaíma tantas vezes, o brasileiro se cansa de todo autor que usa mais de 500 palavras usuais, tiradas do vocabulário comum, irmão gêmeo do primevo grunhido das cavernas pré-platonianas. Por isso, muitos leitores em potêncial preferem tirar uma soneca na rede balouçante e achar a priori a ficção instigante de Hilda Hilst, por exemplo, a obra de “uma chata, maçante, hermética, indecifrável”. Cai o livro das mãos, predomina o império da sonolência aquiescida.

Outros têm um empenho político tão fanático que também a priori abandonam os livros dessa escritora paulista que mora há mais de uma década voluntariamente isolada do mundo, numa fazenda perto de Campinas, Estado de São Paulo: “É uma alienada! Não se limita a descrever exclusivamente a miséria multissecular do povo brasileiro! Não focaliza a opressão intolerável, palpável que circunda 80% da nossa população e que foi denunciada, na Europa, por Marx. Ergo a Hilda não pode ser uma artista importante, Partido Único dixit!”. E um silêncio sepulcral embalsama, virgem por abrir, as páginas da autora de Ficções como se embalsama o cadáver de Lênin na Praça Vermelha em Moscou ao lado do Chase Manhattan Bank dos Rockfeller.

No entanto, quem não estiver preso a esses dois tabus paralisantes da inteligência e se dispuser a lê-la com afinco, descobrirá, encantado, que Hilda Hilst é, cronologicamente, a mais audaz pioneira da literatura brasileira depois de Guimarães Rosa, vencidos esses dois Cérberos temíveis – a preguiça e o parti pris – que impedem o acesso à sua criação literária.

Sob um enfoque mundial, Hilda Hilst é componente dessa vanguarda feminina que toma de assalto a Bastilha Machista Literária. É da mesma estirpe de Virgínia Woolf, de Elsa Morante, de Marguerite Yourcenar, da multi-esplêndida Doris Lessing, de Katherine Mansfield e de Curson McCullers, Marianne Moore e Isak Dinesen. No Brasil, Hilda Hilst completa a magnífica literatura de uma Clarice Lispector, que revolucionou o conto das 3 Américas (sem exagero), captando o metafísico em tudo que subjaz a essa aura aparente de mediocridade prosaica cotidiana, vendo além da superfície que palpita nos interstícios da vida diária banal e, antes de ela se debruçar sobre o dia-a-dia sem transcendência.

O rótulo “feminista” não se aplica, porém, à escritora paulista. Ela é. Sem adjetivos limitantes. Mas, é lícito perguntar, o que traz de tão nunca dito, de tão audaz para a conquista de um espaço, um tempo e uma profundidade no dizer em prosa em nossa língua, essa estranha ficcionista?

Em primeiro lugar, como regra válida para toda a literatura moderna e especificamente de expressão latino-americana, a literatura de Hilda não se enquadra nos rótulos cômodos para os críticos de literatura indolentes: ela não cabe em nenhum genre littéraire. Seu livro que eu considero o mais importante de todos – Ficções (Editora Quíron, São Paulo, 1977) – é justamente o que o título involuntariamente borgiano diz. Não são contos. Não são novelas curtas ou longas. Não são poemas. Não é só prosa poética. Além de causar o desmoronamento das etiquetas obsoletas de gênero, ela provocou um deslocamento geográfico da literatura no Brasil. Aboliu a supremacia dos donos do feudo literário – o Nordeste, Minas Gerais e o Rio de Janeiro, quando se fala de poemas e romances qualitativos – e colocou São Paulo como a matriz atual da Gnose literária e inquirição profunda, abissal, sobre o ser humano. Todos os seus demais livros confirmam essa dimensão beckettiana de Hilda Hilst, uma afinidade malgré ele-même e que não traduz absolutamente uma influência ou uma imitação. Os volumes denominados Fluxofloema, Qadós e o recentíssimo Tu não te moves de Ti (publicado em março deste ano) são, felizmente, a antítese germinal de tudo que é acadêmico, postiço e bem-comportado na nossa literatura. Hilda Hilst é o anti-museal, o anti-acadêmico, graças a Deus. Ela está implícita e galacticamente numa posição antípoda à das Academias com seus chás de mediocridade e sua amálgama espúria de misturar numa mesma Academia um gênio, como Guimarães Rosa, um talento imenso, como o de José Cândido de Carvalho, autor de O Coronel e o Lobisomem e um ditador funesto, infame como Getúlio Vargas, na adulação mais rastejante da história da infâmia que um dia um Borges brasileiro narrará.

Qual é a magia encantatória de Hilda Hilst? Basta ler a página e meia de seu conto “Teologia Natural”, em Ficções, para compreender que ele, como num haiku em prosa, subleva todo o dizer, pesquisa a medula do Ser com uma precisão lúcida brotada de um texto inconsapevolmente digno de Heidegger. Cria, ao longo de toda a sua obra, neologismos coruscantes, indispensáveis para o seu novo dizer, inédito e pioneiro, como Joyce e Guimarães Rosa também desvendaram vocábulos alquímicos novos, onomatopaicos, misteriosos, até sibilinos, mântricos, para uma apreensão nova do homem e seu efêmero percurso na vida e na Terra. Há enredos à la Balzac ou se trata de um nouveau roman como o do esplêndido Manuel Puig, onde vicejou com seu inquietante El Beso de la Mujer Araña? Os escritos de Hilda Hilst tanto podem ter enredo como podem não tê-lo. Em um deles, por exemplo, “Floema” – uma das dez narrativas mais abissais da literatura brasileira desde os seus primórdios – um homem se rebela contra Deus, fala com Deus, um Deus cruel como uma divindade inescrutável hindu, injusto, indiferente ao extremo, altivo, desumano… e Deus responde ao homme revolte com sua revolta minúscula de poeira do Nada querendo apreender o Tudo. Noutro relato, se for permitida a grosseria de resumir em parole povere um flash fundo e apavorante, um miserável, Tiô, não espera por Godot e passa à ação|: lava a mãe cuidadosamente, mas com os pudores de filho não incestuoso, tenta branquear a velha e negra pele macilenta materna: quer vendê-la no mercado, depois a comprará de volta. E com as palavras soberbas de Hilda Hilst neste relâmpago da condição humana cifrada em página e meia:

“Entrou na casa. Secura, vaziez, num canto ela esperava e roía uns duros no molhado da boca, não era uma rata não, era tudo o que Tiô possuía, espiando agora os singulares atos do filho, Tiô encharcando uns trapos, enchendo as mãos de cinza, se eu te esfrego direito tu branqueia um pouco e fica linda, te vendo lá, e um diate compro de novo, macieza na língua foi falando espaçado, sem ganchos, te vendo, agora as costas, vira, agora limpa tu mesma a barriga, eu viro e tu esfrega os meios, enquanto limpa teu fundo pego um punhado de amoras, agora chega, espalhamos com cuidado essa massa vermelha na tua cara, na bochecha, no beiço, te estica mais para esconder a corcova, óculos luvas galocha é tudo o que eu preciso, se compram tudo devem comprar a tu lá na cidade, depois te busco, e espanadas, sopros no franzido da cara, nos cabelos, volteando a velha, examinado-a como faria exímio conhecedor de mães, sonhado comprador, Tiô amarrou às costas numas cordas velhas, tudo o que possuía, muda pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava.”

Em outra, como dizer? estória? um prisioneiro político dos paus-de-arara brasileiros que tanto envergonham e enlutam a consciência brasileira saída das trevas do governo Médici, o torturado justifica o seu atroz sofrimento como uma espécie de Jean Moulin brasileiro inculto mas místico paradoxal, dizendo: “Somos ateus com Deus”. As curras que lhe infligem na prisão não o privam da sua obsessão maior, inextirpável, “o vício de pensar beleza… Todo Zen”.

Outra personagem, Agda, se desdobra em dois contos com o mesmo título, o do seu nome, para refletir dois momentos diferentes sobre a decrepitude do corpo, vê as manchas amareladas em suas mãos lentamente se desfazendo em senilidade e reluta em se circunscrever ao cultivo das plantas, querendo manter um amor carnal e não sancionado pela burguesia mexeriqueira circundante: Agda como que justifica a velhice inexorável pela recompensa daquele amor violento e tardio, a carne desafiando o Tempo, a paixão anulando a morte dos neurônios, como nos poemas eróticos de John Donne.

É multifacetada, é infinitamente poliédrica a prosa de Hilda Hilst (não falamos aqui nem da sua excelsa poesia nem da sua vigorosa dramaturgia). Pode-se abordá-la como uma pura especulação filosófica plotiniana ou heideggeriana em torno do Ser, da Alma, da Lembrança. Como também se pode, simultaneamente, lê-la como um texto estranhadamente místico, uma teologia do Verbo, uma Jerusalém de pedras tornadas palavras, escada de Jericó rumo a Jeová. Ou será um fenômeno de metalinguagem, a merecer um estudo de linguistas sensíveis que utilizem os computadores com “o coração pensante e a mente comovida” de que falava Clarice Lispector? Ou ainda será que Hilda Hilst se propôs, inconsciamente, a transcender os limites do dizer e transformou a lira de Orfeu, que amansa até as feras da indolência, da falta de honestidade, da ignorância, da rotulação ideológica sectária a priori e da estreiteza de mente e de espírito para metamorfosear a lira que desceu ao Hades na harpa que David soava para extrair o pranto de um rei poderoso de Judá?

Ela é tudo isso e muito mais que só a leitura e a releitura podem vislumbrar, nesse mundo espiral que é seu a cada novo encontro do leitor com o seu texto mágico, translúcido, corajoso como um desafio de Kierkegaard. Ler Hilda Hilst é banhar-se de uma fosforescência transcendental e tornar-se o Outro. Ou melhor: é desenrolar o resto não dito do poema de Ungareti, que assinalou o Caminho e prosseguiu adiante nesse Tao da lucidez fulgurante que nos é concedida às vezes em nossa condição meramente humana mas já intuitiva do Além-Humano:

M’illumino

d’immenso

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1980) 2022. “Quem tem medo de Hilda Hist? .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.