Uma nova antologia. Boa, incompleta
Uma antologia é sempre um autorretrato de quem a organiza.
Segundo chavão: Não há nenhuma antologia capaz de satisfazer a todos os leitores ao mesmo tempo.
Portanto, O Conto Brasileiro Contemporâneo, organizada por Alfredo Bosi, da Universidade de São Paulo, e publicada com ajuda financeira dessa própria instituição (Editora Cultrix e Universidade de São Paulo, 293 páginas), não poderia fugir a essa Lei implacável de não poder agradar a Tout le monde et son père.
Evidentemente, dentro de um panorama muito rico e múltiplo como o do conto brasileiro de hoje, a escolha é correspondentemente ampla e variada.
Nos últimos 25 ou 30 anos, praticamente todas as correntes literárias se incorporaram ao conto brasileiro. Um imenso arco abrange desde um gênio – Guimarães Rosa – capaz de sozinho causar um divisor de águas: a literatura brasileira se subdivide realmente entre antes e depois dos contos enfeixados em Sagarana, Corpo de Baile e outros. Até os escritores menores que, judiciosamente, não entraram nesta seleta ou florilégio, como se dizia no tempo de Coelho Neto.
Como é impossível debater sobre preferências e gostos pessoais, acataremos certas predileções do Organizador. Isto é: se ele dá espaço a contos de Otto Lara Rezende (“Gato, Gato, Gato”) e de Nélida Piñon (“Colheita”) em vez de reserva-lo para produções possivelmente superiores como “A Cilada” de Otto Lara Rezende e algum conto de uma coletânea incomparavelmente melhor de Nélida Piñon como O Tempo das Frutas em vez do seu fraco e desigual Sala de Armas, não há como divergir. Literatura não tem sua superioridade provada com leis físicas, com Inquisições ideológicas ou religiosas, com testes de genética estrutural, fórmulas matemáticas que deixem irrefutável o dogma ou axioma de que este ou aquele conto é melhor do que o outro. Há unanimidades genéticas, como por exemplo, jamais alguém poderá considerar Tchecov, Katharine Mansfield, Clarice Lispector, Guimarães Rosa criadores de segundo nível, de “continhos” fadados a serem consumidos em almanaques de farmácia, junto com o tônico Capivarol.
Assim sendo, respeitem-se as estratégias de quem elabora qualquer antologia, palavra tão poética que em grego antigo significa maço de flores ou colher flores – neste caso, literárias. Cada um, nessa jardinagem das letras, tem seu canteiros subjetivos e cultiva literalmente “son propre jardin”.
E de bom, o que há neste O Conto Brasileiro Contemporâneo?
Sinceramente, há espécies raríssimas, daquelas que o consenso geral da inteligência, da cultura e da sensibilidade sem pestanejar colocam entre os clássicos, isto é entre os valores não sujeitos nem à ferrugem do tempo, nem às deformações de uma ótica pessoal.
Há o conto fúlveo, felino, fulminante, “Meu Tio, o Iauretê” de Guimarães Rosa, em que um índio, em parte aculturado à “civilização” branca da sífilis e do arsênico misturado com farinha para roubar a terra dos nativos, torna seu monólogo tão vital e importante para a literatura brasileira quanto o longo monólogo-novela de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas do esplêndido autor mineiro.
Há um dos contos mais perfeitos da língua portuguesa quando esta avançou para não mais as experiências, mas as legítimas conquistas de um novo território de expressão: o admirável “Retábulo de Santa Joana Carolina”, do pernambucano Osman Lins, aqui tão deslumbrante (ou mais) do que um Júlio Cortázar, aqui perfeito como fora imperfeito o seu romance Avalovara.
De Dalton Trevisan há o mural citadino épico da derrota dos marginalizados na cidade grande e monstruosamente desumana, os bêbados, loucos e mendigos de Curitiba em seu hemingwayano O Cemitério dos Elefantes.
De Clarice Lispector – a maior contista das Américas possivelmente – há o apavorante, lúcido raio-x de “Feliz Aniversário”, o camafeu de “Menino a Bico de Pena”, o coleante, talvez indecifrável “O Búfalo”.
Finalmente, ressalte-se a acolhida justa e atualizada que Alfredo Bosi deu a valores ainda pouco alicerçados, mas cuja grandeza só crescerá com o tempo: os contos de Ricardo Ramos e, “Circuito Fechado”, um xeque-mate irrespondível à materialista sociedade de consumo em que os seres humanos se compram, se usam, se entredevoram e mal se reconhecem nesse fliperama de um Inferno moderno. Ou os contos de João Antônio.
Feitas as contas, descontadas as discordâncias subjetivas, elogiadas as concordâncias de visão quanto a superioridades axiomáticas (embora nunca dogmáticas), fica uma pergunta sem resposta no ar: haverá um segundo volume de contos brasileiros contemporâneos? Porque é inadmissível que os contos de Hilda Hilst, em Quadós e Fluxofloema não sejam aquilo que são desde a sua concepção: antológicos no melhor e mais reverente sentido do termo. Ela deveria ter sido incluída – e com merecido destaque – nesta coletânea que, no entanto, submete ao leitor contistas muito menos densos e de linguagem muito menos irreconciliável com o banal do que Luiz Vilela ou Moreira Campos.
E porque esquecer uns 3 ou 4 dos Contos de Aprendiz de Carlos Drummond de Andrade?
Com lacunas ou perspectivas diferentes, no entanto, este O Conto Brasileiro Contemporâneo deve ser adquirido e conservado pelo leitor que detesta best-sellers, que os livreiros do interior, com um trocadilho infame, mas não de todo desprovido de sagacidade chamam de besta de sela quando não fazem jogos de palavras mais escatológicos - mas, aí de nós, mais radicais em sua justa denominação.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2022,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Uma nova antologia. Boa, incompleta},
booktitle = {Grandes contistas brasileiros do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {10},
date = {2023},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-10/00-uma-nova-antologia.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1976-2-14. Aguardando revisão.}
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