Caça às bruxas. O caso de Caterina Medici, uma mulher acusada de feitiçaria no século XVII - resenha do livro A Bruxa e o Capitão de Leonardo Sciascia

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Isto é-Senhor, 1989/09/27. Aguardando revisão.

Sciascia – surpresa! – não é o nome de uma dança nova, criada no Caribe. Leonardo Sciascia foi, há tempos, pioneiramente lançado no Brasil graças ao professor Angeleri, diretor do Instituto Italiano de Cultura, hoje morto como instituição cultural audaz: as atividades culturais dessa presença italiana numa das cidades mais itálicas do mundo extinguiu-se em coquetéis mundanos e ócio bem remunerado. Os poliédricos, instigantes romances desse siciliano original, porém, tiveram má distribuição e nenhuma publicidade. E Sciascia-Sciascia-Sciascia continuou a ser confundido com um ritmo muy saleroso e primo da conga e da rumba para a maioria dos leitores brasileiros, peccato!

Num esforço contínuo e abnegado, a Editora Rocco lança agora A Bruxa e o Capitão desse conterrâneo de Verga, Pirandello, Brancati, Lampedusa, cada um trazendo seu mosaico para decifrar o quebra-cabeças chamado Sicília. A Bruxa e o Capitão (72 sucintas, suculentas páginas) insiste, na essência, na temática obsessiva do autor – a arbitrariedade do poder, que se afirma sempre pela truculência. Ao mesmo tempo não é um livro de estilo típico de Sciascia, chamados em italiano de gialli, ou seja, romances policiais, com vítimas, crimes cercados de suspeitos, policiais, e, é claro, a mortalha que envolve de um medo pusilânime todo os que poderiam elucidar e se calam por instinto de conservação. Especificamente, não é um livro sobre essa superpotência mundial dotada de generais de narcotráfico, da Colômbia aos EUA, dotada de arsenal químico do barato crack à cocaína, à heroína, ao PCP, de Amsterdã a São Paulo, passando por laboratórios escondidos na selva amazônica e que se estendem até a Ásia: gire o atlas geográfico e onde seu dedo apontar, por acaso, lá está, ubíqua, a máfia.

E o que é ela, segundo a definição (formulada em 57 e complementada em 73) do próprio Sciascia? “Uma associação criada para delinquir, com o propósito de enriquecimento ilícito em prol dos próprios associados, e que se interpõe como elemento de intermediação parasitária entre a propriedade e o trabalho, entre a produção e o consumo, entre o cidadão e o Estado e imposta por meios violentos.”

Metáfora retomada neste breve volume. Colocada no âmbito da Santa Inquisição, no início do século XVII, este exíguo e aterrador relato transforma uma criada, Caterina Medici, a responsável pelas dores de estômago inexplicáveis de seu patrão vigário, conde e senador Luigi Melzi. Retirando este episódio de uma menção breve de Manzoni, o clássico do idealismo “nobre e abnegado” de I Promessi Sposi (Os Noivos), Sciascia atém-se aos anais da Igreja como um arqueólogo da conduta humana. E verifica que “com a ajuda divina decifrou-se ser um mal causado por fascinações e artes do Demônio realizadas por uma criada da casa chamada Caterina, a qual descobriu-se ser bruxa, e que está há 14 anos em comércio carnal com o Diabo, sendo bruxa declarada”. A cegueira estúpida e hipócrita de quem pode dispor dos que nada possuem o impede de ver que, ao contrário, Caterina sonhava em tê-lo como amante. E Sciascia a desvelar o propósito da literatura em si: “Porque a maioria dos homens nada sabe de si, se a literatura não lhes contar.”

O capitão Vacallo, amigo da família, diante da insapiência dos médicos, descobre a resposta para o enigma: se a suspeita era afável, quase desrespeitosa das hierarquias sociais rígidas, tal “base” para sua bruxaria se confirma por Caterina ser “o retrato da feiúra”. O que o capitão oculta é a existência em sua vida de uma Catarinetta, sua femina às escondidas, mas que sua “honra” faz compreender logo como um sortilégio satânico, a paixão real que sentia por um ser socialmente tão “inferior” e impensável como sua hipotética esposa. Catarinetta foi incontinenti arrastada para um asilo “uma daquelas casas onde as prostitutas velhas ou as arrependidas uma tigela de sopa e um catre.” E a sutil, impiedosa ironia sciasciana: “Logo neste país onde sempre houve fartura de arrependidos e rearrependidos…”

À Caterina Medici, mais velha, a horrenda/amável, é reservado o suplício lento de inventar trabalhos de bruxaria que teria feito para uma clientela pagante – “esposas que não aturavam mais seus maridos, familiares com pressa de receber de parentes que tinham terras sob o sol ou escondiam o seu pé-de-meia”. O autor comenta, muito a propósito: “Se hoje em dia calculamos haver na Itália cerca de 20 mil profissionais do oculto (Corriere della Sera, 23 de junho de 1985: a página 23, inteira, dedicada aos ‘feiticeiros’), já deu para imaginar quantos deviam estar funcionando no menos ‘esclarecido’ século XVII.”

O martírio das confissões arrancadas à custa de tenazes quentes de Caterina, transformada em Sherazade da lascívia de seus juízes a entreter dia após dia a volúpia “correta” de seus inquisidores, apavora e resume todo o pensamento, todas as conclusões de Leonardo Sciascia, cético mas não conivente com a inexistência da justiça:

“Para chegar rápida e diretamente à condenação de Caterina, já aconteceu no passado. E acreditamos, infelizmente, que aconteça até hoje. A administração da Justiça, sempre foi aterradora, em qualquer tempo e lugar. Principalmente quando fé, crença, superstição, razão de Estado ou de partido a dominam e nela se insinuam.”

Os padres, “formados” em bruxaria a ponto de discerni-la em um fio de cabelo, e os “físicos” (médicos), tão ignorantes quanto prepotentes “donos únicos do saber”, conluiam-se num exorcismo arquitetado graças à mentira, à presunção, ao sadismo… e à ganância pelo dinheiro, forma crassa do poder. O senador acometido pelas cólicas – “fruto da bruxaria de Caterina” – não gozara, derradeiro prazer senil de sua idade, da disponibilidade dela, “coisa” para ser usada e abusada como trapo que depois de servir se joga fora? E os herdeiros do conde, vigário, senador, não temiam que ele, num acesso de esclerose, os despojasse de seu “legado legítimo”?! Unem-se então a Igreja e a medicina sob o comentário ácido do maravilhoso escritor: “Admirável recurso hoje em dia não mais ao dispor da medicina: a não ser que nós queiramos compará-lo com a atribuição das doenças à psique e ao recurso dos exorcismos psicanalíticos…”

Nem o senado nem a cúria, esclarece Sciascia, queriam a verdade, porém “desejavam criar um monstro”, consubstanciação do Mal, exemplo e ápice de tudo que os manuais de demonologia “classificando e descrevendo, deliravam”. E, como final “lógico”, o suplício final de Caterina, estrangulada e atirada à fogueira obedecia, em última instância, à “razão de Estado” (do status quo, pode-se acrescentar); tudo “era parte do desgoverno para dar a entender que, ao contrário, o governo estava sólido, vigilante e solícito”.

Sciascia, comunista hoje afastado do PCI por total desencanto, principalmente depois dos crimes de Stálin, clamorosamente documentados por Kruchev no XX Congresso do Partico Comunista da URSS em 1956, pertence hoje ao Partido Radical. Os radicais incluem entre suas modificações estruturais da vida italiana a realização de plebiscitos nacionais sobre questões decisivas como a extinção da caça, a modificação da legislação sobre a localização das centrais nucleares, a anulação dos crimes de opinião, a liberação das drogas consideradas leves e a outorgação à mulher da decisão de abortar ou não.

Com quem, quase sozinho, vê clara e objetivamente as coisas, Sciascia vê a máfia dilatar-se como uma mancha de trinta sobre uma folha de papel. Logo ultrapassa a Sicília, a Camorra napolitana, o governo exercido através da lupara brota, e avança, como o café e a palmeira de regiões subtropicais como a Sicília, já em Florença, além de Roma, em Milão, em Turim.

Uma das melhores conhecedoras da obra de Sciascia no Brasil e também uma de suas tradutoras, vê em Sciascia o triunfo efetivo de Maquiavel, da mesma maneira que nosso Delfim Netto aplaudia a importação de indústrias poluidoras, pois o progresso é, em suas palavras, “aético”. Para Maquiavel, lembra Bernardini, o importante é vencer; e os meios serão sempre louváveis. Significaria que o Estado de Direito jamais chegou à Sicília, o anti-Estado por excelência? Em seu romance O Dia da Coruja (Ed. Fontana), Sciascia contrasta a ordem, a lei codificada juridicamente, com a ancestral violência, a fome, a miséria, o terror imposto aos humildes e paupérrimos, com a muda aquiescência da Igreja.

Ele não acredita, lucidamente, que o fascismo (e por tabela o nazismo, o stalinismo etc.) pertença ao passado. Não: as mesmas instituições, os mesmos homens revivem hoje o que rotulamos de “passado”:

“Já que o passado, seu erro, seu mal, não é nunca um ‘passado’, e devemos continuamente vive-lo e julgá-lo agora, na hora presente, se realmente quisermos desempenhar o papel de historiadores. O passado que não existe mais – aboliu-se a instituição da tortura, o fascismo não passou de passageira febre debelada pela vacinação – integra um sentido da História de profunda má-fé senão de profunda burrice. A tortura continua a existir. E o fascismo também, sempre.”

Mais do que o colonialismo francês na Argélia ou a teratologia do hitlerismo na Alemanha que o elegeu maciçamente, o passado travestido de persistência do Mal renova-se, viçoso a cada geração, com os neonazistas alemães e o massacre estudantil na China de hoje. Sciascia não alude diretamente à equivalência entre esperança e vitória sobre os atavismos nocivos sempre redivivos. Faz da literatura um conhece-te a ti mesmo. Se seus sucintos gialli tivessem ampla repercussão em um país tão “siciliano” como o Brasil, que maturidade política, moral e humana receberiam, surpreendentemente, nossas pobres urnas! Como, por magia, não estariam abarrotadas de demagogia e atraso e estropiadas por séculos de impostura, ignorância, medo e uma versão brasileira luxuriante de máfias, há quatro séculos – irremovíveis.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Caça às bruxas. O caso de Caterina Medici, uma mulher acusada de feitiçaria no século XVII - resenha do livro A Bruxa e o Capitão de Leonardo Sciascia .” In Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do pós-guerra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 8. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.