O teatro de vanguarda na França

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1961/10/22. Aguardando revisão.

A partir do final do século passado processa-se uma revolução radical no panorama da poesia francesa e, por extensão no domínio de toda a poesia europeia, que vem alterar fundamentalmente com Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé a fisionomia do país que se propalava o paladino do classicismo e o cioso herdeiro das mais características virtudes intelectuais gregas. Ao passo que na Alemanha surge o Expressionismo e na Itália o Futurismo de Marinetti - ambos movimentos essencialmente ligados a movimentos paralelos no plano da pintura - na França eclode o Dadaísmo como terceira reação às instituições estabelecidas, aos valores burgueses e à lógica. Regressando do front, Apollinaire saúda o admirável mundo novo da indústria, das máquinas, da velocidade e da técnica, consciente de que se encontra nos umbrais de um universo diferente, soterrado sob os escombros da primeira guerra mundial:

“Dissemos adeus a toda uma época! Eu sentia em mim seres cheios de destreza Construir e também facilitar o advento de um novo universo...

Chegamos a Paris

No momento em que pregavam cartazes pelas ruas

Anunciando a mobilização... Compreendemos, meu camarada e eu,

Que o pequeno automóvel nos tinha levado

A uma nova época

E embora fossemos já homens maduros,

No entanto, mal acabávamos de nascer...

Não choreis, portanto, os horrores da guerra.

Antes dela só tínhamos a superfície

Da terra e dos mares,

Depois delateremos os abismos,

O Subsolo e o espaço aviatório,

Mestres do leme,

Depois... depois...

Colheremos todas as alegrias

Dos vencedores que repousam:

Mulheres, jogos, usinas, comércio,

Indústria, agricultura, metal,

Fogo, cristal, velocidade!”

Cada vez mais uma parte da França afastava de si mesmo, mergulhando no mundo abissal do sonho, do pesadelo, do irracional e do inconsciente que Freud desvendara perante uma humanidade estarrecida retirando da psique humana desconhecida, as larvas dos desejos reprimidos e inconfessáveis e da sede insaciável de destruição e de ódio ao seu semelhante, atávicas características essenciais do homem. Entre as duas guerras mundiais, André Breton, com o Manifesto do Surrealismo, atinge uma realidade mais profunda do que a realidade aparente, que pode ser medida, pesada e calculada com precisão: A verdadeira realidade ele exclama é a do inconsciente, da fantasia sem freios, das associações mentais espontâneas de um cérebro em contato com o mundo exterior. Essencialmente, o surrealista apresenta um mundo de sonho, livre das algemas da lógica e da coesão, deixando no leitor a interpretação desse sonho e dos símbolos que ele encerra. Indo mais longe do que Rimbaud, portanto, na sua busca de uma poesia instintiva, sem interferência da inteligência, André Breton cria a sua poesia automática, que se deleita com a criação do ilógico e do inexplicável. São famosos os provérbios surrealistas de Paul Eluard e Bejamin Peret: “os elefantes são contagiosos” e “surre sua mãe enquanto ela for jovem”. Salvador Dali, principalmente, instaura, no terreno da pintura, a recriação visual desse mundo de relógios que se desfazem, de homens que se transformam no mesmo tempo em nuvem e caroços de feijão, um mundo em que a fantasia mais absurda são os meios melhores para desafiar frontalmente o mundo quadrado da burguesia bem pensante. A guerra de 1939 e a subsequente invasão da França pelos alemães somente interrompeu, mas não estancou, essa nova ala do pensamento e da criação artística francesas que coexiste, a partir de nosso século, aproximadamente, com as linhas tradicionais, que visam conciliar o classicismo da forma com o modernismo da essência: Proust no romance, Saint-John Perse na poesia. Sartre e Camus no teatro e na filosofia.

É, contudo, a dois autores estrangeiros, radicados em Paris, que a França contemporânea deve duas de suas supremas manifestações teatrais, como o cosmopolitismo parisiense já atraíra Picasso e Mirò, Diaghilevve e Chagall, Vieira da Silva e Julien Green. Samuel Beckett, irlandês de nascimento e Eugêne Ionesco, romeno, constituem os mais importantes da literatura denominada de expressão francesa, embora não francesa de origem. Roland Barthes, escrevendo na revista Théatre Populaire, define a literatura de vanguarda como uma literatura nascida em certo momento histórico em que a burguesia foi julgada por escritores revolucionários e condenada por ser uma força “esteticamente retrógrada”. Esse combate foi iniciado, portanto, num plano puramente estético, contra os filisteus do gosto, passando depois a atacar, de forma violenta, a ética burguesa, responsável, segundo esses autores, por uma deformação mortal do ser humano, dentro de uma escala de valores materialista e desprovida de amor ao próximo, como já a denunciara antes, veementemente, Kierkegaard. Esse teatro de vanguarda, embora revoltado, nunca se comprometeu politicamente - é importante ressaltarmos –, nem se transformou num teatro de ideias, num teatro doutrinário, de profundas convicções político-sociais. Isto sucedia ao mesmo tempo que Sartre e Simonne de Beauvoir filiavam-se, pelo menos ideologicamente, ao marxismo e Camus os combatia, pugnando por uma terceira força: a do heroísmo individual e estoico que resistisse ao absurdo do mundo existencialista desprovido de qualquer transcendência religiosa. É sob esse ângulo que alguns críticos franceses querem definir o teatro de vanguarda como uma procuração assinada pela burguesia, que delegava assim a alguns escritores a tarefa de protestar formalmente - nunca de maneira ativa contra os excessos dessa própria burguesia. Os escritores de vanguarda seriam como que a purificação, a catársis da consciência burguesa, uma vacina de subjetividade e de liberdade sob a epiderme dos valores consagrados pela tradição: desta maneira, a imunização contra a revolução real seria mais eficaz.

Mas, como se pode constatar, cremos, a vanguarda, não formulando teorias políticas, nem se filiando a valores religiosos as duas determinantes, em última análise, de nosso tempo cria o vácuo em torno a si, volta-se contra si mesma, suicida-se em meio ao niilismo que ela própria gerou. Seria, porém, um erro supor que Ionesco e Beckett, Jean Genet, Adomov e Audiberti - os principais representantes do atual teatro de vanguarda na França - tenham tido o mérito de ter renovado somente a técnica do teatro moderno, plasmando uma nova linguagem e dando-lhe uma concepção cênica absolutamente inédita. É preciso reconhecermos o valor ideológico da sua própria negação e o esplendor raro de algumas de suas criações artísticas, vasadas em estilos de rara perfeição literária.

Limitado pelas condições que determinam, como anota com razão André Muller, o teatro de vanguarda compartilha com o teatro “normal” as condições de existência precária e dependente do sucesso comercial, embora este fator seja consideravelmente menor em seu caso. Fundamentalmente, porém, é um teatro de experiência, que tem que conquistar um determinado público, o público dos connaisseurs e dos entendidos: daí a sua constante pesquisa de formas novas e insólitas, como no teatro de off-Broadway. Sem suntuosidades exteriores, financeiramente precário, esse teatro se ressente desses fatores inclusive na concepção da própria peça, já que se devem utilizar poucos personagens, para não ter muitos atores que pegar, os cenários devem ser sumários e fáceis de transportar etc. Mas, por uma feliz coincidência, o teatro de vanguarda, querendo revelar a miséria física e moral do homem, apela justamente para a miséria fisica dos cenários e para uma pobreza acentuada de elementos cênicos acessórios. A música e a iluminação passam a assumir funções mais importantes, criando literalmente o ambiente em que se desenrolam essas sombrias “comédias”, como Esperando por Godot de Beckett e A Lição e As Cadeiras de Ionesco. Como esclarece André Muller: Na peça de Beckett só o que vemos, unicamente, é uma estrada rural com uma única árvore no centro. Essa abstração suprema do espaço, o espaço vazio de Beckett que simboliza o vazio das almas de seus personagens e, por extensão, de todos os seres humanos complementa-se pelos interiores de salas burguesas, uma modesta sala de jantar, um salão, um escritório, das peças de Ionesco todos esses ambientes ressaltam a mesma pobreza, a mesma incomunicabilidade do ser humano, incapaz de vencer sua solidão existencial. Cada elemento se torna típico, “já não se trata mais de uma sala, de um escritório, mas da sala, do escritório”.

Adamov, nas anotações sobre La Parodie, determinara que “o cenário deve dar impressão do preto e branco... deve suscitar uma sensação de desconhecido, de algo não familiar (ao espectador)”. Os objetos, ao contrário, assumem uma função específica e insuspeitada, como nos contos de pesadelo de Kafka eles passam a influir nos personagens e nos seus destinos. Em A Cantora Careca, de Ionesco, o relógio, como determina o autor, soa inúmeras vezes durante a conversa de Mr. e Mrs. Smith, o relógio assume uma personalidade própria, começa a soar as horas que quer, indicando sempre o contrário da hora verdadeira, emite sons nervosos e quando quer “recusa-se a soar, peremptoriamente”. Em As Cadeiras as cadeiras proliferam de maneira alucinante cada vez mais como em “O Aprendiz de Feiticeiro”, o palco enche-se de cadeiras em torno dos velhos ilhados na sua solidão final e total. Justificando o absurdo de seu teatro, irmanado com o “humor negro” atual. Ionesco respondeu às críticas que lhe faziam: “Dois estados de consciência fundamentais encontram-se na origem de todas as minhas peças às vezes predomina um, às vezes o outro, por vezes mesclam-se ambos. Estas duas tomadas de consciência essenciais são as da evanescência e a do peso, do vazio e do excesso de presença, da luz e das trevas espessas. A minha angústia de repente se transforma em liberdade, depois nada mais tem importância fora a maravilha suprema de ser, fora a nova e surpreendente consciência de nossa existência numa luz de aurora, de liberdade reencontrada. Espantamo-nos com o fato de existirmos, de sermos neste mundo que nos parece ilusório e fictício e então o comportamento humano revela seu ridículo e toda a história da humanidade sua inutilidade absoluta. Toda realidade toda linguagem parece desarticular-se, desagregar-se, esvaziar-se de tal forma que tudo sendo desprovido de importância que mais podemos fazer senão rir? Para mim, nestes instantes, sinto-me de tal modo livre ou liberado, que tenho a sensação de poder fazer o que quiser com as palavras, com os personagens de um mundo que não me parecia ser nada mais do que uma aparência irrisória e sem fundamento”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “O teatro de vanguarda na França .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.