Uma boa antologia de contos brasileiros, onde os bichos são sempre os personagens principais (Resenha sobre Antologia de Contos Brasileiros de Bichos)
O Éden, brasileiro, ainda, deslumbrou todos os viajantes estrangeiros que chegaram ao Brasil, desde a era colonial. Humboldt, Hans Staden, Debret, Rugendas fixaram da nossa imagem colonial, a par da selva ou do sonolento centro urbano, os animais. O exotismo das lendas sobre o Eldorado estendeu-se desde o início, à fauna fabulosa de animais que misturavam vários reinos ao mesmo tempo: plantas carnívoras, com cabeças humanas, aves maravilhosas com semitroncos povoariam o Brasil desconhecido.
Esse sentido do maravilhoso – reforçado pela mitologia e pela cultura do africano trazido para cá e pela tradição indígena, em que a Yara surge como uma serpente ou como um boto para atrair os homens para o rio Amazonas – transplantou-se para a nossa literatura.
Desde o sóbrio espanto de Pedro Vaz de Caminha (diante das índias nuas e dos papagaios de cores vivas) que os animais integram não só a nossa paisagem narrativa como a nossa poesia, o nosso teatro e a nossa vida diária. Sem chegar à idolatria zoológica britânica – que quase equipara cães e gatos aos súditos de Sua Majestade – os nossos escritores, particularmente, testemunham uma ternura especial para com os animais domésticos. Comuns na zona rural do interior, as cachorrinhas vira-latas como a Baleia de Vidas Secas de Graciliano Ramos ou o zoológico doméstico do taubateano Monteiro Lobato – com seus porcos, burros, vacas que se transformarão no Marquês de Rabicó, no Burro Mágico e na Vaca Môcha, além dos fantásticos como Rinoceronte Quindim – os animais perdem seu aspecto pacífico em certos contos e romances contemporâneos.
Os bois repentinamente bravios e sanguinários no pantanal mato-grossense, a serpente dotada de sentimentos reconhecíveis como o ódio, ingressam na nossa literatura mais recente pela criação estilisticamente deslumbrante de um Guimarães Rosa, enquanto Clarice Lispector povoa seus deliciosos contos infantis de coelhos e peixes, depois de transformar em personagens de seus contos adultos baratas e galinhas.
Esta Antologia é um corte seccional da nossa convivência com os bichos. Trágica nos pampas do regionalista J. Simões Lopes Neto, com o massacre cruel de “Boi Velho”, urbana no encontro angustiado e na perda absurda do cachorrinho em “Meu Companheiro” de Carlos Drummond de Andrade, esta coletânea interessante alterna momentos de riso e enternecimento sentimental com um misto de fábula e conto de fadas, aspectos cômicos da relação do homem com seus bichos ou denúncias inúteis da crueldade e da indiferença humanas para com eles.
Seria difícil escolher as melhores histórias: a do cachorro espantado de velórios e de casas iluminada na pequena cidade pernambucana de Caruaru, conforme relatada por José Condé; a galinha em seus momentos de “lucidez” final antes de ser levada à mesa, relato desconcertante e com traços metafísicos sobre a morte e a vida de Clarice Lispector; ou a vaca vermelha de “Sequência” de Guimarães Rosa, que “como uma criatura cristã” aproxima amantes depois de sua fuga de casa.
Mas certamente um dos melhores momentos, não só desta Antologia variada, rica e original como toda a literatura brasileira, encontra-se no conto final, “Vaca Bojuda”, de Nélida Piñon.
A romancista carioca de Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo e a pesquisadora estilística profunda e excelente de Madeira Feita Cruz adquire, como contista, uma pregnância incomum na nossa literatura. Já sua coleção de contos Tempo de Frutas (Editora José Álvaro) dera fundamento à afirmação de que Clarice Lispector e Dalton Trevisan tinham um talento à sua altura, que com eles formava um triângulo qualitativo superior na nossa criação da short story, depois que seu supremo representante, o Guimarães Rosa de “A Terceira Margem do Rio” e de “Campo Geral” morrera.
“Vaca Bojuda”, com sua história estranha, dolorosa, inquietante do velho que se identifica com uma vaca numa forma de comunicação já vizinha do amor, mas sem nenhuma anomalia, é um dos pontos mais altos que o conto já atingiu no Brasil e talvez na língua portuguesa.
Reuso
Citação
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doi = {10.5281/zenodo.8368806},
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abstract = {Jornal da Tarde, 1970-08-05. Aguardando revisão.}
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