Jovem, cínica, desesperada, terna
Sobre os pelotões de prédios da Paulicéia Desvairada centenas de folhetos chovem, tentando desfazer a mesmice do cinza e sustar por um instante a multidão caudalosa que flui, robôs cabisbaixos, pelo viaduto do Chá. Cartazes com letras garrafais - “Iniciativa Privada” - são espalhados pelos banheiros públicos das praças, estações e botequins da cidade quatrocentona, entediada e raquítica de vida cultural. Jovens barbudos, de cabelos eriçados amarrados atrás com uma fitinha debochada, “pontilhada de estrelas”, esparramam-se pelas caladas e oferecem textos cruamente reproduzidos em mimeógrafos apressados. São as inumeráveis tentativas de fazer o poema chegar a todos, grito herdado da década em que Lindolfo Bell, o nosso Evtuchenko da praça Roosevelt, evangelizava massas amorfas de gente com seus poemas, seus cabelos louros esvoaçantes, os olhos fechados pensando nos estádios de futebol da Rússia, onde milhares de vãs dizem simultaneamente com o bardo, em coro religioso, os mesmos versos que ele. Picham-se nos muros não só de São Paulo, mas do Brasil inteiro, com frases traçadas a giz ou escavadas na camada de pintura dos muros: “Quem teve a mão decepada/ sslevante o dedo” (Nicolas Behr) ou a saída ainda traumatizada da longa noite de horror: “Medo/ Rua escura/ Alta madrugada/ Dois homens/ Quatro passos idênticos e silenciosos/ Duas bocas fechadas.” (Carlos Martins) ou o ramantismo num flash fulminante:
“Recuperação da Adolscência
É sempre mais difícil
Ancorar um navio no espaço.”
(Ana Cristina César)
Todas as instituições vinham abaixo, ruindo como estátuas cheias de papal crepom: os bispos, os Beatles, a televisão, os discos de Roberto Carlos, a família o excesso de política:
“Comunista
além de política
você não se interessa
por balé?”
Até um culto inédito ao Marquês de Sade vem zombar dos jovens tosados a entoar ritmicamente cantos ao Hare Krishna diante dos grandes Bancos sisudos, da Secretaria de Justiça ou em plena praça dos três Poderes em Brasília:
“Basta de cristandade
de santidade
de moralidade
Obscuridade
Desejo a obscenidade
a oleosidade
a realidade
Desde essa idade
curto marquês de Sade
me arde antes que seaj tarde.”
(Cristina Ohana)
O que outro poeta econa na Bahia:
“Hippies
bispos
Bruxos
o admirável muno Zbobo”
(Gramiro de Matos)
A grande promessa do teatro e do cinema brasileiro transferiu-se para a poesia: jovem, cínica, desesperada, violenta, terna, zombeteira, ela constituiu não uma Queda da Bastilha do Bem-Comportados Censores-Donos-Únicos-da-Verdade e aúlicos centauros amarrados ao poder. Ao lado da poesia curta, hai-kai de favelado, havia a tristeza de toda uma geração castrada pela censura dos dois abutres: Buzaid e Falcão convivendo com a ironia culta de quem assimilou Baudelaire e Mallarmé segundo a receita irreverente e antropofágica de Oswald de Andrade: encrustrado na barriga o tédio de viver, o spleen que tomara o lugar da liberdade, da alegria de viver, do “é proibido proibir”. É uma poesia quase que das catacumbas que tenta redimir os basbaques, mostrar-lhes que a vida pode ser diferente, fora da linha de montagem diária da condução cheia de pernas, o trabalho num cubículo sem sol, a gravata desamarrada diante do vídeo e todas as possibilidades de ser anuladas diante da tela com Sônia Braga e Vera Fischer ,entre um anúncio de “Coca-Cola é mais vida” e outro de um mundo inacessíve: o câncer disfarçado de mulheres lindas, de iates em cruzeiros pelo Litoral brasileiro e materializado na fumaça de um cigarro para você “que quer tirar vantagem em tudo”.
Nessa rebelião de que a cidade mal teve notícia como um paqiuderme sonolento espantando uma borboleta com um piparote, a poesia se revestiu de formas novas: tiras de encefalograma mostram o cérebro morto, a página de um jornal-poema contém apenas anúncios de massagistas para executivos, vendas de imóveis e no meio, translúcida, silenciosa, a união do ausente: Corações e Mentes.
De todas as minorias só o índio “intelectualmente incapaz” como reza a nossa Constituição positivista (o que diria um nhambiquara de Auguste Comte de nosso lábaro estrelado?) está ausente como poeta. É só lembrado frequentemente pelos poetas de agora que recuperam a beleza simmbólica de uma cultura que dá a uma fruta o nome de “fruto da paixão”: maracujá. Os homossexuais, os negros, as mulheres - todos compõem essa frente de inconformados franco-atiradores contra o monolito do Bem-Pensar esmiuçado em kafkianos parágrafos de leis e decretos. Paralisias que anulam a nova servidão - para todos, exceto os apaniguados da nossa Nomenklatura plutocrática, de raízes fincadas solidamente nas contas numeradas dos bancos da Suiça mercenária. Nunca a imaginação esteve tão afastada do poder, à custa de metralhadoras e agentes laranja: será por isso que ela e a poesia jovem se ocultaram nos festivais de Águas Claras e seu cio caótico, nas corajosas alternativas de se dizer “não!” tudo que é imposto, carcomido, sufocante? Mas que poder de fogo tem a palavra, ou como diria Stalin: quantas divisões tem a Poesia? Inúmeras e sua estratégia anárquica faz milhões de pessoas mudarem de canal ou desligar simplesmente a televisão, financiadas imensas, inéditas tirgens das editoras brasileiras hoje em meio à inflação, se transformaram em umma infração à quarentena que se impôs ao pensamento, sem direito de alfândegas no Brasil, de Norte a Sul. Claro, “lutar com palavras/ é a luta mais vã” ensinara o Grande Poeta, no entanto, a luta continua a cada manhã, das praias do Nordeste, sainas, portos de onde se escoa o minério de ferro roubado ao Brasil por alguns tostões a tonelada; de inesperadas agências de publicidade em que, de dia se criam cartazes sofisticados para o punhado de consumidores do metafórico “mercado interno”. De noite, os poetas tecem a contra-cultura, penitencia-se das mentiras, do engodo que tinha imposto às massas e lavavam a consciência com versos amargos, raramente esperançosos, versos de jovens velhos que se entregaram por um punhado de dólares.
A poesia se interiorizava, tornava-se mais culta, mais atenta às deformações não só políticas e não só brasileiras, mais atenta a um mundo agônico, de labaredas que se transformam em cinzas e eles, os poetas e as poetas (como elas insistem em ser chamadas) estavam ali, sobreviventes do Dia Seguinte, com cacos da civilização extinta, criando sem planos nem regras inflexíveis um mundo novo, ainda amorfo mas que lateja como alguma coisa viva e vulnerável, cheia de sangue e de escárnio.
O que me interessou principalmente e que, na minha opinião, deve ser ressaltado em meio a tanta efervescência sem rede distribuidora nacional (como o magnífico Jornal Dobrábil de Glauco Matoso chegando apenas a poucas pessoas, samizdat da esplêndida poesia “não autorizada” da Rússia de hoje), é a ruptura de vozes, de compreensão. Durante a VI Bienal do Livro, em São Paulo, o que parecia impossível: em torno à mesma mesa reunidos Mário Chamie, Marly de Oiveira, Carlos Nejar e na plateia grupos de Poetasia indiferentes a tudo que os poetas dessa geração, entre os 40 e os 50 anos de idade, lhes pudessem dizer. Não havia legado a transmitir, os novos começavam do nada. Sem contestações agressivas ideologicamente, sem o tapume-para-todo-fim - xingamento de “fascista” a qualquer opinião não condizente com a deles - os novos poetas não queriam nenhum condimento, nenhum estilo, nenhuma bagagem cultural. Sua poesia brotava das vísceras: era um uivo selvagem, telegráfico, fosforescente clarão noite em que se remastigava o mesmo cliché-chiclete desprovido de proteínas. Os poetas anteriores, sem dúvida, deram o seu recado, e bem, mas um corte profundo cortara o diálogo entre as gerações como na melancólica receita que não vai ao forno:
“Ingredientes
2 conflitos de gerações
4 esperanas perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos beatles
Modo de preparar
dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração
parte do sangue pode ser
substituído por suco de
groselha mas os resultados
não serão os mesmos
sirva o poema simples
ou com ilusões.”
(Nicolas Behr)
Ao lado, acima e abaixo, na vanguarda ou na retarguada dessa chusma de poetas sem divulgação, sem editoras, sem vasta audiência, apesar da alta qualidade de sua criação, quando sacudido aqui e ali o pó de sua retórica murcha, há, agora, aqui mesmo, três, quatro, cinco poetas (ou serão seis, sete?) que incendeiam a sensibilidade do leitor e são, a meu ver, alguns dos legítimos grandes poetas brasileiros, epíteto que eles seriam os primeiros a rechaçar. Saludavelmente, nao aferi nenhum resquício de corridas de obstáculos entre os poetas de hoje, todos montados no potro da poesia, a derrubar cercas e querer chegar primeiro como o Maior, o Melhor Poeta do Brasil. Essa fanfarronada ficou com a Maior Hidrelétrica do Mundo, o TriCampeonato de Futebol, a Maior Roubalheira do Século e tutti quanti delírios nacionais.
Sílvio Pires, modesto, calado, como quase todos os que fazem a grande poesia do Brasil desta década de 1980, começou também com uma saraivada originalíssima. Criou a Poesia em Conserva: um vidro cilíndrico que “contém sete palmitos poéticos, aromáticos, com 61 poemas impressos em poliestireno, à prova d’água” e realmente imersos na água. Depois enrolou 20 poemas e os colocou nas caixinhas de cigarro que a descaracterização idiomática veiculada pela publicidade teima em chamar de flip top: é a sua poesia king size. Sílvio Pires considera essas investidas meras imaturidades, brincadeiras da juventude. Mas seu livro lançado em fins do ano passado, Orelhas de Van Gogh, de requintado desenho gráfico (de sua autoria), é eletrizante, uma descoberta fundamental e uma afirmação já inquestionável, creio, da contemporânea poesia brasileira. Suas páginas compõem um xilofone de riquíssimos matizes.
“A poesia, uma espécie
em extinção.
Como todas as coisas
grandes
e irracionais.
Como os mamutes,
dinossauros
e agora as baleias.
A poesia, o Moby Dick
do homem
e dos tempos”.
Sem títulos, corridos, os poemas continuam uma página depois ou terminaram nesta página mesmo? Há combinações interessantes, a mais inesquecível e comovente, porém, é a evocação tétrica da tortura vista com olhos de Buñuel e do surrealismo de García Lorca e Pablo Neruda em seus melhores momentos. É uma densa apavorante, mas irremediavelmente fascinante litania do horror:
“Óvulos de celofane & celas.
O delegado do Deic averigua de nós
a verdade à força.
Aprendemos o método, fios elétricos
conduziam a verdade entre nós.
O candelabro dos desmaios
sob os olhares de Médici e do lobisomem
crucificado
ao alto da parede.
O cigarro do patriotismo aceso
as consteladas marcas
imitando as vinte e duas estrelas da bandeira
na epiderme de Miguel.
Quem dormia
Eles queriam a verdade a verdade a verdade
e bem sabiam que inventavam
um outro tempo dentro do tempo
vital e denso.
Vital e denso o espaço
que o corpo de outro corpo ocupava:
crescia na fêmea barriga
uma vontade cada vez mais suicida.
Tecia-se o desespero.
As sete portas da cabeça não davam
para as sete portas dessa cidade de poucas
letras.
Dentes de chaves não mastigavam
segredos metálicos.
Línguas de niquel salivavam ferrugem do
Porvir.
Todos os loucos internados em mim.
Todos os loucos.
Uma saca de baratas e seringas hipodér-
micas.
A ciência do desespero, as galáxias
da fuga.
Todos os loucos, a direção do arco-íris
a realidade nada palpável.
Queria o silêncio das bibliotecas
O folhear de portas, o sésamo das palavras.
O sésamo. Os sentidos basculantes às dobra-
diças
das manhãs.
O galo serrando o claro-escuro,
pisando ideogramas chineses no chão.
Beija-flores imaginavam-se em azaléas
e dálias multifoliadas.
O sésamo. A retícula das possíveis visões de
rua.
Uma carrocinha laceia as últimas perspec-
tivas
domésticas. Facas de sol
cortam a mesa.
A volta do café o Sabath de moscas.
O pão amanhecido d amemória, os hóspedes
desse pão.
Suas palavras como chaves guardadas.
O pão de luz à janela, encarquilhada
para o bucólico.
A geometria dos girassóis atrás das vacas.
As palavras e as formas
Como ovais besouros sua matéria trabalham.
É preciso dizer tudo.
Torturamos em nós a latente vontade de
torturar.
Abrimo-nos em algemas de estranha liga
Pois de colméias químicas
às limas da razão indestrutíveis,
só não estamos, hoje, livres de nós”
Não - é preciso repetir - que Sílvio Pires se limite à candente denúncia política. Seus versos ocultam muito mais outras percepções profundas de uma tristeza existencial absoluta, a perda de um passado diminuído pela sua posterior avaliação social que mostra a mesquinhez da infância enredada com o lirismo e a inocência. O seu mundo poético é rico, complexo demais para se cingir a quaquer rótulo. Contém imagens que necessitam de uma erudição prévia para seu pleno gozo: o Sabbath demoníaco por exemplo, com as moscas, já que em hebraico Beelsebub significa “o Senhor das Moscas” - um exemplo entre dezenas e dezenas de outros apenas. Chispas de poesia iluminam de imenso, como nos versos célebres de Ungarett, perspectivas sumamente originais: “Laranja que à noite apodrece,/ o sol/ Entre outras laranjas/ o homem”; ou o brevíssimo satori de um Bashô brasileiro
“O velho senta-se à mesa,
Serve-se a solidão
Talheres de nafta tem
o tempo
E o tempo tem
a fome
Que, sem pressa, come”.
Sílvio Pires veio, surpreendentemente, fincar uma força poética e uma originalidade de metáforas que, se por um lado, têm ancestrais na poesia de Lorca, de Pessoa, dos hai-kais e do Zen-Budismo, por outro, nascem do nada, maravilhosamente desprovida de rumos, de “engaajmentos” pré-fixados, mantendo apenas, como um XIngu secreto a “reserva indígena”, intocada, do coração que sangra. São 340 páginas, perpassadas de afinidade doída, cromática, humana, com Van Gogh: “A memória, vernissage de feridas/ expostas/ Paisagem que amarelece”, um holofote inesperado lançado sobre a situação do ser humano hoje, tudo perpassado de uma filosofia paradoxalmente descrente e esperançosa do resultado do próximo lance de dados que abolirá ou não o Acaso. 340 poemas é um número alto: sem dúvida em futuras edições essa espessura excessiva será desbastada, limada, escoimada de quedas, de inseguranaças, de adiposidades verbais. Mas Sílvio Pires já é um dos poetas marcantes, exponenciais do Brasil, tanto quanto os poetas negros da antologia contemporânea que os enfeixou em edição recente, tanto quanto a maturidade de vozes femininas e de vozes homossexuais que trazem a tonalidades novas, dissidentes mas por vezes extremamente originais à irrequieta efervescência poética de nossas gavetas e veias abertas.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Jovem, cínica, desesperada, terna},
booktitle = {Poetas brasileiros contemporâneos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {4},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-4/16-a-nova-poesia-brasileira-e-mais-que-uma-promessa/00-jovem-cinica-desesperada-terna.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1984-02-25. Aguardando revisão.}
}