Miguilim e o conhecimento da dor

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Inédito, Sem data. Aguardando revisão.

No âmbito da literatura latino-americana que se afirma crescentemente na Europa e nos Estados Unidos Gimarães Rosa foi citado no ano passado como um dos dos candidatos ao maior prêmio europeu, só inferior ao prêmio Nobel: o prêmio Fomentor, de 11 editoras-chaves do Velho Mundo e só perdeu para o norte-americano Saul Bellow pela pouca divulgação da língua portuguesa, uma divulgação que se torna mínima se comparada com a repercussão mundial do inglês.

Este fenômeno isolado vem comprovar, no entanto, como a literatura das Américas vem se impondo de forma semelhante à literatura russa em meados do século passado, com a ressonância imensa das obras do argentino Borges na França, na Itália e nos Estados Unidos.

Guimarães Rosa da mesma forma que Faulkner e Henry James surge dentro da literatura brasileira simultaneamente com vários valores de critérios diferentes e em muitos casos inautênticos. Autores que se afirmam através de um falso esquerdismo que não esconde a sua falsa vocação literária ou autores que apelam para um retrato regionalista, colorido, turístico de locais exóticos do Brasil obtendo grande sucesso com uma fórmula fácil e pueril de lubricidade de um vago esquerdismo teórico e cor local em profusão sem nenhuma elaboração literária, ao contrário, não inovando nem na temática nem na estilística.

Guimarães Rosa, ao contrário, planta e ergue todo um mundo seu autêntico e profundo que se radica no interior do Brasil, em Minas Gerais, no plano geográfico, mas que desemboca no plano universal, metafísico. Longe de adotar uma visão acadêmica extática da realidade brasileira ele se adentra numa pesquisa mais densa, mais ampla, mais corajosa dos fatores que precedem e se sucedem a essa realidade. Isto é: as suas obras situam uma realidade no plano social feudal do interior do Brasil agrário, mas também indicam as premissas religiosas que o conduzirão à esplêndida interpretação do Mal que significa o seu romance Grande Sertão: Veredas.

O Brasil já tivera o seu grande cronista urbano – o amargo e cético retratista da desilusão da vida, do desencanto da realização amorosa de certa forma próximo ao sentimento de frustração que permeia toda a obra de Henry James que foi Machado de Assis e seus contos e romances ambientados no Rio de Janeiro da sua época.

O Brasil já contara com outra obra-prima que adubara o terreno no qual Guimarães Rosa surgiria: Os Sertões de Euclides da Cunha, aquela magistral diagnose de duas sociedades em conflito social, econômico e cultural, um conflito, porém, que era sobretudo de duas épocas e que ainda predomina claramente no Brasil de hoje: o desequilíbrio no tempo entre uma sociedade arcaica conservadora que preserva valores religiosos e de organização social rígida – a sociedade do interior – e a sociedade secularizada e politizada atual dentro do mundo – a sociedade das capitais, dos centros urbanos, do litoral.

Mas Guimarães Rosa embora radiografando ao mesmo tempo que elabora suas obras-primas a sociedade anacrônica do Brasil com os seus aspectos de injustiça social, de atraso econômico e seus valores de pureza, de religiosidade, de adesão à tradição, à valentia, à palavra dada, não se propõe a fazer uma diagnose social, já que seu empenho é fundamentalmente com a literatura, com a sua visão do homem, não com um panfletarismo primário e desprovido de sentido artístico na sua essência.

Toda a profunda revolução Guimarães Rosa touxe à lieratura brasileira de certa forma inaugurando-a no contexto universal criando um tipo de literatura inimitável, sem seguidores possíveis e que corresponde à definição de Herbert Read de literatura de cunho universal: a que não é nunca provinciana e que apesar de seu regionalismo radical, ou melhor, devido ao seu regionalismo radical é plenamente universal nos ecos que desperta em outras literaturas nacionais. O que poderia ser mais regional do que O Morro dos Ventos Uivantes com os pântanos de norte da Inglaterra, seus rochedos e campinas desolados, seu ambiente despojado de requinte, mas não de vigor, de força, de angústia? E no entanto Wuthering Heights é hoje em dia um clássico da literatura mundial. O que poderia ser mais regional do que a novela castelhana do fidalgo elouquecido na Espanha decadente de seu tempo e que passa a girar o mundo seguido pelo escudeiro ignorante e contagiado pelos livros de cavalaria andante que seu amo lia com sofreguidão? No entanto, o Don Quixote de la Mancha de Cervantes é hoje em dia um dos livros mais populares em todos os países da terra.

No caso de Guimarães Rosa, o seu regionalismo autêntico haurido do seu contato pessoal documentado e longo com o o meio ambiente da sua obra, esse regionalismo é uma passagem para a literatura universal, porque o segredo da grande literatura regional ou nacional é o de utilizar formas de um idioma, de uma nacionalidade, de uma cultura, mas modeladas em temas universais do homem.

É mais difícil a universalização de Guimarães Rosa porque como nós temos visto no decurso desses encontros o gênio sempre precede a sua geração às vezes de um século e Guimarães Rosa não só precede a compreensão brasileira da sua obra como precede a compreensão da grande maioria de críticos e leitores do seu século em qualquer país como um dos quatro ou cinco supremos expoentes da literatura ocidental no século XX, adicionando-lhe culturalmente a terra incógnita que era praticamente até o seu aparecimento a expressão literária brasileira. Porque o ponto de partida de todo o cosmos de Guimarães Rosa é a linguagem.

A linguagem de Guimarães Rosa participa de certa forma da mesma posição de García Lorca na elaboração da sua poesia aparentemente popular. A linguagem de Guimarães Rosa é, ao contrário das lingugens espúrias falsamente esquerdistas e falsamente populares, a sua linguagem é autenticamente a linguagem do povo brasileiro. Do seu contato pessoal com os vaqueiros de Minas Gerais, com os comerciantes humildes, camponeses, beatas e sacerdotes, coroneis e peões ele guarda, anota meticulosamente em cadernos surrados e que leva sempre consigo os provérbios, os ditos saborosos do povo, a sua sabedoria, a sua esperança, o seu ceticismo, a sua alegria ingênua e a sua tristeza como um fardo. O que se nota então é que a linguagem popular é muitas vezes mais audaciosa e infinitamente mais rica, mais expressiva, mais imediata que a linguagem funcional de todos os dias dos meios urbanos civilizados. Ao contrário: o linguajar do povo está muito mais perto da metáfora poética na sua inovação, na sua forma individual e colorida de ver o mundo numa perpétua invenção do momento em que fixa situações e seres humanos.

De fato, Guimarães Rosa estabelece então um nexo entre o linguajar popular e a elaboração erudita. Dispondo de uma vasta cultura humanística e linguística, Guimarães Rosa é o mais culto e mais vastamente erudito de todos os autores brasileiros talvez que até hoje existiram. Versado em teologia cristã e hindu, lendo os livros dos Vedas, dos Upanishads, os ensinamentos de Buda em inglês, francês, textos medievais alemães e flamengos, místicos espanhois do período barroco e conhecendo suficientemente o hebraico para ler os textos originais do Velho Testamento, Guimarães Rosa soma e esse profundo conhecimeno teológico um conhecimento igualmente profundo da alma do povo e dessa síntese nasce o seu estilo incomparável, rico de citações cultas e de sabor popular, equidistante do funcionalismo da linguagem moderna e da falta de fantasia do linguajar burguês e das pinceladas de tudo que é acessório e postiço: a cor local, a “mensagem” social proposital, o exotismo de cultos africanos etc. etc., porque se opõe silenciosamente com a sua arte à literatura de consumo que tem no Brasil seus equivalentes auriverdes às peripécias de James Bond de pop art e novelas que são literariamente da mesma estrutura que as novelas de rádio e de televisão entre nós.

A linguagem funde estes elementos genuinamente populares e os elementos cultos formando uma síntese inédita na literatura brasileira pela sua autenticidade e pela sua elaboração poética. Tomando elementos arcaicos do português que forma em certas zonas de Minas um quisto linguístico do passado, termos do século XVIII e até do XVII que se conservaram ou criando palavras novas que expressem com o seu ritmo e a sua forma e cor novas uma nova forma de sentir.

Guimarães Rosa inova profundamente o estilo da literatura brasileira através de uma forma de narrar entre a litertura oral e a literatura discursiva sempre presidida por uma grande musicalidade, uma grande fluidez e elegância sem com isso deixar de utilizar termos precisos para ações concretas prosaicas e realistas. Mas se Os Sertões de Euclides da Cunha ao retratarem o interior do Brasil formavam frases lógicas na sua sucessão de profundas reflexões sobre a sueperstição, sobre o coronelismo, sobre o fanatismo religioso, Guimarães Rosa imbuiria o seu real de uma visão cósmica presidida pela fantasia enquanto Euclides da Cunha é lógico-discursivo. Ele é inventivo, sugestivo, sutil em todas as suas observações que partem do real que existe sempre latente, imanente, no irreal, como Baudelaire justapunha o sórdido e o sublime, o horrendo e o metafísico que o transcende. Essa inventividade traz à literatura brasileira um elementa que dela estivera praticamente ausente até agora, pois o autor brasileiro se limitara a verificar uma realidade humana, social, cultural e copiá-la seguindo o método realista naturalista de Graciliano Ramos ou o realismo lírico de José Lins do Rêgo ou ainda o realismo pitoresco de Jorge Amado.

Guimarães Rosa não: pela primeira vez a fantasia passa a participar da observação do real, mais ainda: a fantasia permeia o real e revela o quanto de irreal existe no real aparente.

De certa forma como nas correspondências entre as sensações despertadas pelos sentidos a que se referia Swendenborg Guimarães Rosa estabelece constantemente uma inter-relação entre o concreto e o abstrato, quando ele diz por exemplo: “o mais lindo era o cheiro das frutinhas vermelhas… cheiro pingado, respingado, risonho cheiro de alegriazinha…” Em que o cheiro pela sua imaterialidade passa a evocar um sentimento abstrato: a alegria tornado mais íntimo e terno pelo diminutivo que a aproxima de nós: alegriazinha…

Da mesma forma, ao encontrar uma velha conhecença (conhecimento ou conhecida) o seu sorriso é uma forma de voltar aos passados, isto é: uma manifestação física, um sorriso, uma contração muscular, passa a simbolizar um ato espiritual e intelectual: o retorno ao passado, quase que corporificando a saudade num ato concreto, da mesma forma que Proust faria emergir de uma chávena de chá (tisane) todo o mundo da sua infância perdida e reconstruída agora através do perfume.

Também para Guimarães Rosa o perfume, o cheiro, por ser o mais imaterial de todos os sentidos, é uma transição entre o mundo material e o mundo imaterial. Em nenhuma outra obra talvez se reflita tão claramente essa evocação saudosa da infância como no seu conto “Campos Gerais” que inicia o volume Corpo de baile e que significa a criação, na minha opinião, da mais perfeita história escrita em língua portuguesa – não só no Brasil como desde a gênese da própria língua, superando até mesmo o que parecia insuperável, a perfeição de uma página de Eça de Queiroz.

Este relato da infância, da sensibilidade sob a sua forma infantil tem como tema o conhecimento da dor, a experiência blakeana do mundo, a perda da inocência não no sentido do conhecimento do sexo, mas do contato com a desilusão. O amadurecimento determinado pela atitude heroica estoica diante da vida é como aquelas novelas alemãs em que se relata a evolução espiritual do jovem personagem central: o menino Miguilim debruça-se diante e passa da infância para a adolescência, da inocência para o estar-no-mundo, mas como nós vimos o início da história é remoto.

A história de Miguilim começa no longe, longe no espaço porque ela se desenrola longe dos centros urbanos. E longe também no tempo porque não se passa propriamente na época atual com todos os fenômenos típicos: a guerra fria, as lutas politicas, os voos interplantários. Ela se passa numa época enconômica e socialmente anterior à que nós vivemos na nossa sociedade urbana do litoral brasileiro plenamente integrada no seu século, ela se passa também posteriormente a esse época e a todas as épocas. Porque ela se passa no eterno, o eterno renovável todos os dias em que um ser humano tem conhecimento da dor, da decepção, da muda tragédia que enlutará o seu contato com a realidade, deixando aquele céu fictício das ilusões da infância decantado pelos poetas românticos da Inglaterra, do Brasil e da Alemanha.

Com a sua dinâmica lenta, progressiva, a história de Miguilim é a história de um divenire, de uma transformação gradual na qual o conhecimento passará a equivaler à consciência da realidade, quando ecoando o grande poeta inglês na sua ode ao paraíso perdido da infância “os portais do céu se fecham sobre nós”. E como no monumental relato de Proust ao evocar a beleza e a poesia da infância com os seus germens ainda não compreendidos de dor e frustração, a figura da mãe passa a desempenhar um papel fundamental como primeira manifestação do amor. Para a mãe de Miguilim a sua própria dor iniciará o menino no seu aprendizado simbólico de que “o inferno como dizia Santa Teresa é onde não há amor”. No começo de tudo tinha um erro: o erro basilar era o de um casamento sem amor e o de um amor frustrado: tema constante nas obras de Guimarães Rosa: o proibido.

Paralelamente desenvolvem-se, tocam-se, influenciam-se mutuamente os dois mundos separados: o da criança, passivo, contemplativo e o dos adultos onde há o ódio, os choques, a angústia e a dor como potestades maiores. Os adultos presidem como deuses gregos que participam das vicissitudes humanas à vida das crianças que se desenvolve à sua sombra. É perfeita a reconstrução dos conceitos, das percepções e dos valores de uma criança – o mundo da inocência – elaborada por Guimarães Rosa.

E ao lado da mãe, da avó rendeira, dos irmãos companheiros de brinquedos surgem os bichos como fonte de ternura e particularmente a cachorrinha chamada Pingo de Ouro. E quando ela lhe é arrebatada pela tirania do pai, figura dominadora insensível, violento e arbitrário, Miguilim tem uma antecipação do desencanto futuro porque aceitar a própria ternura que ele sentia pela cachorrinha já significava começar o aprendizado da dor porque sem a ternura a separação, a perda, não causam sofrimento nem saudade.

Como diz Guimarães Rosa: “Miguilim cumpriu tristeza”. Isto é: a tristeza é como um dever ou uma pena que nós cumprimos no processo espinhoso de nosso amadurecimento espiritual. É o primeiro choque concreto do mundo dos adultos e do mundo infantil, o choque entre o reino do prosaismo e o reino mítico da imaginação, da poesia, da invenção: “Miguilim entendeu tudo tão depressa, que custou para entender”. Aqui temos um exemplo típico da ambiguidade de Guimarães Rosa em que o verbo entender tem uma dupla função, um duplo significado: “Miguilim entendeu tudo tão depressa” aqui é utilizado no sentido de aprender fundamente uma situação mediante a intuição perceptiva e fulminante que vai ao âmago das coisas; “que custou para entender”, entender aqui no sentido lógico, causal, racional. E daí então na sua primeira manifestação de estoicismo “ele arregalava um sofrimento”. No interior do Brasil a palavra “arregalava” tem o seu valor antigo de escarnecer, de olhar com desassombro. Então: “ele não temia o sofrimento”. É punido por traquinagens infantis por um pai escessivamente irascível e severo. Miguilim passa a desfilar em sua cabecinha confusa as imagens que povoam sua mente infantil.

É importante assinalar também aqui este momento em que Miguilim como todos os personagens centrais de Guimarães Rosa se afastam voluntária ou involuntariamente do convívio com os outros como seres inconformistas, solitários ensimesmados. São abundantes nas suas obras os loucos, os profetas, os anjos vingadores que meditam especulativamente numa afirmação aristocrática do valor individual oposto ao valor da massa, mas não num contexto absurdo de alienação social, mas de crença nos líderes, de afirmação da máxima de Heráclito de que um só, melhor, vale mais do que mil medíocres, portanto, oposto a um critério coletivo de quantidade.

Mas esse afastamento não é um afastamento orgulhoso, altivo e sim um afastamento dos poucos eleitos que se voltam para a meditação e para a vida contemplativa como forma de comunicação com Deus, o mistério, o ignoto, o inefável. Miguilim reflete essa perene raiz mística de toda a obra esplêndida de Guimarães Rosa em que ele traça toda uma abissal alegoria do ser humano na sua passagem efêmera pela vida rumo ao seu aperfeiçoamento espiritual sem mencionarmos os profundos símbolos místicos da Índia, da mística medieval e de Plotino, o filósofo místico neoplatônico que permeiam a sua obra. Mencionemos, porém, a manifestação de fé infantil irracional, mas inabalável de Miguilim: quando precedendo o desenlace violento do amor proibido entre a mãe e o tio ameaçado de morte pelo pai de Miguilim, desaba uma violenta tempestade que a vovó Izidra tenta amainar com rezas fortes no oratório da casa.

E paralelamente se desenvolvem também os dois cultos religiosos: o ortodoxo católico das rezas da vovó Izidra e os calungas pagãos da preta Mâitina na cozinha e suas falas meio em nagô meio em português adulterdo pela ignorância. E sempre a ternura, a adesão afetiva passa a ser uma forma simbólica de comunicação entre os seres humanos: Miguilim ouve a linguagem zumbo incompreensível da preta velha e a intui através do amor que lhe devota, ultrapassando as diferenças de idade, de raça, de língua, de condição social e evidentemente paralelamente às invocações religiosas capazes de aplacar a ira dos santos e das divindades em fúria surge o aspecto capital do demônio, do mal na obra de Gimarães Rosa. Não um demômio com aparência física grotesca como é pintado na crendice popular ou na forma primária de temor do diabo que cheira a enxôfre e que preside às torturas de um inferno físico. O diabo é para Guimarães Rosa uma presença sutil, imaterial, que se revela sobretudo como a crueldade: a crueldade do homem com os bichos, do homem com seu semelhante, o desentendimento, a ausência de altruísmo corporificam o demônio.

Guimarães Rosa não põe em debate as teses da existência ou não existência de Deus, valor supremo, valor absoluto. Mas sim de Deus e do demônio. O mal é o afastamento de Deus. De acordo com as teorias da mística a sua visão seria a da emanação, isto é: o mundo, a criação está afastada da origem de Deus, portanto é imperfeita e a suprema ambição do homem é voltar à união mística com Deus, a origem de tudo. A terra é o domínio consentido por Deus do mal. Como no Fausto de Goethe não nos cabe investigar as razões do consentimento de Deus na existência do mal e no predomínio do mal sobre a terra porque são razões que ultrapassam o entendimento humano.

Falham inteiramente os conceitos antropomórficos de Deus, isto é, a redução de Deus a proporções humanas porque Deus não tem em comum conosco nenhum de nossos atributos. Como dizia Santo Ignácio de Loyola: Deus é uma roda de fogo, é um elemento imaterial que ultrapassa intrinsecamente qualquer compreensão que nós pudéssemos ter dele.

Se Camus postulara que Deus não existe porque existe a dor e um Deus justo e bom não permitiria o sofrimento de inocentes, Guimarães Rosa parte da comprovação diametralmente contrária – a dor é a prova da existência de Deus, a dor é o elemento metafísico que justifica e explica “o modo de proceder de Deus” para com o homem, como nas crenças de aperfeiçoamento espiritual do Cristianismo, do Budismo e do Paraiso Perdido de Milton.

A condição do homem é a do banido da presença de Deus e ele só poderá chegar a aperfeiçoar-se se através de uma série de vidas ou de encarnações, cada uma delas significando um desapego crescente à matéria, como a roda da crença hindu que gira eternamente voltando à sua origem, o homem atravessar fases de evolução que o conduzirão através do altruísmo do amor, da bondade, da superação de seus apetites baixos à volta a Deus, ao Nirvana absoluto.

Mais identificado com os judeus que proibem a adoração de imagens ou a reprodução da divindade em formas concretas, Guimarães Rosa aproxima-se de uma interpretação oriental de Deus, em que o belo Apolo se opõe como verdade fictícia ao eterno, ao irreprodutível em que se manifesta através do sofrimento que é uma via crucis para o aperfeiçoamento espiritual do indivíduo.

É o que acontece simbolicamente quando deflagrada a tragédia do menino Miguilim que já perdera a cachorrinha Pingo de Ouro, que nunca tivera ternura do pai e sim uma severidade excessiva e que perdera o irmão mais moço e precocemente. Inteligível e sensível o dito quando Miguilim que já começara a trabalhar capinando nos campos para ajudar a família na sua pobreza cheia de dignidade, deve deixar a mãe, os irmãos, a avó para ir para uma cidade grande aprender um ofício. Deixar o ambiente da sua infância, do seu enlêvo e do seu desencanto. É quando simbolicamente ele readquire a vista, como o médico que vem de fora e descobrindo a sua miopia lhe receita óculos que lhe permitem ver integralmente pela primeira vez.

Guimarães Rosa utiliza a linguagem então não só para criar neologismos, preservar modismos do linguajar do povo, arcaísmos e nem mesmo para explodir o limite lógico das palavras comuns. Guimarães Rosa utiliza a linguagem como uma forma de romper a mera física do termo da sua acepção limitada do dicionário, secularizada pelo uso. Ele chega à metafísica do termo que transcende a sua acepção racional e contumaz e passa a ser uma forma de integração do absoluto na vida real de contato com o absoluto imanente: “tudo aliás é uma ponta de mistério”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Miguilim e o conhecimento da dor .” In Testemunhos Literários do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 3. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.