Fernando Pessoa III, o Poeta Singular e Plural de João Alves das Neves (Editora Expressão)

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1985. Aguardando revisão.

Fernando Pessoa, o Poeta Singular e Plural, de João Alves das Neves (Editora Expressão), inaugura, segundo seu editor Ismael Guarneelli, uma nova fase: a de baratear livros de e sobre escritores decisivos em língua portuguesa ou traduzidos de outros idiomas. Com belas ilustrações e uma pequena antologia que abrange tanto a parte poética dos vários Fernandos Pessoa como seus escritos em prosa, pareceu-me que seu mérito é o de dar ao poeta e crítico português João Alves das Neves a oportunidade de desvendar lucidamente para o público brasileiro uma das “personalidades” ou heterônimos encobertos do supremo poeta lusitano deste século: Bernardo Soares. Conheciam-se incomparavelmente melhor Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, esses poetas co-existentes com Fernando Pessoa e que dele emanaram prontos como Pallas Athenea surgiu perfeitamente da cabeça de Zeus. Quando se pensa que no espólio pessoano existem 25.426 originais, guardados em 343 envelopes, com um sem-número de textos ainda inéditos ou semi-inéditos, Fernando Pessoa é não só o poeta múltiplo que se desdobra em quatro ou cinco poetas diferentes simultaneamente: equivale a uma perene descoberta.

Fundador do Instituto de Estudos Fernando Pessoa, João Alves das Neves é reconhecidamente um dos mais profícuos exegetas daquele que queria ser o “supra Camões” e que para certas sensibilidades modernas realmente o foi. Aqui ele é desvelado também através da névoa de Bernardo Soares e seu inquietante Livro do Desassossego. Se for possível dizer-se assim, este livro “democratiza” o acesso a Fernando Pessoa a um número maior de pessoas: a edição em dois volumes encadernados da Aguilar tornou-se muito cara para a empobrecida classe média brasileira e a monumental obra ensaística e biográfica de João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa (Livraria Bertrand, Lisboa) está esgotada nas prateleiras da livrarias que importam livros portugueses entre nós. João Alves das Neves judiciosamente menciona fontes fidedignas para o enfoque de Pessoa através das cartas que o poeta dirigiu a Armando Cortes-Rodrigues e a Adolfo Casais Monteiro. E habilmente arma uma “entrevista” com Fernando Pessoa a respeito de temas atualíssimos hoje em dia como as multinacionais, a intervenção do Estado na economia de um país, de que maneira se deve proceder para lançar um produto em um mercado consumidor, baseado no texto pouco conhecido do autor singularíssimo português, intitulado Textos para Dirigentes de Empresas.

Não suscetível de qualquer rotulação, Fernando Pessoa, polivalente, podia perfeitamente ser, durante algumas horas, um mero correspondente em línguas estrangeiras de firmas comerciais lisboetas e no restante do tempo criar a mais metafísica e fascinante obra poética não só de Portugal e da língua portuguesa, mas possivelmente de todo este século no Ocidente. São, por isso, ridículas, quando não temerárias, as pretensões de se querer enquadrá-lo com etiquetas de “fascista”, “reacionário”, “monarquista”, etc., como comprova toda a sua farta dissertação política aqui incluída. Interessante é o aprofundamento da noção que se tinha sobre os ancestrais de Fernando Pessoa, principalmente sua tia-avó materna, Maria Xavier Pinheiro, “cética em religião, aristocrática e monárquica e não admitindo no povo o ceticismo, espírito varonil sem medos e pouca ternura feminina”, que tinha no sobrinho-neto o seu predileto e como típica mulher de letras do sécuo XVIII cultivara a poesia com uma descrença já precocemente pessoana:

“Quem sois vós que escreveis o que eu padeço

E em cujo pensar diviso o meu?”

seguido do final:

“Sabei que na minh’alma um verdadeiro,

Um íntimo descrer, há muitos anos

Me torna nm deserto o mundo inteiro”.

Imediatamente, porém, esta afinidade agnóstica, senão atéia, se prende a elocubrações em prosa, pois a essas ponderações digamos “racionais” de Fernando Pessoa se contrapõem ansiedades místicas à espera da volta de dom Sebastião, desaparecido em guerras no Norte da África, que virá redimir Portugal e erguê-lo a uma glória incomparável à de todos os demais povos da Terra. Originais nos soam também as conclusões de que tanto a Espanha quanto Portugal não são países latinos, uma mentalidade à parte do restante da Europa. Igualmente a rejeição do regime salazarista se reforça com o texto “Oligarquia das Bestas” e a decisão de, por oposição inabalável à ditadura franquista, Pessoa ter-se decidido a abandonar o inglês (língua na qual alguns de seus poemas tinham merecido resenhas no suplemento literário do vetusto jornal Times de Londres), para imergir no que chamava de “patriotismo literário” concretizado em seu desejo de querer doravante escrever apenas em português.

O passaporte imaginário de Fernando Pessoa conteria dados surpreendentes: Nome - Fernando Pessoa? Ou vários? Interrogação acompanhada da anotação manuscrita: “Se estas três individualidades (Alberto Caieiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos) são mais ou menos reais que o próprio Pessoa - é problema metafísico, que este, ausente do segredo dos deuses e ignorando portanto o que seja realidade, nunca poderá resolver.” Ascendência: misto de fidalgos e de judeus. Profissão: “A designação mais própria será”tradutor” a mais exata ‘correspondente estrangeiro em casas comerciais’. O ser poeta e escritor não constitui profissão”. Cargos desempenhados: “Se por isso se entende cargos públicos ou funções de destaque, nenhumas”.

Sinais característicos: “Cristão gnóstico, e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel à Tradição Secreta do Cristianismo em Israel (a Santa Kabbalah), e com a essência oculta da Maçonaria. Partidário de um nacionalismo místico onde seja abolida toda infiltração católica-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: ‘Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação’. ’Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito acima. Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda parte, os seus três assassinos - a ignorância, o Fanatismo e a Tirania”.

Não desprovido de senso de humor, Fernando Pessoa acrescentava sempre a um seu possível auto-retrato cambiante: “Fernando Pessoa nem toma qualquer crítica que se lhe faça, como um ato de lesa-divindade” nem se julga mestre nem chefe nem mesmo de cozinha… Tendo preparado ciosamente os mapas astrológicos dos três poetas que o visitaram, desde criança criava personagens que com ele brincavam e falavam, aduzindo enigmaticamente: “Não sei, bem entendido, se realmente não existiram ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos”. Aos seis anos de idade, já redigia cartas a si mesmo, enviadas por um misterioso Chevalier de Pas e na longuíssima dissertação sobre seus heterônimos que enviou a seu amigo, o excelente crítico e ensaísta português Asolfo Casais Monteiro, exilado no Brasil devido ao regime salazarista, ele lhe pede que não revele a parte ocultista, esotérica de sua “iniciação” metafísica, quando começou a traduzir Vozes do Silêncio, de Mme. Blavatsky, a mística russa fundadora da Teosofia e autora de A Doutrina Secreta que campeou no Tibet. Desinteressado da sensualidade: “talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem”. E ainda: “Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia, sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida”. Até aproximar-se do deslumbramento cromático das vogais, como Rimbaud, daquele “assombro vocálico em que os sons são cores ideais”. Em 1935 (nascera em 1888) morre fisicamente de uma cólica hepática no Hospital São Luís dos Franceses, escrevendo a lápis sua útima frase e em inglês: “I know not what tomorrow will bring” (“Ignoro o que trará o amanhã”). Está enterrado - poderia ser em outro lugar? - no Cemitério dos Prazeres, de Lisboa.

A fascinante mutiplicidade de aspectos, às vezes conflitantes, de Fernando Pessoa, é completada, mais do que por seus conjecturais dados autobiográficos, pela sua poesia, da qual excertos significativos estão incluídos neste volume, formando uma sintética Antologia básica. João Alves da Neves contraiu com os seus leitores brasileiros a obrigação, por assim dizer, de publicar os seus demais artigos e conferências sore Fernando Pessoa e autores eminentes portugueses como Aquilino Ribeiro e o sublime poeta Mário de Sá-Carneiro. Sua obra crítica esparsa em revistas, jornais e mesmo em outros livros, nao pode permanecer dispersa. Se ao selecionar poetas modernos portugueses prestou um serviço altamente importante para o conhecimento, por parte do Brasil, do melhor que se produz em Portugal (Editora Civilização Brasileira, 1967) é indispensável que saibamos, cada vez mais, sobre a sensibilidade e a inteligência portuguesas, uma das arquitraves fundamentais da nossa própria brasilidade. No amálgama étnico e de culturas do Brasil, o permanente laço de união tem que ser, como o foi para Fernando Pessoa, a pátria interior - a língua portuguesa.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1985) 2022. “Fernando Pessoa III, o Poeta Singular e Plural de João Alves das Neves (Editora Expressão) .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.