Fernando Namora

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1977-06-20. Aguardando revisão.

Médico, o escritor português Fernando Namora, 58 anos de idade, poderia diagnostcar com mais precisão sua conduta instável que o fez fugir e uma entrevista e finalmente aceder na sua concessão, durante sua meteórica passagem por São Paulo. Oscilando pendularmente entre a gentileza e a fadiga reiterada várias vezes, apresentou a falta de repouso como excusa clínica legítima para a pouca disposição em conversar sonbre a sua criação literária e sua estada rápida no Brasil, onde proferiu uma palestra na Casa de Portugal, no bairro da Liberdade, sobre Camões, no dia das Comunidades Portuguesas.

Numa tática quase militar em que a estratégia se alterna com a tenacidade e as boas maneiras, consegui no entanto chegar a essa breve trégua, este fragmento de entrevista que focaliza alguns aspectos sumários da indecisão hamletiana e da importante criação literária do autor de O Homem Disfarçado.

O Sr. atribui ao intelectual um papel ativo e de consciência política lúcida na História das nações?

“Antes de mais nada, eu tenho a impressão de que um intelectual, pela sua sensibilidade, pela sua educação e até pela sua experiência, tem, antes de mais, de saber captar quais são os verdadeiros valores em que ele se encotra integrado. E, uma vez feita essa captação, ele deve tentar ou conseguir dar-lhes a interpretação adequada e transmitir o que ele próprio pensou desses valores que, digamos assim, ele vai inventariando sucessivamente. Visto que o povo vai sendo recriado pela sua própria experiência através da História e o intelectual está colocado pela sensibilidade a que me referi há pouco para apreender o que possa ser a evolução de todas essas experiências coletivas que conduzem a que os povos tenham que, em certas fases, se redefinirem.”

O Sr. atribui então ao intelectual um papel de precursor avançado, de sismógrafo?

“Sim, visto que o intelectual, por educação, por definição, por experiência histórica, é, de modo geral, um inconformado, um inconformista e costuma preceder os fatos históricos em que esse inconformismo nos é transmitido ou nos é revelado por todo um povo como entidade coletiva. Digamos que o intelectual costuma ser um prenunciador dos grandes movimentos sociais, dos grandes movimentos políticos, quer dizer, dos movimentos que vão transformando a História.”

Agora, se nós pudéssemos chegar mais perto um pouco da sua obra, eu gostaria muito de situar, por exemplo, o seu desassombro, a sua temeridade mesmo, em grandes momentos em que Portugal vivia mergulhado na ditadura salazarista e em que o Sr. foi um daqueles que, às vezes de maneira nada oblíqua, denunciaram o jogo de poderes e contribuíram para o desmascaramento dos problemas portugueses através do engodo do salazarismo. Ou estou sendo muito radical?

“Não, não está sendo radical. O que está talvez é a por-me em mim e em alguns dos meus confrades um mérito que não nos pertence inteiramente. Digamos que eu pertenço a uma geração que foi, toda ela, uma geração insubmissa. E uma geração que, talvez pela primeira vez na História literária portuguesa tentou inventariar o que era efetivamente a realidade portuguesa no seus mais diversos estratos, desde o campesinato até o meio citadino. De modo que uma geração que se impõe a si própria essa tarefa de inventariação terá de encontrar problemáticas novas, problemáticas cujo tratamento representou na altura uma manifesta audácia, mas foi uma audácia que não atemorizou. De modo que, se mérito houve, foi de fato toda uma geração que toda ela foi definida por esta atitude de inconformismo perante uma situação.”

Qual é o prisma sob o qual o Sr. vê as características do povo português, quais são as constantes da psique portuguesa, independentemente da ditadura ou da liberdade?

“É claro que a pergunta engloba, desde logo, o conceito do que é uma Nação, uma Nação como entidade popular viva, dotadas das suas características, das suas particularidades que através da História vão sendo criadas, vão sendo sedimentadas, vão sendo formuladas e retificadas etc. mas que, de qualquer modo, acusam um denominador comum que representa esse vínculo identificador do conceito de nacionalidade. Claro que nós, o povo português, somos um povo que já tem vários séculos, suficientes para já ter adquirido esse tal vínculo identificador, que o tem efetivamente. Digamos que o povo português, como qualquer outro povo, adquiriu o seu molde vivencial e seu molde cultural e seu modo de estar no mundo. E acho que o povo português, efetivamente, tem características que são singulares.” E entre essas, quais as que o Sr. ressaltaria?

“Não será difícil dizer, visto que essa singularidade é muitas vezes feita de contrasensos. É um povo com uma grande capacidade de responder a desafios e também por vezes manifestando um certo derrotismo, um certo abandono perante essa mesma resposta muito viva e até empolgante a esses desafios que vai criando. Eu costumo dizer que o povo português, talvez se possa dizer dele, que é de certo modo uma das exceções a essa lei muito discutida, esta lei antropológica do território, quer dizer que tem sido através da História, pelo menos: o povo português necessitar de estar em condições que lhe sejam particularmente adversas para que descubra em si próprio essas tais potencialidades que no fundo representam a sua capacidade e representam a sua própria definição como povo específico. Isto é: é fora do seu ambiente, na maioria das vezes em parte tem sido sempre um povo emigrante através da História, é fora do seu contexto, é fora do seu território onde ele, como seria de esperar, poderia tornar suas virtudes mais evidentes, mais eficazes. Ora, o que tem sucedido é que muitas vezes nessas tais condições adversas, que são as condições da maioria dos emigrantes, que o português se revela com toda a sua bravura moral e essa sua rijura física que o faz suportar grandes contrariedades e que, apesar de tudo o faz realizar grandes obras, apesar dos contratempos e quanto essas grandes obras exigem e exigiram.”

Estou errado em supor que a sua trajetória literária foi exatamente inversa à de Eça de Queirós, em certo sentido: quer dizer: em A Cidade e as Serras Eça de Queirós exaltou as virtudes rurais do povo mais simples, do campo de Portugal, contra a sofisticação de Paris, de uma capital? Quando leio seu livro O Homem Disfarçado eu sinto que o Sr., ao contrário, partu de um meio rural, com o romance O Trigo e o Joio para um meio citadino e agora o Sr. está num discurso mais amplo, que abrange problemas como a tecnocracia, a reificação do homem, além da dialética do coletivo oposto ao individual. Estou errado nessa suposição?

“Não, não está errado, embora talvez as suas palavras justifiquem não é bem uma retificação mas um certo esclarecimento. O meu itinerário de escritor, digamos que tem reproduzido uma espécie de itinerário geográfico por mim percorrido. Eu comecei a minha obra por um ambiente citadino, os dois primeiros romances têm um ambiente citadino provinciano. Por que? Porque eu fui um colegial e um estudante universitário de uma cidade provinciana. De modo que eram naturalmente os problemas que eu próprio contactava eram os meus próprios problemas de adolescente, os problemas da adolescência integrados no meio universitário, integrados numa tal geração rebelde e combativa a que eu me referi há pouco e naturalmente que esse primeiro ciclo da minha obra já é um ciclo citadino mas de cidade provinciana. Entretanto, eu termino o meu curso de medicina, fui exercer a profissão médica em meios rurais, a minha experiência médica refletiu-se na minha experiência de escritor e os meus livros vão traduzindo essa minha experiência rural. Assim publiquei vários livros relacionados com essa experiência como Retalhos da Vida de um Médico, como O Trigo e o Joio que citou há pouco etc. Entretanto, vim para Lisboa, é uma atração de todo provinciano, queimar as asas à grande Capital, e a minha experiência passou a ser outra: a de uma urbe grande com uma complexidade de problemas e com uma outra perspectivação do homem, diferente, mais cosmopolita do que tido sido até aí. Nesse ciclo citadino escrevi vários romances que lhe são correspondentes, entretanto, por razões várias, comecei a viajar, comecei a ter contacto com outros mundos.”

Contra a sua vontade inclusive?

(ri) “Contra a vontade, parece um contrasenso mas assim é. Tornei-me um viajeiro a contra-gosto e um viajeiro tenho continuado a ser. Ora bem, a partir desse contacto com outros ambientes naturalmente que as minhas problemáticas foram sendo alargadas, mas interessou-me fundamentalmente uma confrontação do homem português com os outros homens. Nunca me alheei por consequente dos temas e das problemáticas do meu país, mas nesta fase já numa perspectivação com problemas, digamos, de uma ordem mundial. Assim nasceu uma nova série, um novo ciclo dos meus livros que eu poderei chamar, um tanto preconceituosamente, de”um ciclo Cosmopolita”. E nesse ciclo tenho continuado por razões várias. Ainda recentemente publiquei, há poucas semanas, um outro livro sobre a América do Norte, a sociedade norte-americana.”

Qual é o título?

Cavalgada Cinzenta, livro esse que mais uma vez me serve de pretexto, ou melhor dizendo, em que uma viagem a América do Norte e ao Canadá me serve de pretexto para enunciar, formular e abordar diversas temáticas do nosso tempo mas com incidência, algumas delas, muito particulares nesses dois países e ainda mais em particular nos Estados Unidos da América.”

Que visão o Sr. tem, nesse livro, da civilização e da cultura norte-americanas? Ou como o Sr. viu os Estados Unidos?

“Antes de mais nada, para um europeu e, naturalmente, sobretudo para um português, há um choque tremendo com a realidade americana. Tudo na América é desmesura, tudo é excesso, tudo é surpresa.

É uma sociedade nitidamente com grandes extensões, uma cidade (Nova York) traumatizante e traumatizada, que tem talvez como um de seus problemas fundamentais um certo tipo de solitude. Nós falamos muito de solidão em nosso tempo etc., mas é claro que em cada país, em cada povo à sua maneira, o problema da solitude pode ter um reflexo diferente. Eu senti muito nitidamente, aliás nem foi para minha surpresa, porque quem vai lendo e acompanhando a literatura americana de hoje e vai, de quando em quando, ouvindo declarações de intelectuais americanos, verifica-se que a solitude é um problema dominante, na verdade, que de certo modo o norte-americano procura disfarçar ou pôr noutro plano, através de um otimismo superficial ou de um tipo de relação agressiva, de um dinamismo agressivo etc. Mas no fundo parece-me que é um dos temas dominantes no aspecto vivencial, esse da solitude. Mas, simultaneamente, não posso deixar de confessar que ao lado dessa desmesura e desse choque, passados uns dias de contato com a realidade americana, há qualquer coisa de fascínio. Será talvez o fascínio que dá a cidade a todo provinciano que a ela chega. Seja o que for, a verdade é que nos meus sentimentos para com a América do Norte, para com Nova York, houve sempre essa mistura de fascínio e rejeição.”

Os elementos de tensão racial, da violência sempre presentes na sociedade norte-americana, também foram fenômenos que o impressionaram?

“Sim, é claro que quando nós vamos à América ou a qualquer outro país - mas isto se dá mais com a América do Norte - talvez, vamos cheios de preconceitos, não há dúvida nenhuma. Ou melhor dizendo: vamos cheios de literatura, temos lido muitas coisas sobre a América do Norte, sobre a violência, sobre o aspecto racial, racismo etc. Encontra-se lá o racismo a vários níveis, não é apenas um racismo rácico (sic), mas a verdade é que pode, na Europa, verificar esse mesmo racismo em evolução, infelizmente. Suponho que os Estados Unidos da América, que têm naturalmente como todos os países aspectos positivos e negativos, podem ser um pouco comprometidos por essa viciação de nosso olhar quando chegamos à América, visto que é um lugar ao qual já se vai cheio de parti pris de preconceitos. Tenho a impressão que a América do Norte, como qualquer outro país, é claro, merece que se chegue lá com olhos desprevenidos.”

Na sua obra nós notamos uma modificação de um enfoque neorealista para um enfoque plural, se se puder chamar assim. Qual é a sua impressão sobre a outra superpotência a União Soviética e sobre a literatura de um Soljinitsin e dos dissidentes?

“É claro que há um elemento que pode ser fundamental nesta conversa que é o neorealismo. Claro que ele tem estado sempre acompanhado, se não mesmo adulterado, por uma série de lugares-comuns. O neorealismo não foi, de modo nenhum, uma escola, nem impunha um receituário tanto no sentido de temáticas como de tratamento literário dos ambientes e das personagens. O neorealismo foi fundamentalmente um olhar sobre as coisas, um novo olhar sobre as coisas. Mas depois cada um podia, sob o aspecto literário, não só o estilístico como outros aspectos também, da arquitetura romanesca etc, podia dar-lhe o tratamento que melhor entendesse e sobretudo que estivesse mais adequado à sua personalidade. E assim verificamos que dos escritores neorealistas, dos mais significativos, cada um escreveu à sua maneira e cada um conseguiu impor, vincar uma personalidade que é manifestamente diferenciada de todos os outros. De modo que tenho a impressão de que não houve um enfoque inicial na minha obra que depois viesse a ser modificado. O que houve é uma evolução natural que deve haver em todo escritor, é desejável, sem no entanto deixar de ter, digamos, o mesmo olhar sobre as coisas.”

Mas eu me referia mais ao desmascaramento de uma situação…

“O desmascaramento de uma situação é o dever de todo o escritor, tenho a impressão, não é? seja qual for a sua corrente ou a sua atitude literária… Fundamentalmente o escritor tem que ser um denunciador, tem que levar problemas e caberá aos outros resolvê-los.”

E os russos mencionados desempenhariam essa função?

(despedindo-se) “Pois, pois parece-me claro que sim.”

Fernando Namora levanta-se, de maneira gentil mas categórica. Seria grosseiro insistir. Ficam dezenas de perguntas sem respostas. Como ele verá a obra de seus contemporâneos, Vergílio Ferreira e Cardoso Pires? Que autores brasileiros conhecerá? Poderia explicitar a sua trajetória complexa de um reconhecimento de distorções sociais e econômicas da estrutura da sociedade portuguesa até o reconhecimento da existência de fatores não meramente econômicos mas também psicológicos e tecnológicos que levam à robotização do homem na nossa era cibernética?

Seria inútil, para responder a essas questões, esmiuçar seus livros. Neles Fernando Namora aborda outros temas: traça um painel vigoroso da miséria rural e da falência ética de uma civilização que soçobra em seu fanático e suicida materialismo utilitarista. O Trigo e o Joio, O Homem Disfarçado, Diálogo em Setembro, entre outros, têm por tema como que a constatação, pelo romancista, da advertência bíblica de que “nem só de pão vive o homem”. Focalizando os que “venceram na vida” e obtiveram posição, dinheiro, fama, poder, ele verifica paralelamente a derrota moral desses pseudo-herois da grande indústria ou das profissões liberais, minúsculos Dr. Fausto que venderam a alma ao sucesso a qualquer preço e por conseguinte morreram no plano da consciência e da dignidade humanas.

A metáfora insistente de que o mundo é um hospital - alegoria a que Fernando Namora recorre, localizando grande parte da ação de O Homem Disfarçado justamente num hospital - sugere o diagnóstico de que o mundo está precisando de tratamentos intensivos, de balões de oxigênio moral, de soros de altruísmo e de solidariedade para com o próximo. Fernando Namora passa da denúncia dos valores deformantes da realidade - imperante durante a longa noite de ditadura que isolou Portugal do mundo e da sua própria imagem sem outros espelhos que os da deformação oficial - para um plano plurinacional. É o romance em que ele mistura personagens fictícias com personalidades reais, Diálogo em Setembro que tem como centro uma reunião de sábios em Genebra para discutir a salvação da humanidade, de forma semelhante aos relatórios do Clube de Roma, da FAO, da ONU, da CIA sobre as fontes de energia e a capacidade de sobrevivência do ser humano na espaçonave superpovoada, a Terra. Em Diálogo em Setembro o autor português conslui:

“E de súbito reparamos que essa marcha audaciosa, glorificadora da inventiva humana, prossegue de olhos fechados. Nela repetimos a fábula do aprendiz de feiticeiro. Nela insistimos em servir-nos de critérios que nos poderão conduzir ao apocalipse de consciências”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1977) 2022. “Fernando Namora .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.