Fome, escuridão, tempestades de neve, arame farpado, chicote, sadismo
“Qualquer coisa pode acontecer com um ser humano, se um ser que não é humano o esmagar.” Gogol
Desde Recordações da Casa dos Mortos de Dostoievsky, a Rússia formulou a questão central do nosso tempo: diante da realidade política da privação da liberdade, a literatura não passa irremediavelmente para um plano secundário como arte e expressão individual?
Em sucessão ininterrupta, Tchekov, Valery Tarsis, Daniel e Siniavsky, Bulgakov, Kuznetsov, Zinoviev formam como que o cantochão da litania entoada pelo Arqiupélago Gulag de Aleksander Solzhenitsyn: o relato da tortura, da prisão, da morte, da bestialidade impune reduz a mera polpa empapada de sangue humano uma “literatura” extraída dos gráficos da realidade totalitária e imediata. É a abolição do estilo, desalojado pela urgência do depoimento; é o exílio da fantasia ficcional ultrapassada pela tragédia coletiva de milhões de prisioneiros, uma memória que é preciso consignar para a História – talvez inutilmente, mas de forma inevitável pelos imperativos morais da denúncia.
A brecha fulminantemente breve do 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética de 1956 (expressão mentirosa que o general de Gaulle sempre e recusava a usar, reconhecendo pragmaticamente que não há “união” entre povos subjugados nem “soviética” onde o poder emana sempre da tirania de um grupelho contra toda a população consentiu a Kruschev, por rapidíssimo espaço de tempo, revelar uma pequena percentagem da carnificina maquinada por Stalin. Até o enfant gâté russo, o poeta escassamente talentoso Evtuchenko, porta-voz bem-comportado do Partido Único, permitiu-se em sua Autobiografia Precoce descrever o horror e a indignação do povo pisoteado durante os funerais do Grande Ditador de toda as Rússias. Nunca, porém, depois da coragem moral sem paralelos de Solzhenistsyn, surgira um reforço tão contundente documentado e apavorante da realidade dos campos de concentração soviéticos quanto o que se publicou, em fins do ano passado, em Londres: o testemunho de uma prisioneira política trotskista, Maria Joffe, sobrevivente de 29 anos de encarceramento na região ártica, viúva de um dos bolchevistas mais destacados do golpe de Estado leninista de 1917, Adolphe Joffe, presidente da Delegação de Paz de Brest.
Dirigente da então única editora estatal da URSS até 1929, Maria Joffe temerariamente ousou insurgir-se, numa reunião de todos os diretores da editora, contra a expulsão de Trotsky do Partido e a perseguição em massa de todos os trotskistas engendrada por Stalin um ano antes. Só quase 30 anos mais tarde ela seria parcialmente “reabilitada” pela anistia proposta por Kruschev e poderia ulteriormente emigrar para Israel.
É uma descrição brutal, sucinta, em certos momentos permeada de sentimentalismo com relação ao filho fuzilado aos 17 anos e de um sentimento vitoriano de puritanismo com relação aos encontros sexuais nos campos de concentração gélidos: One long night (Uma longa noite), Editora New Park Publications, Inglaterra). Que preocupações com estilo, com criações arstísticas ficcionais poderiam sobrar para este informe sóbrio, monstruoso pelos reflexos do mundo concentracionário que revela, uma radiografia ética da qual seria tão disparatado exigir uma expressão estética quanto de um raio X de um crânio esfacelado pela tortura carcerária?
Maria Joffe mantém a lucidez em meio aos sofrimentos mais sádicos inventados por Kashketin, o temível encarregado das “confissões” arrancadas de seus prisioneiros totalmente indefesos. Por isso, ela constata desde a primeira página a atmosfera surrealista dos campos de concentração que precederam cronologicamente Dachau e Auschwitz do Terceiro Reich alemão.
“De forma irracional, fantástica, grotesca – a combinação de barulho intenso e cheio de estardalhaço, imundície de todos os tipos imagináveis, fome e fedentina -, tudo isto cria o espírito do campo de concentração, um espírito de escravidão sem esperança, desesperada, de uma servidão da qual tudo indica que não se pode escapar.”
Por fora, a escuridão eterna da região polar, o freio das tempestades de neve, a demarcação concreta das cercas de arame farpado vigiadas por guardas armados, completada pela paliçada de mãos erguidas, obedientes, no Partido Único quando se trata da votação e condenação dos “inimigos do regime”, portanto, “inimigos do povo, da Revolução, do gênero humano”. Por dentro, as orgias dos ladrões e assassinos comuns com as prostitutas e criminosas ao lado das celas de isolamento onde é proibido dormir, com um balde destapado e cheio de excrementos e vermes em uma cela de dois metros por um, sem calefação, sem luz, o chão áspero e gelado como cama, as paredes estreitas como chicotes palpáveis para domar o espírito e subjugar a consciência.
Não há retórica possível: como falar de espíritos indômitos diante das surras selvagens, das violações seguidas, do trabalho de impossível execução, das quotas de derrubadas de florestas sem serras elétricas, percentagens de “tarefas” cuja “recompensa” consiste em 300 gramas de “ração” diária, em meio a temperaturas de 40 graus abaixo de zero. Menos de vinte por cento do “serviço” designado significam inevitavelmente o despacho para as celas de isolamento, um passo fora da linha correspondente literalmente à execução imediata por atiradores cujos olhos medem centímetros de afastamento das linhas prescritas. Que importa a etiqueta risível de “intelectuais” aplicada à equipe de musicistas, cientistas, propagandistas comunistas e professores que prepararam a mente de milhões de alunos para o “Paraíso socialista”? Aqueles espantalhos tinham sido reduzidos a frangalhos pelas sovas violentas e constantes, o respeito por si próprios e o sentimento da dignidade humana estilhaçados, a ponto de não compreenderem mais o que lhes sucedera, nem poder conciliar sua personalidade com o que estava acontecendo. O resultado só podia ser o mesmo para todos: existir em um estado de perene e inexplicável estupefação. Maria Joffe alude, discretamente, à bestialidade dos campos dirigidos pelos assassinos e assaltantes profissionais: temidos até pelas autoridades “legais”, eles invadem o mortuário para cortar dos cadáveres o ouro que tiver sobrado em seus dentes ou nos anéis de seus dedos endurecidos pela morte ou para montar como garanhões alucinados as éguas humanas mortas e que servem de pasto à sua necrofilia incontida.
O “Serviço Médico” também se revela impotente diante das condições reinantes: um termômetro e uma seringa de injeção da qual pendem duas agulhas tortas e inúteis. Os jogos de baralho, controlados pela gang dos prisioneiros de direito penal, não acarretam dívidas em dinheiro, mas a escravidão do perdedor para o seu credor: qualquer resistência depara com a designação, incontinenti, de uma “punição” adequada, nem sempre a pior das quais é a morte.
A desvalorização da vida humana torna-se simbólica nas missões de pessoas submersas até a cintura em pântanos cheios de vermes e mosquitos e na escolha fácil entre a sobrevivência de uma mulher ou de um cavalo naquelas regiões árticas: é lógico que perder um cavalo é incomparavelmente mais grave do que perder uma prisioneira: o sacrifício do quadrúpede é punível como “sabotagem”, “atividades subversivas”, “contra-revolução econômica”: é a linha de montagem quase infinita em seu dinamismo da extensão arbitrariamente impostas desde o início por uma “clique” acionada, como marionetes, pelo Todo-poderoso Chefão da Máfia Nacional: o caucasiano “Herói” do Povo e da Geórgia: Josef Stalin.
Vários momentos destas trágicas memórias do cárcere russo evocam claramente cenas que depois emergiriam dos livros produzidos com o material teratológico dos campos de concentração nazista: Le Dernier des Justes, Treblinka, Por um Reich mais puro e outros. São os flashes chagallianos das representações teatrais em meio à esqualidez da prisão, o solo de ballet ou soirées de declamação de versos de amor. Mas a mais impressionante quebra de quaisquer padrões de comportamento humano surge quando os verdugos leem a lista dos condenados à morte e à leitura se segue o aplauso ensurdecedor de seus companheiros de degredo: toda noção de justiça, de lei, de coerência cedera lugar ao terror das “Autoridades” locais, senhores da vida e da morte:
“Quando a gente boa é executada, o aplauso se intensifica... Então os mortos eram apenas alguns milhares? Não, mais tarde, de todos os lados da floresta como uma tempestade, como uma corrente marítima crescente e que tudo submerge, vieram as notícias: alvejados, mortos a pauladas, afogados em barcaças – eles eram centenas de milhares... Uma montanha imensa de gente abatida por todos os meios se ergue, empilhada e jogada no Norte congelado... Há uma tenda na tundra para onde levam as pessoas da prisão e dali as levam para serem fuziladas durante a noite. E é isto que fizeram com o trabalhador! Um dos objetivos da Revolução, um daqueles pelos quais se lutou na Revolução! Sangrado em suas veias das próprias fontes de vida em si. (E os que ainda estão em liberdade afogam-se na vodka...).”
Não há problemas quanto ao suprimento de novas levas de prisioneiros. Lá fora, o Partido e a Polícia Secreta (naquele tempo a NKVD, atualmente a KGB) providenciavam denúncias por meio de delatores de quarteirão como os que hoje subsistem em Cuba: os trens para gado utilizados, exatamente como durante o massacre da sub-raça pelos hitleristas, para transportar em espaços exíguos, durante noites e dias a fio, os novos “inimigos do povo”, arregimentados graças a um telefonema de denúncia ou a um lapso involuntário em conversas com “amigos” prontos a denunciar para sobreviver. Como ondas gigantescas, à medida que a crueldade paranoica de Stalin o levava a desconfiar de todos e temer de forma intransitiva, não importa quem nem o que, os campos se enchiam e uma “logica” formava elo após elo nessa cadeia de sadismo: os filhos dos “contrarrevolucionários” eram separados dos pais. Não porque fossem capazes de “recuperação”, mas porque já estavam infeccionados pelo contágio das ideias disseminadas no lar: pensar era o crime mais temível e mais prontamente dizimado sem meditação.
A premeditação existia, esta sim, já na mente criminosa de Stalin, como Maria Joffe testemunha. No início da década de 20 a “Revolução” triunfara. Alguns de seus mais importantes artífices tinham terminado uma refeição abundante e sentaram-se no Parque Morozova, discutindo a questão eterna: “Qual a melhor coisa do mundo?”
- Um livro, respondeu Kamenev, sem hesitação.
- Não há felicidade maior do que uma mulher – a mulher que é tua, teu próprio ser humano, disse Radek.
Bukarin até se levantou. “Nada se compara ao sentimento de se fazer parte de milhares de outras pessoas na crista de uma onda popular, poderosa e nacionalista.
Por que irmos além do magnífico conhaque que terminamos de saborear? brincou Rykov.
Não é possível recordar as respostas de todos, mas a de Stalin calou profundamente na memória de cada pessoa presente à reunião: “A coisa mais deliciosa é elaborar um plano firme, claramente definido. E depois esperar, esperar, capturar – e você conseguir sua vingança assim”. Carlo Patskashvili, um revolucionário encarcerado e que desapareceu sem deixar nenhum vestígio de si, comenta as qualidades comuns à gente de Cáucaso, região natal de seu conterrâneo Stalin:
“Isso é como passar dias ou semanas arrastando-se pelo chão e escondendo-se por trás das pedras, teimosamente à espreita do inimigo. Nós, no Cáucaso, temos uma qualidade inegável: o instinto aguçado da fera da montanha. Esses instintos e qualidades são, portanto, inerentes ao”Grande Homem” (Stalin): a perfídia, a sede de vingança, a malignidade rancorosa, a visão aguda e predatória das coisas e também um olfato sensível, a perspicácia, a persistência e, naturalmente, a lei da selva. Só a força domina, a força e o terror que ele inspira. Além do que, há a manha ardilosa, animalesca... Um animal feroz não tem imaginação, portanto ele só consegue avaliar toda e qualquer coisa segundo seus próprios critérios. Isto é: está congenitamente presente no seu temperamento, faz parte da sua própria natureza, trair e estar pronto a duvidar de qualquer um que ele julgue suspeito de traição. O mundo do “Grande Homem” (Stalin) é um mundo de vigilância, de inimigos pérfidos e de momentâneos companheiros de viagem... Para o líder, um ser humano é ou um degrau para ele subir sobre ele ou uma vítima. Numa situação como essa, é fácil tropeçarmos numa palha que seja, e não preencher o que se espera de nós. Aí então o passo em falso cai nas garras do amigo de ontem e num instante nos transformamos na vítima. E é isto que vemos na destruição sistemática do povo russo, neste país a cuja frente ele se colocou como o cabeça suprema.”
Faz-se menção explícita da suspeita que até hoje não foi esclarecida: Stalin teria realmente feito parte da odiosa polícia secreta do tsar, a Okranka? Parece haver uma série de documentos da época que provariam, sem qualquer dúvida, mais esse aspecto repelente do Homem de Aço. E Maria Joffe desvenda o mecanismo que alimenta continuamente o Arquipélago Gulag, a vastidão de campos de concentração que se espalham como um câncer por todas as células das Repúblicas pretensamente Socialistas da URSS: cada Plano Quinquenal inclui uma percentagem de prisioneiros necessários para incrementar a execução de linhas ferroviárias, depois abandonadas por serem consideradas desnecessárias, de barragens para aumentar a capacidade hidrelétrica. E como na construção, no Brasil, da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, exatamente a mesma mortalha serve de lema à sua criação: debaixo de cada dormente jaz um cadáver, um construtor massacrado pelo trabalho forçado mortal.
O que em si não tem grande importância: cada Plano prevê uma quota estatisticamente flexível de vítimas que tombarão antes de preencher suas tarefas pré-especificadas. Estatísticas controladas, pois um excesso de mortes dá na vista e pode despertar censuras brandas, investigações inócuas, é verdade, mas maçantes. É pena que ela não revele o nome do inventor do Plano dos Campos de Concentração. Era um homem de negócios, que, por meio de cálculos de investimento e lucro concluiu que era fácil acelerar o cumprimento dos Planos: era só escolher os especialistas necessários – engenheiros, cientistas, intelectuais incômodos para o regime – e prendê-los sob a alegação de “contra revolução deliberada”. Magnânimo, Paizinho Stalin, avô benévolo de todos os Getúlios Vargas, Francos e Hitlers, Castros e Khmers vermelhos aliados da “Revolução Cultural” maoísta na China, lhes concederia o “direito” de reabilitar-se através do trabalho compulsório e gratuito nos campos, até morrerem. Desvantagem rapidamente saneável: havia novas fornadas de prisioneiros em potencial na quantidade e com a celeridade que o Grande Líder ordenasse.
A onipotência de Stalin permaneceu incontestada enquanto ele viveu, até março de 1953. Mas já durante os expurgos em massa, e mesmo antes, quando da formação do regime vitorioso bolchevista, Lenin o acolheu com entusiasmo, enquanto Stalin mandava queimar os arquivos da polícia tzarista, aproveitando-se da euforia das massas libertas da estupidez e tirania do imperador. O ex-comissário do Comércio Exterior, Lejava, confessou a seus companheiros de cela na horripilante prisão moscovita existente até hoje, denominada Lubianka:
“É claro que serei fuzilado, mas não quero levar comigo este segredo para o túmulo, portanto, ouçam com muito atenção. Shaumyan e eu sabemos com certeza que Stalin é um ex-agente provocador da Polícia Secreta tzarista, aproveitando-se. Quisemos contar tudo em detalhes a Lenin, mas julgávamos que Stalin fosse tão insignificante naquele tempo...” Outro revolucionário encarcerado, Fomich, indica o famoso livro do jornalista americano John Reed, Ten Days that shook the World (Dex dias que sacudiram o mundo) como prova de que Stalin não desempenhara papel algum de relevância nas insurreições de 1905 e 1917. É descartável para a moderna pesquisa histórica, como a feita por Harrison Salisbury em Black Night, White Snow, o aval de Lenin, que, na introdução desse livro sensacionalista e superficial, se refere a uma “descrição fidedigna dos acontecimentos (de 1917)”. Stalin ordenou que todos os exemplares da obra de John Reed fossem retirados das bibliotecas públicas enquanto viveu com ditador inquestionável do destino de todos os milhões de cidadãos da Mãe-Pátria aliada do nazismo durante o Pacto soviético-nazista.
Stalin é o arquimonstro que como um espectro ronda este livro-tabu para todos os membros dos PCs disseminados quase sem dissimulação nas redações de jornais burgueses ou “de Esquerda”, certamente aquela versão da Esquerda incapaz de autocrítica nem de propósitos democráticos. É um sintoma da letargia suicida das editoras brasileiras que alguns dos livros mais importantes sobre a era stalinista não tenham tradução em português. Entre a alienação e a pecha stalinista de “dissidência”, as nossas editoras preferem, certamente, o lucro imediato das viagens a Cuba com olhos vendados. É o silêncio da Camarilha dos Quatro – Marx, Engels, Lenin e Stalin -, diante do entrechoque entre o Cambodge do comunismo da idade da pedra e o Vietnã comunista auxiliado pelas armas e tropas russas.
Afinal, nesta global Ópera de Malandros, o Pai, Brezhnev, não nos poupou o cálice supremo da hipocrisia ao denunciar que os Khmer vermelhos “praticavam genocídio em massa e desrespeitavam os mais elementares direitos humanos”. Tudo corre de acordo com ausência pragmática de princípios, acima de critérios decadentes burgueses de ética. Afinal, o que importa unicamente não é o fim?
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Fome, escuridão, tempestades de neve, arame farpado, chicote,
sadismo},
booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
os despotismos e os totalitarismos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {12},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/04-urss/08-fome-escuridao-tempestades-de-neve-arame-farpado-chicote-sadismo.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1979/02/17. Aguardando revisão.}
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