Carlos Nejar, o poeta

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Melhores Poemas de Carlos Nejar, São Paulo: Editora Global, 1997. Aguardando revisão.

Nejar em árabe quer dizer carpinteiro e Carlos tem sido o carpinteiro de magníficos poemas ao longo de trinta e cinco anos - uma vida adulta inteira de fidelidade à poesia.

Desde as mais longínquas citações de seus primeiros versos, vibra uma tensão - a revolta diante da situação social de abandono dos pobres no campo, sem terras, sem paga justa, sem futuro. Mas a inteligência disciplina essa ira e Nejar nunca se afasta dessas figuras de aspecto humano e que agora constituem os 30 ou 40 milhões de brasileiros que vivem na mais humilhante e imóvel miséria. Um dos versos iniciais assinala, precoce:

“Os homens eram de treva,

fizeram-se escravos dela.

Os homens eram remotos

no grande túnel de pedra. (…)

Floração ali não medra.

Tudo o que nasce é de pedra. (…)

O tempo nasceu do homem,

mas o homem não é pedra. (…)

Os homens donde vieram

com seu destino de pedra?” (…)

Lúcido sempre, Nejar jamais quis dar ao seu canto um tom fácil de panfleto político. Mas sabe que a poesia tira toda a sua seiva desse terreno áspero, que é a liberdade e um ideal político totalitário não rima com a livre inspiração poética. Como ele poderia ter feito um nome nas rodinhas literárias ridículas que levam os criadores a congressos de literatura em Houston, Texas, ou em Frankfurt ou Berlim - e não quis. Mas se o poeta gaúcho não estava preso a nenhum manual de conversão política, tampouco poderia limitar-se apenas ao descampado, ao meio rural do Rio Grande do Sul. Como ele próprio reconhece e proclama;

“Embora preso ao pampa

eu sepre fui sem pátria

ou acostumei-me à ingrata

volúpia de ir seguindo” (…)

Semelhante aos poetas do romantismo inglês, e sobretudo, Wordsworth, que revelara, absorto: “O céu se estende sobre nós/ na nossa infância” -, Nejar tem da pátria uma noção que se une ao tempo que as rugas e os ponteiros dos relógios assinalam:

“Quem apartar a infância,

pode ser dela, ao menos,

absorto na fragrância

de seus campos amenos?” (…)

A pátria abrange muito mais: a pátria é o ser humano, nosso próximo, são todos os países e todos os povos, como no canto fraternal do poeta norte-americano Walt Whitman. Nejar evoca a irmandade de todos os homens sobre este frágil planeta devastado por guerras, poluição e violência:

“O homem sempre é mais forte,

se a outro homem se aliar; (…)

Por mais que a morte desfaça,

há um homem sempre a lutar.

O vento faz seu caminho

por dentro, no seu poemar”.

E na própria paisagem inaugural campestre, ele tem as primeiras e inesquecíveis fulgurações místicas, como o menino Miguilim do conto Campot Geral, de Guimarães Rosa, quando deixa a miopia e vê tudo num deslumbramento, com os óculos novos que lhe deram:

“Um dia vi Deus numa palavra

E lumminosa despontava, argla.

E Deus vagueava tudo, aquietava

As numinosas letras, quase em fila” (…)

Adão, feito da argila modelada por Deus, nomeadamente as flores, árvores, animais do Paraíso e o Nome é uma palavra, banhada de transcendência. A palavra se comunica de um ser a outro, mas também indica uma interrupção-corte, separação, morte - ou um mistério de que apenas é o símbolo, a guardiã, o caminho do Absoluto: Deus.

Do viver árduo, áspero é que se extrai aquilo que fica depois que a morte passou como um arado sobre os nossos ossos e a nossa memória: a Esperana. Esperança de vida para os que se contentam com a existência carnal efêmera sobre a Terra. Esperança, além do acaso, da destruição, da frustração para os que, como o poeta, a arrancam do Mal universal e, mesmo aleijados, a esculpem a mando de seu coração:

“Limarás tua esperança.

Até que a mó se desgaste;

mesmo sem mó, limarás

contra a sorte e o desespero.

Até que tudo te seja

mais doloroso e profundo.

Limarás sem mãos ou braços,

com o coração resoluto.

Conhecerás a esperança,

após a morte de tudo”.

Em um de seus versos mais famosos, o poeta admite, com clareza, como se contemplasse um céu colhado de estrelas:

“Amar é a mais alta constelação”.

Através de todas as etapas de sua poesia-social, mística, épica, lírica - o seu canto é, inconfundivelmente, um canto viril, que não teme os grilhões dos poderosos que pretendem deformar a verdade ou estrangulá-la. Assim, no altivo, destemid, desafiador poema em que Giordano Bruno se levanta contra a hedionda Inquisição, diz:

“Não é a mim

Que condenais. (…)

Nada podeis

Roubar-me.

A verdade sofreu

e eu sofri

no grão dos ossos. (…)

Não cedo

o que aprendi

com os elementos. (…)

Eu me fiei

ao universo

e sou janela

de harmonia indelével.

Não vos julgo.

O que se move

é a história

no caule da fogueira.

Sou de uma raça

Que procede

Do fogo.

Não podereis calar-me”.

Dos tempos imemoriais, o homem pressente e só o poeta sabe, claramente, que até para os ateus e agnósticos, existem conceitos humanos que não passam pela morte: a Verdade, a Justiça, o Amor, a Liberdade, a Ética, a Generosidade, a Compaixão, a Paz. Essa a razão para não temer aquela que o grande poeta pernambucano Manuel Bandeira chamava de “A indesejada das gentes”, a Morte. Ele vê esse momento final do corpo, senão da alma também, como o retorno cíclico de outro eu:

“Depois mina morte vai amadurecer de novo, mas será da mesma natureza. E aprenderei a falar com o mundo. E o mundo vai amadurecer como uma pera e depois vai vir uma semente com o mesmo nome. Porém, já serei enterno”.

Como para a Antiguidade Clássica, a Grécia calcada sob os pés do tosco Império de Roma, as estações que se sucedem, antecipam ao ser humano, a sua perenidade. Como exclamaria o genial poeta inglês John Donne: “Morte, onde está tua vitória?”.

O livro de Nejar, O Túnel Perfeito (1994) - um longo e culto canto contra a tirania dos controladores da mídia nesse nosso indigente Brasil - diz:

“E eu ressuscitarei na palavra”.

Basta um relance sobre a triste história da humanidade para nos convencer de que os poetas (mesmo os que escrevem em prova, como Dostoievsky), sempre ergueram suas consciências e sua altivez contra os tiranos: Ossip Mandelstamm no Gulag (campo de concentração) soviético e Stálin, García Lorca caindo fuzilado pelos fascistas espanhóis, Graciliano Ramos preso nas cadeias do “Estado Novo” de Getúlio Vargas - os exemplos poderiam se multiplicar por milênios. Mas os supremos artistas e místicos como Gandhi, Martin Luther King, Chagall, Proust sabem que a liberdade é uma metáfora da Verdade, assim como o poeta inglês Keats repetia, semelhante a uma criança que tivesse capturado um estrela e ela brilhasse agora em suas mãos:

A thing of beauty is a joy forever. Truth is Beauty and Beauty is Thruth”: “Tudo que é belo é uma alegria para sempre. A Verdade é a Beleza e a Beleza é a Verdade”.

Tendo profissionalmente desempenhado funções em tribunais, Nejar discerne com rapidez e equilíbrio de que lado está a causa justa: o contato com a fragilidade da justiça dos tribunais humanos chocou-o pelo que ela tem de venalidade, de aproximativo, de errôneo, tantas vezes. Mas essa lacuna, todos os seus livros - dos mais imoportantes da literatura escrita em português neste século - reconforta-nos sepre a mesma voz em estruturas diversas: na esfera do amor, no quadrado das relações “des”umanas, no vital da busca de Deus no solo que compartilhamos com todos, na campa estreita da Morte que nos colherá quando bem lhe aprouver, sem apelação. Essa fila de antentas sentinelas traz, em cada volume, aportes novos à visão plural de Carlos Nejar.

Seria auspicioso que a reedição desta coletânea de seus versos despertasse no leitor, o desejo de complementar sua leitura nos demais livros, cada um regorgitando mais de tesouros de conceitos e dizeres, como se a Ética e a Estética se dessem as mãos momentaneamente. O Livro de Silbion, 1963, O Campeador e o Vento, de 1966, Canga, 1971, Ordenações, do mesmo ano, O Poço o Calabouço, de 1974, Árvore do Mundo, 1977, O Chapéu das Estações, de 1978, Os Viventes, 1979, Um País o Coração, 1980, Memórias do Porão, 1985, A Idade da Aurora e Amar, a Mais Alta Constelação, ambos em 1991 e outros mais.

A poesia de Nejar nunca é uma criação esporádica ou bissexta: ele não é jamais, nem um “poeta de ocasião”, nem um poeta “à altura de seu tempo” no sentido utilizado de se usar a poesia para fins mesquinhos e perecíveis.

Como o passar do tempo comprova cabalmente, a inspiração poética de Carlos Nejar flui, constante, como um rio que atravessasse idades carregadas de heroísmo, luta, feridas, mas nunca desânimo. Tal o célere e célebre rio de que nos fala o filósofo Heráclito, nunca nele nos banhamos novamente: cada vez suas águas hão de correr, volumosas rumo a outras paragens, a servir de espelho para outros homens. Assim e a poesia desse gaúcho que estendeu a tenda da pátria por sobre todos os países e agrupamentos humanos existentes na Terra. Compreendeu desde cedo que a situação do homem, seu condicionamento social e temporal, foram sempre os mesmos: diante da Morte, diante da não-vida, que é a miséria imposta pelas castas dominantes, usurpadoras da própria floração dessas vidas. Não importa, parece afirmar o poeta universal do Sul. Os sonhos do homem nao podem ser abolidos. Os ideais da humanidade avançam, lentamente, mesmo que não sobrevenham os milagres nem seres extraterrestres. Pois, desde cedo, a centelha que iluminou todas as fases desse poeta inspiradíssimo pelos deuses foi a Fé, justificada na palavra como transformadora da condição humana.

Há pouco, durante uma entrevista concedida na Espanha, o escritor insigne do Peru, Mário Vargas-Llosa, confessou que chegara, após décadas de fecunda dedicação ao escrever romances sumamente importantes e comoventes, à conclusão que “a literatura não faz acontecer”. De fato, os livros não são granadas, nem mísseis, nem metralhadoras. Sob esse ângulo, realmente, ele não são uma ação, um gesto que muda as coisas.

Porém, como a poesia contida neste volume comprova de maneira esplêndida, os versos penetram sem pressa na sensibilidade e na apreensão do mundo e da vida, e quase impercptivelmente, vão tornando a existência um salto para a metafísica do “estado poético”. Aí, sim, a poesia age, soberana e inconteste. E nós, leitores, é que, gratos, nos engrandecemos seguindo o canto do poeta, a mais válida prova de uma transcendência mediada pela palavra.

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1997) 2022. “Carlos Nejar, o poeta .” In Poetas brasileiros contemporâneos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 4. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.