O modo autêntico de ser. Entrevista a Augusto Roa Bastos

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Inédito, 1989/03/25. Aguardando revisão.

Nunca mais, jurei mesmo, aceitarei fazer uma entrevista tumultuada. A mistura da improvisação caótica brasileira e da finíssima educação do autor paraguaio Augusto Roa Bastos tornou “lamentável”, nas palavras do próprio admirável escritor de Eu, o Supremo (Ed. Paz e Terra) a nossa tentativa de diálogo. Um canal de TV atravessou ou açambarcou o tempo que estava marcado para a minha entrevista e deixou o professor ansiando por ar puro, trancado numa sala fechada, com excesso de fumo, o que o deixou com irritação no nariz e nos olhos.

Mesmo assim, embora o magnífico criador de Hijo de Hombre (Ediciones Alfaguara, Madrid) tenha resistido inabalavelmente em não falar de seus livros, tolhido por uma modéstia raríssima entre quase todos os escritores brasileiros (90% de gênios, é claro), enveredamos um pouco pela literatura, pelas suas preferências atuais e depois não conseguimos mais sair da Antropologia e da História do Paraguai. Faltou-nos o tempo para emendar os indígenas, seus misticismos, as missões dos jesuítas, o gesto napoleônico de López numa troca de ideia coesa, através da qual se pudesse delinear melhor a arisca, mas certamente fascinante personalidade de seu interlocutor, um gentleman como quase não se fabrica mais desde que Borges faleceu...

Faltou falarmos da terrível experiência que o levou a escrever, sua participação, adolescente ainda (Roa Bastos nasceu em 1918), da terrível Guerra do Chaco, entre o Paraguai e a Bolívia. Na opinião de muitos, essa monstruosa chacina do Paraguai foi artificialmente fomentada por companhias petrolíferas da Europa e dos Estados Unidos. Para Roa Bastos, foi a decisão irrevocável, máscula, de escrever: eticamente contra tudo que tritura o direito do próximo em favor do lucro de um terceiro. Ele nega que sua literatura seja política. De fato, ela não é amordaçada por ideologismos extremistas (aliás, ele frisa que detesta ismos), mas é eminentemente social, política, cultural, econômica, ecológica e humanista. E sem abandonar nunca as leis da estética por qualquer deformação de um teratológico “realismo socialista” nem considerar a Literatura um adorno inútil, sem engajamento tanto ético, quanto estético com o Homem.

Augusto Roa Bastos esteve em São Paulo no fim da semana passada para receber o Prêmio Estado de São Paulo de Literatura, no valor de U$ 100 mil. Professor de guarani, um belíssimo idioma, para 30 alunos franceses na Université de Toulousse, na França, ali mesmo ensina História da Literatura Latino-Americana, isto é: brasileira e hispano-americana. Mora numa rua que não podia ter sido escolhida senão para ele: a rue Van Gogh. E crê na literatura nuestra com serena certeza:

LGR: Sr. Roa Bastos, falando do chamado boom da literatura hispano-americana na Europa e nos Estados Unidos, um boom do qual a literatura brasileira ficou afastada, o escritor mexicano Juan Rulfo me afirmou, em entrevista, que ele julgava a literatura brasileira, especificamente, a melhor e mais importante das três Américas. Isso lhe parece um exagero?

RB: Não, eu compartilho da opinião de Juan Rulfo. Dentro de minhas possibilidades de leitura em português, tanto no original, quero dizer, quanto em traduções para cotejar as duas versões, a literatura brasileira tem uma coerência maior, como a que deve corresponder a um país [falta algo no artigo]. Não interessa, evidentemente, um cotejo quantitativo, mas sim qualitativo e aí minha opinião coincide com a de Rulfo, e já a exprimi em várias ocasiões.

LGR: O Sr. se interessa por quem: por Guimarães Rosa?

RB: Sim, sim, é um dos meus autores contemporâneos prediletos. Se a tradução para o espanhol foi bem-feita? Creio que sim, por Angel Crespo, comparei-a com o original. Aliás, eu conheci pessoalmente Guimarães Rosa, fomos amigos, viajamos juntos para participar de um Congresso de Escritores em Berlim.

LGR: E com quais autores hispano-americanos o Sr. tem mais identificação, mais empatia?

RB: Olhe: não tenho predileções.

LGR: Mas qual é, por assim dizer, a sua “família”?

RB: Não me reconheço em nenhuma delas. Às vezes alguns escritores hispano-americanos e eu somos assim primos-irmãos. Eu sou simplesmente um leitor, não leio como um escritor o faria. Tenho então ciclos, porque o meu gosto, como leitor, varia. E aí há também ciclos de retorno geralmente.

LGR: E atualmente, esse ciclo...?

RB: Estabiliza-se em dois autores que para mim são fundamentais da literatura latino-americana e que constituem ao mesmo tempo polos muito opostos dela e muito complementares um do outro: são justamente Juan Rulfo e Jorge Luís Borges. Um procede do âmbito da linguagem rural e do México, ao passo que Borges está saturado de cultura universal – inglesa e francesa, os centros principais de cultura -, mas os dois formam a oposição perfeita, um é rural e outro urbano. Borges é por excelência um autor do meio urbano...

LGR: E de abrangência cosmopolita?

RB: Cosmopolita, sim.

LGR: E como o Sr. vê a sua contribuição à literatura latino-americana?

RB: Eu? Não vejo de maneira alguma qualquer contribuição minha!

LGR: Mas como? O Sr. é um dos autores mais importantes que há nessa literatura!

RB: Ah, creio que isso não passa de um exagero, talvez motivado pelo afeto e pela primeira impressão da leitura do que eu escrevi porque em primeiro lugar tenho a declarar que não sou um escritor professional. Comecei a escrever muito tarde, depois dos trinta anos de idade, ao sair rumo ao exílio.

LGR: Mas Ítalo Svevo também começou a escrever aos 56 anos de idade...

RB: Sim, mas com isto eu quero dizer que nunca tive uma profunda vocação par escrever, foi provavelmente o exílio.

LGR: Como opção social e política?

RB: Não, não! Porque eu não faço uma literatura política nem regionalista. Eu sou refratário aos ismos. Já li obras que aderem ao maneirismo, mas não suporto esse ismo.

LGR: O surrealismo...

RB: Claro, tudo isso tem que existir, mas dotado de estruturas profundas, não como uma superfície experimentalista, na qual se dão tais e tais receitas. Por isso eu digo que não sou um escritor profissional. Eu escrevo sempre aquilo que eu gostaria de ler e que é uma obra que não acho por aí, por isso eu a invento, baseando-me em meu gosto pessoal e o esquema muito estreito de minha visão do mundo e dos valores da literatura. Escrevi pouco, escrevo só quando já não aguento a irrupção dessas forças interiores que nos levam a cumprir uma determinada tarefa. Eu creio que jamais poderia escrever, por exemplo, o livrinho anual, um luxo que se permitem os escritores profissionais. Escrevo quando não suporto mais a febre, compreende?

LGR: E que foi que o Sr. não suportou mais ao escrever Eu, o Supremo?

RB: É um tema que deriva da verificação do poder absoluto.

LGR: Um tema ético?

RB: Ético, universal, mas ao mesmo tempo muito local: o a país que é o meu e que se chama Paraguai nasceu da institucionalização do poder absoluto. Sobre a base de uma Constituição de Poder de Roma Antiga, o Paraguai começou com um Consulado, depois com um ditador...

LGR: Um pouco como o conceito do poder absolutista dos reis Luiz XIV E Luiz XV dos reis da França, não?

RB: De certo modo, sim, mas adaptado à escala de um país composto de indígenas, pequeno, enfiado na selva, uma ilha: eu costumo dizer que o Paraguai é uma pequena ilha rodeada da terra...

LGR: E de terras gigantescas como as do Brasil e da Argentina, não?

RB: Precisamente, é um país que já nasceu sitiado, por fora e por dentro. A primeira República do (Hemisfério) Sul, como gostava de orná-la o Dr. Francia, ditador, nasceu com a institucionalização do poder absoluto. E até hoje não pode sair deste sistema, por dentro.

LGR: Por fora, o que significou para o Paraguai a guerra contra o Brasil, a Argentina e o Uruguai unidos?

RB: Para o Paraguai significou a sua destruição total! E o que me assombra é que o Paraguai não se tenha extinguido biologicamente e politicamente como país!

LGR: Tem havido certa revisão, por parte de alguns historiadores, da figura de López, dando-lhe até alguma razão para agir como agiu.

RB: Bem, razões ele as tinha, mas o que acontece é que não soube ornao-las como um verdadeiro estrategista...

LGR: Por que era um passional?

RB: Claro, ele era um homem que tinha sido criado em meio ao poder absoluto e o poder absoluto é cego, tem apenas um olho ciclópico que vê outra realidade. E além de não ser estrategista, López não tinha dinheiro nem uma campanha militar estruturada, estava embalado pela grande farândola napoleônica, embora tivesse alguns militares improvisados, como o General Diaz, que esse, sim, tinha um temperamento natural de estrategista. No entanto, López cometeu vários erros desde o princípio, como invadir o Brasil pelo Norte e também a irrupção napoleônica de invadir Uruguaiana...

LGR: Ele cometeu quase que um suicídio nacional?

RB: Sim, uma vez explodida a guerra, com seu caráter sagrado, ele não tinha opções. O povo por si já estava habituado a esse misticismo do poder e à lealdade e à obediência ao seu Chefe natural, daí que o país pagou muito caro por essa aventura.

LGR: O esmagamento da empreitada dos Jesuítas, criando a Comunidade Guarani também teve resultados desastrosos para o país?

RB: As missões jesuíticas abarcavam o Paraguai inteiro, depois é que o país foi desmembrado de partes de seu território e as Missões foram para outros locais, mas eram inicialmente Missões Jesuíticas dos Trinta Povos da Nação Guarani. Depois ocorreu o que o Sr. deve conhecer: foi necessário repartir entre Portugal e a Espanha as missões, e a Portugal lhe couberam Sete Povos até à expulsão dos jesuítas do Paraguai já em início do século XVIII.

LGR: Mas então o Paraguai é um país de sonhadores, de utópicos?

RB: Como, se os jesuítas não eram paraguaios?!

LGR: Mas houve a adesão do povo (tanto na empreitada de López como no episódio das Missões jesuíticas): o Paraguai, ou melhor, os guaranis são místicos?

RB: Mas o Paraguai tem um povo mestiço!

LGR: Mas referindo-nos aos índios guaranis: são místicos?

RB: Sim, os guaranis são místicos, toda a sua concepção do mundo é fundamente religiosa, por isso os jesuítas os chamavam de “os teólogos da selva”. Tinham um sistema teológico completo...

LGR: Toda uma hierarquia, toda uma teofania?

RB: Sim, além disso a vida inteira do guarani estava ritualizada, todas as danças, o calendário, cada momento da vida indígena nativa correspondia a um ritual, cada ato da comunidade tinha um forte componente religioso. Quando os jesuítas depararam com ela logo a canalizaram, naturalmente, para sua religião essa religiosidade espontânea dos guaranis. Produziu-se um sincretismo religioso com o Catolicismo, os jesuítas foram muito hábeis em aproveitar alguns traços que já faziam parte intrínseca da natureza religiosa dos guaranis.

LGR: Então esses dois episódios demonstram que o Paraguai queria romper com um sistema, não no sentido marxista de opressão, mas da afirmação de um verdadeiro indianismo, com a afirmação de valores autóctones, não os literários de um Chateaubriand, de um Cooper, de um José de Alencar. Os jesuítas não se renderam perante a grandeza ou até superioridade de uma cultura religiosa?

RB: Creioq eu tanto o episódio de López como das Missões jesuíticas têm muito pouca semelhança entre si e não podemos esquecer que os jesuítas vinham com uma missão que lhes tinha sido confiada pela Coroa Espanhola: especificamente a de submeter os índios, cristianizá-los e pôr fim a rixas por problemas de posse de territórios, de hierarquias etc; por isso eles vinham para criar as reducciones (reduções) guaranis, ou seja, reduzi-los a um sistema de religião e de civilização que não era o deles, os indígenas. Por isso, sob esse ângulo, a obra dos jesuítas também foi de certo modo “uma colonização”. Só que muito mais atenuada e de caráter diferente das encomendas e a exercida pela colônia administrativa, não é? A tal ponto que se chegou a um ponto de tensão entre a colônia administrativa e as Missões jesuíticas, após algum tempo. Mas é verdade que como evangelizadores eles foram conquistados pela obra...

LGR: É justamente o que eu estava tentando dizer...

RB: Os jesuítas com as Missões dos 30 povos chegaram a ter 100 mil seguidores indígenas, o que era espantoso, o fato de eles terem vencido suas barreiras e recusas no plano espiritual. Além do que, era da própria índole dos índios: uma índole gregária, que anelava a Ordem...

LGR: Houve uma identificação de propósitos, por assim dizer, com os jesuítas?

RB: Claro, e aí o idioma, a “língua geral” era o guarani, pois as tribos não se entendiam umas com as outras em espanhol.

LGR: O que distingue, na sua opinião, os guaranis dos incas, por exemplo?

RB: Eu não sou antropólogo, mas se não tinham a necessidade de exercer o poder, como os incas, os guaranis ambicionavam permanecer unidos, combater juntos, porque antes de cristalizar-se, a raça guarani teve que lutar muito com outras tribos indígenas.

LGR: Eram guerreiros?

RB: Sim, “guarani” é uma palavra que significa guerreiro. Eram anteriormente guerreiros nômades, por isso cobriam um território tão extenso.

LGR: E essa cultura subsiste ainda hoje, com seus mitos e mesmo com, para usarmos a terminologia acadêmica, sua literatura também?

RB: Claro, uma literatura oral importante, porque veja: foram feitas compilações importantes recentes, já que antes aos espanhóis recolher esse material não lhes importava minimamente.

LGR: Ao contrário: até o destruíam!

RB: Destruíam. Mas no decurso dos últimos 50 anos, digamos, como aqui no Brasil também, surgiram dados importantes dessa raça que não chegou à escrita, como os mexicanos com seus glifos ou os incas com suas inscrições, entretanto, segundo etnólogos, filólogos, antropólogos desde aquela época, criaram uma língua perfeita. É o que resta como escombros de uma grande cultura oral... Eu, como não sou linguista, sei, no entanto, que a primazia básica, apesar da imposição do espanhol, é a língua guarani, mesmo com sua alteração no léxico. Contudo os mitos passam de uma época à outra e ela permanece como uma cultura basicamente mítica, forte, cujo idioma sobreviveu por várias circunstâncias, como a da República Jesuítica dos Guaranis e sobretudo graças à perfeição desse idioma, constatada desde os primórdios da colonização quando os primeiros gramáticos espanhóis aprenderam o guarani, criaram gramática dessa língua e dicionários dela, que formou seu léxico depois do ano mil, por volta de 1200, 1300 os primeiros núcleos. É uma língua polissintética, como o alemão, de maneira que é muito plástica e adaptável às necessidades naturais de expressão do ser humano.

LGR: Para finalizar, professor Roa Bastos, pois vejo que o Sr. tem compromissos inadiáveis: hoje em dia, com tanto progresso tecnológico, na “aldeia global” entrevista por Marshall McLuhan, na era em que o homem foi à Lua, o Sr., mesmo sem dispor de bola de cristal, acredita que essa cultura possa ser salva ou será impiedosamente exterminada?

RB: Que pena que toda a nossa entrevista, temo, tenha sido tão incoerente, não é? Mas, respondendo à sua pergunta, tudo é conjectural, claro, mas se as culturas autóctones nossas já não tiverem sido exterminadas, creio que os guaranis e outros grupos indígenas sofrerão o mesmo processo de genocídio, não só físico, mas cultural também de toda a América Latina. O mero fato de quererem assimilá-los, incorporá-los, já os anula, os dissipa como uma entidade cultural própria.

LGR: Mas seria uma grande perda para a humanidade tal infortúnio, não?

RB: Toda erosão de uma cultura autóctone qualquer no mundo significa uma drenagem tremenda para a cultura global, porque tudo está interrelacionado. Somos uma galáxia. Todas as culturas antigas indígenas da América Latina mantêm uma fidelidade muito grande a seu modo de ser específico, o que em guarani se chama cm uma palavra muito bela, intraduzível: tê kô, que seria assim como “o modo de ser de cada grupo ou de cada um” e kô etê que é “o verdadeiro e absoluto modo de ser”. Esse kô etê dos guaranis manteve-se como uma força nuclear cultural e humana muito forte e nem as agressões do Tempo e de todos os tipos conseguiram destruí-lo, não é? Seu núcleo é ao mesmo tempo muito sólido e muito espiritualizado. Seria realmente uma catástrofe que essa gente desaparecesse.

LGR: E que se perdesse também sua literatura...

RB: Sim, que as recompilações mostram ser de uma beleza alucinante!

LGR: Algo assim como o Popol Vuh guatemalteco?

RB: Sim, embora o Popol Vuh emane de uma cultura mais avançada, mas ambas têm a mesma origem, a mesma autenticidade, que devemos preservar, o mesmo kô etê, seu modo autêntico e absoluto de ser.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “O modo autêntico de ser. Entrevista a Augusto Roa Bastos .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.