Nadine: a arte da denúncia
Torna-se urgente a tradução, no Brasil, de um feixe de reflexões e ensaios da corajosa escritora sul-africana Nadine Gordimer, há pouco coligido no livro The Essential Gesture. A resenha a respeito no New York Times, sinceramente, não faz justiça à coerência, à lucidez e ao talento da autora de An Occasion for Loving e outros romances, vários já publicados no Brasil.
Creio que ao longo das várias décadas da vida de Nadine Gordimer (nascida em 1922) inevitavelmente alguns momentos sejam menos convincentes do que outros, ou expressos de forma menos perfeita. No entanto, lido no original, The Essential Gesture coloca as questões fundamentais para a atitude e o comportamento de um artista em uma sociedade chocantemente injusta. Ela deveria calar-se diante do apartheid dos brancos contra a maioria negra de seu país? Um grande músico como Sviatoslav Richter deveria abster-se de tocar piano, preferindo combater o stalinismo? Quais são as fronteiras entre a arte e a rebelião contra um Estado totalitário?
Das três opções: exilar-se, calar-se ou lutar, Nadine Gordimer – como Doris Lessing na antiga Rodésia, hoje Zimbábue – não hesitou em denunciar o racismo impune do governo afrikaaner. A autora já teve vários de seus livros banidos em seu próprio país, mas isso não a abate.
Calar-se, ela escreve, seria ser cúmplice da discriminação. Mas – e aí está a extraordinária lucidez da romancista – a mera agitação política não basta. Há vários escritores que se intitulam “a favor do progresso” e, no entanto, contribuem para o oposto: atrasam o nível intelectual, produzindo livros com o propósito de ganhar fama e dinheiro apenas. Não, Nadine Gordimer afirma, dando seu exemplo pessoal, embora sua modéstia a impeça de citar a si mesma: se um escritor está inflamado por uma causa social de sua época e de sua pátria, ela considera que é seu “dever revolucionário”, ter estilo, admitir a intrusão da estética no terreno ético.
Assim como o inferno do racismo sul-africano não permite imaginar-se a produção lá de humoristas, nem por isso a veemente indignação de Picasso contra o massacre da cidade indefesa, Guernica, permitiu que ele fosse infiel ao valor da arte. A arte ruim é parte do proselitismo demagógico e barato dos palanques de comícios, ela insiste, concordando com Gabriel Garcia Márquez: “O dever de um escritor revolucionário é escrever bem”. O que não invalida a grande arte de um misantropo como Flaubert. O gesto essencial a que se refere o título do livro não tem a ver com o fato de um artista ser branco ou preto, mas sim com a qualidade que precisa ser, indispensavelmente, inseparável do que ele pensa e escreve.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Nadine: a arte da denúncia},
booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
os despotismos e os totalitarismos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {12},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/01-introducao/02-nadine-a-arte-da-denuncia.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, Sem data. Aguardando revisão.}
}