Vaqueiro de Roma

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Veja, 1971-2-17. Aguardando revisão.

“Eu sou um vaqueiro tangido para outros sertões pelo Coronel terrível do Fascismo italiano”. O sotaque claramente romano, o rosto cinzelado como o de um personagem do Renascimento italiano, Edoardo Bizzarri, 53 anos, desde 1948 dirige em São Paulo o Instituto Cultural Brasil-Itália, a Casa de Dante e colabora com o Consulado-Geral como adido cultural. Na mesma sala em que dá aulas sobre Maquiavel, Petrarca e a Divina Comédia, ao lado dos volumes ilustres está sobre a mesa a edição recente de sua tradução para o italiano de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Dizendo-se exausto como um Hércules que liquidou uma Hidra de Lerna - “afinal eu já tinha traduzido durante quase um ano o Corpo de Baile do autor mineiro” -, Bizarri não está satisfeito: acha que a tradução italiana de Grande Sertão deveria ter incluído o subtitulo “Il diavolo per le vie” ( O diabo solto nas ruas), que lhe parecia mais sugestivo. “Mas uma reunião de vendedores de livros derrotou minha sugestão por critérios de vendagem”, explica. Modestamente, não acrescenta que sua admirável tradução de Corpo di Ballo entusiasmou o poeta Ungaretti, toda a crítica italiana e já entra em sua quarta edição pela Editora Feltrinelli. “Mas para traduzir Miguilim, Manuelzão e os outros contos magníficos daquela coleção eu contei com dezenas de cartas do autor, organizei um fichário com cerca de sete mil verbetes sobre plantas, animais, rochas, costumes, vocábulos, arcaísmos e mineirismos daquele mundo mítico e eterno do Sertão. Para o Grande Sertão, não, fiquei sozinho, mas moralmente comprometido com Guimarães Rosa, a fazer a tradução. Numa de suas últimas cartas ele me dizia, um mês antes de tomar posse na Academia Brasileira de Letras e morrer de enfarte: ‘Você torne a vestir a roupa de campeiro, montado em cavalo malhado, e saindo por essas chapadas e veredas sertanejas nossas. Deus vos guie. Grato, grato é que estou’” – terminava a última carta. “E eu não tive remédio senão me trasnformar no jagunço Riobaldo que lutra contra coroneis crueis, mas com dificuldades de traduzir um escritor genial e de lutar com a tarefa no tempo de dois anos estipulado sem dilatações de prazo pelo entusiasmo do editor Feltrinelli.”

O autor e o tradutor nunca se encontraram a não ser rapidamente, durante uma recepção em São Paulo, em 1956. Nas cartas, Guimarães Rosa desenha sementes de frutas tropicais e as diferencia com terminologia erudita botânica em latim. Desenha para explicar melhor o que são chifres agamelados. Pede que Bizzarri “traduzadapte” os nomes de vaca (Dabradiça em vez de Dobradiça) e do cachorro Gigão; sugere como equivalente da expressão “babau” (acabou-se) o kaputt alemão; fornece dados sobre sua vida sob o título de “Bobagens biográficas”. Chega a atribuir pontos à literatura que criou com Grande Sertão: Veredas: “Valor metafísico, 4 pontos; realidade sertaneja, 1 ponto; enredo, 2; valor poético, 3”. Sem se lembrar da etimologia de “sarajava”, verbo que ouvira em Minas, sucumbe solidariamente com o tradutor: “Aqui, meu caro Bizzarri, confesso que começo a sofrer com você. Deve ser assim como irradiava, transfigurava, mas é um verbo belíssimo só com aaa, não acha?” Para Edoardo Bizzarri, que sempre viveu em meios estritamente urbanos (Roma, Cidade do Cabo, Santiago, São Paulo), Guimarães Rosa não é um autor brasileiro, só. “Nós, desde criança, na Itália, crescemos no mesmo mundo mitológico que o do Sertão: nossos jagunços são centauros, Netunos, sereias. O Mediterrâneo de Ulisses é o Sertão em termos da Europa. Riobaldo é Teseu e é um heroi medieval em busca de sua alma, os jagunços são os Cavaleiros do Santo Graal transplantados para Minas. Por isso Guimarães não é regionalista apenas, é um clássico universal. Tem de Virgilio, a funda sensibilidade para a natureza, de Pascoli o fascínio pelos dialetos e onomatopeias e de Verga a força de insprirar-se em contato com gente primitiva, usando como ele uma linguagem que capta a sintaxe mental de um povo.”

Guimarães Rosa é para ele um profeta que anuncia a coisificação do homem pelo excesso de tecnologia e tenta voltar ao primitivo para recuperar a sadia dimensão humana perdida na cvilização que vai à Lua. E é um grande escritor social que antecede soluções radicais quando Riobaldo apela para o gatilho na defesa de seus direitos contra uma lei desumana. Minas Gerais com ele adquire a grandeza da Mancha de Dom Quixote e da Dublin de Joyce. Acha importante que o Brasil dê a Europa o sopro renovador de uma grande literatura: “Não existem países subdesenvolvidos, todos os países querem chegar a uma dimensão real do homem ainda não atingida”. Riobaldo, diz Bizzarri, como o Brasil, cresce em busca do ser humano integral, sofrendo os choques exigidos pelo autoconhecimento do homem desde os herois de Sófocles que exorcizam o Mal. E Guimarães Rosa é a culminação do seu amor pelo Brasil que começara com Graciliano Ramos. “Quando vi que a tradução feita na Itália de Angústia era tão horrenda, dei de presente à Editora Nuova Accademia uma tradução minha de Vidas Secas, para que a má tradução não fosse um obstáculo ao conhecimento pelo leitor italiano da grandeza de Graciliano. Se minha pequena colaboração para enriquecimento da Itália foi útil, se participei, estou satisfeito.” Como disse a Guimarães Rosa quando terminou a tradução exaustiva de Corpo di Ballo: “Agradeço pelo presente raro, que abriu nos chapadões angustiados das lutas diárias da minha vida clarões luminosos, veredas e nelas fui entrando, esquecendo o tempo e descobrindo novas dimensões do ser. Como retribuir tão precioso presente? Como agradecer? Com estas interrogações se apaga, sem resposta, a conversa do vaqueiro amador que abandona o campeio. Conversa besta, talvez, e custosa, atrapalhada e confusa. Mas eu precisava fazê-la, para sair sossegado deste sertão. Sei que você entenderá, e não estranhará nem mesmo meu pedido final: ‘Tomo a benção, Mestre Guima’”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1971–2AD) 2022. “Vaqueiro de Roma .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.