Müller, de bom humor, desmente seu próprio mito
Heiner Müller, o revolucionário dramaturgo alemão que vejo diante de mim é um homem tímido, baixo de estatura, vestido informalmente e que, logo se vê, tem um excelente senso de humor. Ri constantemente, conta anedotas e estabelece com o entrevistador uma atmosfera de camaradagem e uma cordialidade quase latina, tal o seu calor humano. Ele vem, portanto, desenfaixado e desembrulhado de todas as eruditas premissas em que o enrolaram antes de ele chegar ao Brasil: hermético, gélido, de uma esquerda rigorosa e quase esquizofrênica. Heiner Müller? E as pessoas cultas levavam meia hora para explicar a origem freudiana, brechtiana, nietzscheana, artaudiana de sua Angst (angústia) existencial.
Um mito aquele homem claro, de meia-idade que parecia na realidade querer acabar o mais rápido possível com o ritual da entrevista e ir com a turma tomar cerveja na próxima Kneipe (bar), como fazem os amigos na Alemanha? Heiner Müller nada tem do mito: sem arrogância, de uma simpatia contagiante, os olhos azuis penetrantes e que denotam uma sagacidade aguda, ele tem uma paciência infinita para se explicar. E ainda dá tempo a um jovem da região de Blumenau para servir de intérprete ágil a uma jornalista do Jornal do Brasil que não fala alemão. O diretor anglo-brasileiro Gerald Thomas comenta com gargalhadas as respostas espirituosas de Herr Müller. Surgem então na realidade, estranhamente, duas pessoas: o interlocutor real, vivo, e o dramaturgo profundo, melancólico, apavorado com a bestialidade do homem para com o homem que suas peças retratam inesquecivelmente. Muitas vezes não há ruptura e as duas pessoas se fundem numa só, como quando ele responde: “Atravessar o Muro de Berlim quando quero é cruzar uma metáfora, sim, a de que o Muro é na realidade um monumento erguido à Rosa Luxemburgo, construído por Stálin. Porque em 1918, quando essa cofundadora do Partido Comunista da Alemanha foi executada, decapitou-se com isso o fervor revolucionário alemão, a ideia alemã de uma revolução tão distante de Hitler quanto de Stalin.” Daí em diante, ele afirma e sorri: o comunismo alemão se tornou uma colônia, um seguidor obediente e sem personalidade própria do Partido Comunista soviético e suas diretrizes seguidas à risca, sem mesmo questioná-las. É isso o Muro: a cristalização da dependência alemã da liderança sanguinolenta soviética. E agora, que Gorbatchóv subiu ao poder? Agora estamos, ele crê, diante da última chance de remodelar o comunismo russo e de resolver as contradições internas das 101 nacionalidades que recobrem na realidade o que é um Império, o russo, desde 1917.
Vem à mente a cena terrível de sua peça, Hamletmachine em que Hamlet com um machado corta as cabeças de Lênin, Mao e Marx. Na Alemanha Oriental, onde mora, Heiner Müller desperta uma atitude de desconfiança no governo: recebe prêmios, mas assina uma petição para que o cançonetista dissidente Biermann não seja despojado de sua nacionalidade. O chefe de Estado, Honecker, o vê com suspeição: o teatro daquele rebelde não é a epítome de um arraigado “pessimismo histórico”? E o que ele quer dizer com sua atitude de “derrotismo construtivo”? A linha do Partido tem que ser rósea, se possível seguindo o “realismo socialista”, tudo bem claro e compreensível para o povo, nada de abstrações. E Heiner Müller, como artista, não pode deixar de perceber as falhas e contradições que existem deste lado e do outro do muro que divide as duas Alemanhas, legado do pós-guerra. “Essa é uma fronteira também continua, serenamente, a explicar entre duas perdas simultâneas de identidade.” Do lado rico, opulento, da Alemanha Ocidental, as carteiras de identidade não têm retratos de pessoas, apenas fotografias de montanhas de pujantes marcos alemães. Do lado pobre, procura-se igualmente uma identidade: displaced people? populações deslocadas? já que o dinheiro da DDR (Alemanha Oriental ou República Democrática Alemã) não tem valor, todos procuram coisas: lâmpadas, livros, liberdade de discussão, empregos bem remunerados, as delícias que a televisão do Ocidente oferece como iscas para um paraíso ali bem perto. O dramaturgo que refundiu textos clássicos da Antiguidade grega ou de Shakespeare, à maneira de Brecht, no início de sua carreira, discerne uma diferença de tempo, de dinâmica entre as duas Alemanhas. Enquanto na DDR tudo é mais lento, na parte ocidental há um frenesi da velocidade e da eficiência industrial, tudo regido pelo compasso delirante da aceleração: é preciso comprar cada vez mais; essa aceleração oca, vazia, conduz apenas ao consumo pelo consumo, a arte perde sua qualidade de expressão e se torna apenas mensagem digerível e logo descartável. O que existe na República Democrática Alemã ele não considera que seja absolutamente uma estrutura socialista; e brinca, zombeteiro: é uma Sociedade de Produção Limitada, em oposição às Sociedades de Propriedade Limitada (risos). A disposição humana contrasta mais uma vez com o ceticismo sombrio de seus dramas: sim, é verdade que ele viveu entre dois totalitarismos, o de Hitler e o de Stalin. Mas quem sabe não se possa falar de azar, mas, ao contrário, de sorte? Se não fosse isso, sobre que eu escreveria? E sorri, mas uma tristeza funda o faz baixar os olhos. Aos 4 anos de idade testemunhou a prisão e o espancamento do próprio pai, que era social-democrata, pelos nazistas, sequestradores de seu pai, rumo a um campo de extermínio em Dachau, Auschwitz ou Belsen. E logo ele, o pequeno Heiner, que pedira ao pai desempregado que o ajudasse numa composição escolar celebrando as gloriosas autoestradas de Hitler!
Ele não permite que se interponha uma pausa solene. Fala logo em seguida da posição semelhante à de Jean Genet, oprimido pela brutalidade do mundo hostil e aborda a questão enraizada na consciência alemã desde que os crimes hitleristas se tornaram mundialmente conhecidos como “holocausto”, “genocídio”, extermínio total das “raças inferiores”, dos “sub-humanos” indignos de pertencerem à parte ariana, germânica, da população terrestre. É verdade que muitos historiadores alemães e de outras nacionalidades querem fazer crer hoje que o horror do nazismo não é pior que o do Gulag stalinista, do que a escravidão dos negros trazidos para as Américas, do que os atos de bestial sadismo dos Imperadores romanos. No entanto, o genocídio “foi feito com um elemento inconfundivelmente alemão: a minuciosidade, a precisão eficiente e milimétrica. Essa Gründlichkeit alemã, acrescenta, teve um”melhoramento” inédito: enquanto Stálin mandava matar com as mãos, era uma morte manufaturada, ainda artesanal, Hitler e Himmler adicionaram ao assassínio a técnica, a “higiene”: a palavra preferida de Mengele nos campos de morte não era sempre “limpeza, limpeza”? A aparente cisão surge mais uma vez quando ele confessa, francamente e com uma ponta de autoironia, que consome muita televisão, horas a fio, embora em parte reconheça que a televisão desbota a memória, exila a imaginação e banaliza horizontalmente todos os acontecimentos. E quase sem querer ele volta ao diálogo para o tema da morte, essa morte que como nas tragédias barrocas ou de Shakespeare semeia cadáveres pelo palco, gente morta depois de torturas físicas e psicológicas, os corpos grotescamente deformados pela dor, o rosto resumido em uma expressão grotesca de impotência. A Alemanha, Heiner Müller opina, tem um instinto de morte como talvez nenhum outro povo, exceto o mexicano. A Alemanha caminha para um lento, mas inexorável suicídio: ano a ano diminui o número de bebês alemães: os alemães eliminarão a si mesmos da face da Terra por meio da esterilidade livremente escolhida? A Alemanha, ele crê, está mais interessada em manter tudo, como na parte ocidental, homogeneamente “bonitinho”, as casas bem pintadas, os jardins, mesmo com mísseis entre as roseiras, rigorosamente bem cuidados. Se os alemães ocidentais pudessem, eles iriam organizando o embelezamento e a limpeza até a Itália e aí não teriam mais a Itália como local predileto de férias para onde ir...
Quem sabe, afinal, Freud é quem tinha razão? Essa mania de ordem, de limpeza, parte de quem não se sente limpo por dentro nem organizado. Será este o caso? Os alemães conduzem pesquisas a respeito do conteúdo da urina nas piscinas da República: e qual seria o conteúdo do urânio nos territórios onde tropas americanas e russas estão estacionadas? E já que se mencionou a falta de identidade própria das duas Alemanhas que fisionomia teria um país como a Suíça na sua opinião? O de um povo de aproveitadores sem escrúpulos, que sempre lucraram com o infortúnio alheio, são cúmplices de assassinatos, quem sabe o rosto da Suíça não é um rosto, mas sim, o cofre de um banco com contas numeradas e secretas?
O Brasil o fazia lembrar-se de uma Sibéria tropical: todos sabem que a Sibéria contém riquezas minerais incontáveis, o Brasil seria a mesma coisa, um país de reservas de matérias-primas como que inesgotáveis, um país que sem retórica pertencia mesmo ao século vindouro, sem o peso da História sangrenta da Europa. As diferenças entre os ricos e os miseráveis são sanáveis. E a dramaturgia brasileira por que não estava traduzida, ao menos para o inglês? Afinal, quem é esse Nelson Rodrigues de que me falam tanto?
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Müller, de bom humor, desmente seu próprio mito},
booktitle = {Aspectos do Teatro Contemporâneo},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {11},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-11/02-o-teatro-doutrinario-marxista-na-alemanha-precursores-e-sucessores/10-muller-de-bom-humor-desmente-seu-proprio-mito.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1988/07/18. Aguardando revisão.}
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