As cartas a Milena como documento literário e da angústia de Kafka

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Inédito, Sem data. Aguardando revisão.

Franz Kafka deixou além da sua fundamental obra literária três documentos que são ao mesmo tempo literatura e documentam a sua angústia inescapável: a Carta ao Pai, o Diário e as Cartas a Milena.

Kafka conheceu Milena como tradutora de suas obras em tcheco. A partir de 1920 começam as cartas mandadas de Merano onde Kafka com a saúde já ameaçada repousa durante algum tempo.

Nenhum dos dois estava livre: ela se separava do marido mesmo sem interferência de Kafka e este continuava ligado por um noivado à misteriosa senhorita mencionada sempre como a berlinense F.B. e que mais tarde se soube ser Felicia Bauer.

Milena teve o privilégio único de ter o Diário de Kafka para ler, ela é mencionada frequentemente a partir de 1920, 21 e 22. Milena provinha de uma família aristocrática de Praga,cujo nome latinizado aparece na lápide de mármore do velho município de Praga. Um de seus antecessores foi executado como patriota da Boêmia pelos Habsburgs depois da batalha de Monte Branco.

Ela recorda aqueles personagens de Stendhal: Matilde de la Mole, mulher bela, intelectualizada, requintada, passional e generosa, maravilhosa amiga cheia de bondade e de vontade de cooperação.

Rebelava-se contra a promiscuidade erótica dos cafés literários de Praga. Incapaz de tornar infeliz qualquer pessoa, preferia às relações fugazes e puramente sexuais uma relação amorosa total e arrebatada.

Nunca foi uma sedutora vulgar nem uma bas bleu snob, mas foi a incentivadora da obra de Kafka e a primeira a intuir a sua genialidade e a primeira a amá-lo com efusão e sem limites.

É patético esse romance puramente epistolar, esta aura imaterial de desejos irrealizados, de encontros furtivos em Viena ou em Praga que de raro em raro trazem a culminação a esse diálogo amoroso subterrâneo e comovente. Ela sofria profundamente por adesão à angústia de Kafka e na sua mimetização com o amado, contraiu ou julgou contrair, movida pela fantasia amorosa, a tuberculose que já minara os pulmões daquele obscuro empregado judeu de uma companhia de seguros de Praga que falava mal a língua do país e que vivia no tríplice gueto de Kafka – o do idioma, o da religião e o da cultura. Eternamente desterrado da realidade circundante e excluído da integração.

No entanto, apesar do casamento infeliz, Milena não parecia destinada a sofrer, tão intensa era a sua alegria de viver, tão intensa era a sua vitalidade, mas a sua tendência para a melancolia que paradoxalmente opunha à sua sede de viver profundamente foi intensificada na relação com Kafka e é sintomático que o autor preferido de Milena seja Dostoiévski com a sua capacidade inaudita de sofrimento, com a sua crença no homem, no espírito, em Deus.

Através de cartas, telegramas, cartões postais estabelece-se uma comunicação desesperada, fragmentária, profunda e conturbadora, alternando-se com os sonhos alucinantes e simbólicos de Kafka – quando sonha encontrar-se diante da casa dela em Viena, com os amigos dela que o dissuadem de insistir e quando ela em sonhos se mostra inteiramente negativa diante dele – talvez uma manifestação do próprio subconsciente de Kafka temeroso de um encontro definitivo. Ou o outro sonho que é uma tentativa de despedaçar essa relação platônica e incandescente quando Kafka imagina ser ininterruptamente Milena e ela ser ele apagando um incêndio em que arde o outro e se consome angustiadamente.

E acompanhando sinistramente estes sinais semafóricos lançados de um país a outro, de uma cidade a outra, a moléstia de Kafka que mina seu organismo e faz um cerco crescente ao seu espírito e à sua lucidez. A tuberculose que o levou a dar ao médico que o tratava um ultimatum quando as dores físicas já se tornassem de todo insuportáveis: “O senhor tem que me dar uma injeção potentíssima de ópio para matar-me ou então o senhor é um assassino!”

Mas outras forças escuras e demoníacas dialogavam noturnamente com o escritor e se interpunham entre ele e a realização amorosa ambicionada pela mulher amada como forma de encontro total de corpo e espírito. Para Kafka, traumatizado por uma infância deformada e por um noivado imposto à força e pela indiferença de uma mãe inoperante diante de um pai tirânico e prepotente, a relação com mulheres seria dificil e determinaraia sempre uma tensão de medo e insegurança que o levaria quase ao misoginismo dentro do seu afastamento do mundo em busca de sua solidão majestosa e absoluta. Para Kafka, mais ainda, a sexualidade passa a ser comparada à necromancia ou seja o contato erótico passa a ser uma forma de comunicação com os mortos, isto é, com os tecidos que morrem de minuto a minuto no corpo humano renovando-se por outros. Mas para Kafka a sexualidade era como ele manifesta principalmente na novela “O Castelo” uma forma animalesca e baixa de infidelidade à pureza, um artifício material que impede a comunicação espiritual diametralmente oposto à Baudelaire e a Lorca que celebraram o culto erótico poéticamente. E certamente esta impotência mental de Kafka o levaria a isolar-se e não aceitar uma limitação que a própria psicose lhe impusera e que permaneceria invencível em toda a sua vida, porque estava ligada à sua sede de autodestruição permanente. Uma autodestruição não só como judeu – um povo que deveria ser colocado numa caixa e atirado dentro de um despenhadeiro – mas autodestruição dele próprio como membro de uma raça maldita e como indivíduo para o qual não existe esperança. Num segundo momento, ele consegue aderir ao movimento sionista e com a paradoxal ambiguidade de Kafka admitir a grandeza do judaismo, mas sentindo-se excluído da Canaã prometida. A sua irrealização amorosa, o seu desprezo de si mesmo o levam a um culto mórbido e demoníaco da sua própria angústia. Uma angústia abissal que não existe fora do artista com um abismo que se abrisse a seus pés, mas sim uma angústia metafísica encarnada no seu próprio sangue a ponto de Kafka passar a assumir a angústia, dele constituir a quintessência da angústia moderna, do homem banido da comunidade feliz que o circunda, uma angústia de raízes filosóficas e religiosas profundas ligada ao sentimento de estar exilado da terra e de lutar por encontrar uma fé, uma fé que esta angústia documenta porque como os seus personagens Joseph K e K, Kafka não penetra no Castelo e é executado no tribunal de O Processo por duvidar de uma salvação posterior e absoluta dentro do castelo ignoto de Deus que se oculta detrás das névoas da incerteza humana. O amor então passa a ser para ele não uma forma de liberação – que ele considerava impossível para si próprio – mas ele diz:

“O amor é o fato de que tu sejas o punhal com o qual inspeciono dentro de mim mesmo”. O amor é um paraíso ambicionado mas do qual ele consegue sempre fugir com subterfúgios infantis e patéticos acossado muitas vezes por aquele sentimento de ostracismo, de estar banido da felicidade terrestre que anima tantas de suas confissões:

“Devo confessar que um dia invejei um indivíduo porque era amado, estava em mãos generosas, protegido pela inteligência e pela energia, e jazia tranquilo debaixo de uma colcha de flores. Sempre tive tendência à inveja”.

Mas um destino inexorável poria término a esta correspondência elétrica, convulsa, em que a literatura ocidental atinge um de seus momentos estelares como carta de amor e de angústia.

Bruscamente, como se iniciara, a troca de correspondência cessa. Kafka pouco depois partiria para o longínquo sanatório onde breve a tuberculose o consumiria antes dos 40 anos de idade. A Milena fôra reservado um destino mais cruel ainda. Ardente patriota democrata, oposta ao totalitarismo e oposta ao antisemitismo que mesmo antes do advento do nazismo já se fazia sentir na própria Tchecoslováquia, essa católica de família patrícia com seu temperamento arrebatado e impulsivo une-se nas ruas de Praga aos judeus forçados pelas tropas invasoras de Hitler a varrer as ruas e recolher o lixo da metrópole. Voluntariamente e desafiando as autoridades nazistas ela cose na blusa uma cruz de David e aprisionada pela Gestapo é conduzida ao campo de concentração de Ravensbrück onde é encarcerada com prostitutas e criminosas comuns. A respeito de seus últimos dias nos relata a sua companheira de inferno a escritora Margaret Buber-Neumann que escapando miraculosamente e libertada pelos americanos deixou num livro de memórias chamado Prisioneira de Stálin e de Hitler um retrato comovente da Milena ardente e fascinante.

Com suas próprias palavras evocadoras:

“Desde o primeiro momento Milena e eu nos tornamos amigas e assim ficamos na vida e na morte daqueles quatro anos amargos do campo de concentração. Agradeço o meu destino ter me conduzido a Ravensbrück onde encontrei Milena. Desde o primeiro dia, assim que olhava o seu rosto sofrido, invadia-me uma surda angústia. Ela viera já doente do cárcere preventivo de Dresden. Pensava que fossem só reumatismos; tinha as mãos inchadas, estava sempre com dores fortes, sofria com o frio, com os farrapos andrajosos que nos davam para vestir de pano de estopa no campo; durante as chamadas que duravam horas não conseguia esquentar o corpo e de noite sofria incapaz de diminuir a sensação de frio com os cobertores finos e rasgados. Mas era uma mulher resistente e buscava sempre um modo de dissipar as minhas preocupações. Até 1940 estava cheia de coragem e de planos, diametralmente oposta à mentalidade das encarceradas… Milena não se tornou nunca uma encarcerada, não podia tornar-se obtusa e brutalizada com as outras… O temor de Milena era de ser levada para o que os nazistas hipocritamente chamavam de ‘transporte para os doentes’, vagões onde aplicavam injeções de estricnina no coração dos prisioneiros ou que terminavam nas câmaras de gás ou nos fornos de incineração. Eu escutava a sua voz quando soluçava à noite dormindo sobre a palha nos caixões de lenha que nos serviam de camas: ‘Oh, se ao menos eu pudesse já estar morta sem precisar morrer… não me deixe morrer sozinha e abandonada como um cachorro faminto…’ Eu enquanto estava a seu lado consolando-a acreditava eue ela recobraria a liberdade e a saúde mais tarde, mas de repente no meio das trevas da nossa cela murada tornei-me clarividente e compreendi que ela estava irremediavelmente perdida, condenada. Em 17 de maio de 1944 Milena morreu de uma operação dos rins executada tarde demais. A liberdade chegara demasiado tarde para Milena. Para nós também a liberdade chegara demasiado tarde. Todas as suas cartas dirigidas a Kafka se perderam.”

De certa maneira essa perda dá um sentimento ainda mais trágico a essa correspondência que passa a ser assim um longo e atormentado monólogo sem resposta, simbólico de dois seres isolados e marcados que se encontrariam não através da realização e da plenitude do amor, mas sim da realização do contato humano e da plenitude da literatura que os uniu ideal e espiritualmente.

Tateando inseguramente na escuridão inicial da busca de um absoluto perdido e que ele procura restabelecer, Kafka inicia suas cartas de maneira formal, com tratamento cerimonioso de cara senhora Milena e um muito cordialmente parênteses de uma carta que já contém em germem todas as caracteristicas das que se seguirão: fala-se já de saúde precária de pessoas que têm uma pátria e de incapacidade de saber tratar com outros seres sob pena de feri-los, mas a imagem abstrata de Milena já está presente no primeiro post-scrito:

“Recordo-me que não consigo recordar nenhuma característica própria do seu rosto. Vejo somente como a senhora se afastou entre as mesinhas do café, vejo a sua figura, o seu vestido”

Mas logo o calor humano de Milena o contagia e o que fora um breve aceno desperta na sua interlocutora distante um entusiasmo que se traduz em cartas longas e, presume-se, esplêndidas. Kafka confessa sua obsessão mórbida com o mundo dos hospitais, do sangue que cospe e lhe conta o acrodo que houve entre seu cérebro e seus pulmões:

“Penso somente na explicação que forjei para o meu caso e que se adapta a muitos casos. É a seguinte: meu cérebro não tolera mais as preocupações e as dores. E dizia: ’Não aguento mais, se existe alguém que se importa anda em conservar o total, tire de cima de mim um pouco deste peso e então poderemos continuar vivendo um pouco mais. Apresentaram-se: os pulmões que, aliás, não tinham muito a perder. Estas tratativas secretas entre meu cérebro e meus pulmões que ocorreram sem que eu delas soubesse devem ter sido espantosas”

Confiando-lhe a tradução de suas obras:

“Tudo que tu farás de meu livros e das traduções será bem feito, é pena que os meus escritos não me sejam mais preciosos para que ao entregá-los em tuas mãos eu pudesse realmente exprimir a confiança que tenho em ti. Por outro lado, porém, sinto-me feliz por fazer um pequeno sacrifício enviando-lhe algumas observações que me pediu sobre meu conto”O Foguista”. Será como antegozar aquela pena do inferno que consiste em repassar a própria vida com o olhar lúcido do conhecimento, quando o pior não é a visão que temos dos atos errados que cometemos, mas sim a dos que cometemos pensando então que fossem bons!”

Nas cartas se encontram frequentemente impulsos para alguns contos ou novelas como a da metamorfose de Gregor Samsa que se transforma em inseto: “Estava reconstado na cadeira de balanço e a um passo de mim um inseto estava caído de costas, fazendo esforços desesperados para levantar-se. Com prazer eu o teria ajudado, era fácil ajudá-lo. Poderia levar-lhe auxílio com um movimento e com um leve empurrão, mas eu o esqueci com a leitura da tua carta e não podia nem alçar-me. Só uma lesma chamou minha atenção para a vida que me rodeva, no seu caminho estava o inseto, agora imóvel, eu não presenciara então uma desgraa, mas sim uma agonia, o raro espetáculo da morte natural de um animal: mas resvalando por ele a lesma o endireitou: ele ficou um instante assim parado, como morto, e depois subiu correndo pela parede da casa, como se nada tivesse acontecido. Isto me infundiu um pouco de coragem, levantei-me eu também, bebi o leite que me trouxeram e te escrevi.”

Quanto à tradução magnífica de Milena dos seus contos para o tcheco:

“Não sei se os tchecos não a acusarão de fidelidade ao texto original, uma fidelidade que é para mim o traço mais amável da tradução, seja como for, se alguém chamar a tua atenção tente equilibrar a mortificação com a minha gratidão…”

Quando ela lhe escreve em tcheco língua que ele compreende embora não se expresse nela corretamente:

“O alemão é a minha língua materna e por isso é para mim uma língua natural, mas o tcheco me toca mais o coração e por isso a tua carta nessa língua que é a tua língua materna dissipa para mim várias incertezas. Através dela eu te vejo mais distintamente, os movimentos do teu corpo, das tuas mãos, tão rápidos, tão resolutos, é quase um encontro, mas certamente sempre que quero alçar meus olhos até o teu rosto desprende-se da tua carta – não é estranho? – um incêndio e só vejo aquele fogo que arde.

Li novamente a carta de domingo e é mais terrível do que eu pensara à primeira leitura. Era preciso, Milena, tomar o teu rosto entre as mãos e contemplá-lo longamente nos olhos para que nos olhos de outrem tu te reconhecesses a ti mesma e daí em diante não fosses capaz nem de pensar coisas com as que me escreveste. Mas depois de uma noite quase insone por causa daquela carta de segunda-feira, hoje me sinto bastante tranquilo e cheio de ânimo. Naturalmente a carta de terça-feira também tem o seu espinho e abre caminho ferindo-me o corpo, mas o espinho és tu que o cravas e o que – esta é só a verdade de um instante, de um momento trêmulo de dor e de felicidade – o que se vier de ti seria difícil suportar?

Ultimamente sonhei novamente contigo. Foi um sonho longo, mas não me recordo mais quase nada. Eu estava em Viena, não me recordo de outras coisas, depois cheguei a Praga e tinha esquecido o teu endereço, não só a rua, mas também a cidade, tudo, só o nome de Schreiber surgia impreciso mas eu não sabia o que significava. Para mim, portanto, tu estavas completamente perdida; no meu desespero fiz diversas tentativas muito astutas, mas que não sei porque não foram executadas e das quais só uma restou na minha memória. Escrevi sobre um envelope Milena e debaixo anotei: é favor encaminhar esta carta caso contrário a administração financeira sofre um imenso prejuizo. Esperto? Não consigo extrair desta artimanha uma impressão de mim mesmo, só em sonhos sou tão assustadiço e temeroso.

Não pretenda que eu seja sincero, Milena. Ninguém pode pretendê-lo mais do que eu, no entanto, muitas coisas me fogem, sim, talvez tudo me fuja. Mas o encorajamento nesta caçada não me encoraja, ao contrário, não sou mais capaz de dar um passo. Estou trilhando um caminho muito perigoso, Milena. Tu estás imóvel encostada numa árvore, jovem, bela, os teus olhos irradiam a dor do mundo. Jogamos aquele jogo das crianças, o jogo dos quatro cantos, eu na sombra me arrasto de uma árvore a outra, mudo de lugar. Tu me falas, me indicas os perigos, queres incutir-me coragem, assustando-te com o meu passo incerto, recorda-me (a mim!) a seriedade do jogo – e eu não posso, caio, estendido sobre a terra. Não posso ouvir as terríveis vozes do meu íntimo e simultaneamente a tua, mas posso ouvi-la e confiá-la a ti, a ti como a ninguém mais no mundo.

Neste caso tu podes lançar em rosto aos judeus o contínuo medo que têm, embora uma acusação tão genérica contenha um conhecimento dos homens mais teórico do que prático. A posição insegura dos judeus, insegura por si só, insegura entre os demais homens, tornaria compreensibilíssimo o fato de que eles creiam lícito possuir só aquilo que têm nas mãos ou entre os dentes, que somente a posse material lhes assegura o direito de viver, que não readquirião nunca o que perderam e que se afasta benditamente deles para sempre. Os judeus estão ameaçados por perigos que vêm dos pontos mais inverossímeis ou para sermos mais precisos deixemos de lado os perigos e digamos: ‘estão ameaçados por ameaças’.

Por outro lado, tenho a impressão, sem poder defini-la melhor, de que uma de minhas cartas se extraviou. A angústia típica dos judeus! Em vez de temeram que as cartas cheguem a seu destino!

Milena, que nome rico, maciço, difícil de erguer pela sua plenitude, e a princípio não me agradava muito, me parecia um grego ou um romano perdido na Boêmia, violentado em tcheco, enganado na tônica, no entanto, pela forma e pela cor é maravilhosamente uma mulher que eu ergo nos braços fora do mundo, fora do fogo não sei e ela se aconchega dócil e confiante em meus braços. Só o acento forte o i me parece mau, o nome não me escapa novamente? Ou é o próprio salto de felicidade que eu dou sob este peso?

Feliz me tornam de fato as cartas pacíficas, ao pé destas cartas eu poderia sentar-me feliz além de qualquer limite, está é a chuva sobre minha fronte que arde. Mas quando, Milena, chegam aquelas outras cartas e sejam pela sua própria índole portadoras de mais felicidade que as primeiras (mas por debilidade minha só depois de alguns dias consigo conduzir-me até à sua felicidade) aquelas cartas que começam com exclamações (e já cheguei a este ponto) e as que terminam não sei com que susto, então, Milena, começo realmente a tremer sob o seu martelar, não consigo ler e no entanto leio assim mesmo, como o animal que morre de sede e bebe, e tenho medo e medo, procuro um móvel debaixo do qual eu possa esconder-me, rezo tremendo e fora de mim num canto para que tu, assim como entraste impetuosa por meio desta carta, possas voar de novo pela janela aberta, não posso ter no quarto um furacão, nessas cartas deves ter a cabeça grandiosa da Medusa, pois agitam-se as serpentes do terror em torno à tua cabeça e em torno à minha ainda mais selvagens as serpentes da angústia; isto me traz à mente uma frase que li uma vez, não sei em que autor, mais ou menos assim: ‘a mulher que eu amo é uma coluna de fogo que passa sobre a terra. Agora me tem encerrado. Mas não são encerrados os que ela conduz, mas sim videntes’. Assinado: teu. (Agora perco até o nome, tornou-se cada vez mais breve e soa agora assim somente: teu.

As duas cartas chegaram juntas ao meio dia e não são para ser lidas, mas sim estendidas para eu colocar sobre elas o meu rosto e perder o conhecimento. Mas parece-me bem que o perca quase porque assim retenho mais demoradamente o resto. Por isto os meus 38 anos de judeu de fronte aos seus 24 de cristã me dizem:

Agora Milena te chama com uma voz que com igual intensidade penetra no teu cérebro e no teu coração; mas a veradade é que Milena não te conhece – dois ou três contos e algumas cartas a ofuscaram. Ela é como o mar, forte como o mar com a sua massa de água, que até no mal entendido se precipita e se abate com toda a força segundo os caprichos da Lua morta e sobretudo distante. Ela não te conhece e se quer que tu venhas a Viena vê-la é talvez um pressentimento da verdade. Isto é: a tua verdadeira presença não a ofuscará mais, pode ter absoluta certeza.

Este cruzar-se de cartas deve cessar, Milena. Nos fazem enlouquecer. Não recordamos mais o que dissemos antes, que partes respondemos e seja como for, trememos sempre. Compreendo perfeitamente o tcheco e ouço o teu riso, mas submerjo nas tuas cartas entre palavras e riso, depois ouço somente a palavra já que acima de tudo a minha natureza é angústia.

Não sei se depois de minhas cartas de quarta e quinta-feira tu me queiras ver ainda. Sei da relação que existe entre ti e mim (tu me pertences ainda que eu nunca mais voltasse a ver-te), conheço a nossa relação porque ela não está no território confuso da minha angústia, mas não conheço absolutamente a tua relação para comigo, isto pertence inteiramente à esfera da angústia. E nem tu me conheces, Milena, repito.

O que acontece é para mim qualquer coisa de monstruoso, o meu mundo se demorona, o meu mundo ressurge, vês como tu (este tu sou eu), posso comprová-lo, não me lamento pelo desmoronamento, o mundo está ruindo, lamento me dá da sua reconstrução, lamento-me das minhas débeis forças, lamento-me de ter vindo ao mundo, lamento-me da luz do Sol.

Como continuaremos a viver? Se dizes sim em reposta às minhas cartas, não deves viver mais em Viena, é impossível.

Milena, não se trata disto. Tu não és para mim uma senhora, és uma menina, nunca vi uma que fosse tão menina, não ousarei estender-te a mão, menina, a minha mão suja, convulsa, de unhas grandes, incerta e trêmula, ardente e fria.

O que eu temo, o que temo com os olhos esbugalhados e loucamente imerso na angústia (se eu pudesse dormir assim como submerjo na angústia, não viveria mais) é somente esta conspiração íntima contra mim (que compreenderás melhor através da Carta a meu Pai, embora não inteiramente porque a carta é demasiado elaborada para o fim a que se propõe) que se baseia, digamos, no fato de que eu, não sendo, na grande partida de xadrez nem peão do peão, ao contrário até, contras as regras do jogo e para confundi-lo, pretendo ocupar até o lugar da rainha – eu, peão do peão, portanto uma peça que nem existe nem toma parte no jogo – e depois talvez tomar o lugar do próprio rei ou talvez todo o tabuleiro e que se eu quisesse mesmo isto deveria suceder de modo diferente, mais desumano.

Por isto a proposta que te fiz tem uma importância muito maior para mim do que para ti. Porque neste momento está fora de dúvida ilesa do mal absolutamente beatificante.

De manhã cedo recebi a carta de sexta-feira e mais tarde a de sexta à noite. A primeira coisa triste, triste rosto da estação, triste não tanto pelo conteúdo quanto por estar envelhecida, tudo já passou – o bosque que contemplamos em comum, o bairro em comum, a viagem em comum. É verdade que não desaparece esta viagem retilínea em comum subindo pelo caminho pavimentado com pedras, de retorno pela ladeira, ao Sol do crepúsculo, e não cessa, e no entanto é uma brincadeira tola dizer que não cessa. Documentos estão aqui espalhados, algumas cartas que não li, visitas ao diretor (que não está de férias) e a outras pessoas. Enquanto isso um sininho badala a meus ouvidos: ‘ela já não está mais contigo’, é verdade que numa parte indefinida do céu existe um sino imenso que ressoa: ‘ela não te abandonará’, mas inutilmente – o sininho estava dentro do meu ouvido. E depois há a carta noturna, não compreendo como se possa lê-la, não se compreende como o peito possa alargar-se bastante e contrair-se para respirar este ar, não se compreende commo se possa estar longe de ti.

“Não obstante, eu não me lamento, tudo que eu disse não é um lamento, pois eu possuo a tua palavra”.

E como palavras finais de Kafka no isolamento derradeiro em que a comunicação se faz crescentemente difícil:

“Recebo notícias do mundo (e muito enérgicas também) somente através do encarecimento de tudo, não recebo mais os jornais de Praga, os de Berlim são caros demais para mim. Meu endereço é há algumas semanas é Steglitz, Grunewaldstrasse 13, em casa do senhor Seifert. E agora, não obstante tudo, minhas saudações mais calorosas. Que importa se caem sobre a terra, ao lado do portão que dá para o teu jardim? A tua força é tão maior do que tudo!”

Aqui se rompe o longo, desesperado, terno e alucinante intercâmbio de Kafka e Milena, separados em seguida pela morte e pelo terror do nazismo que ele profeticamente evocara em tantos de seus contos de atmosfera frenética e prenunciadora dos campos de concentração e da loucura coletiva que se insinuou no cérebro e na alma de toda uma nação.

Hoje, no plano político, o terceiro Reich desapareceu. Seis milhões de judeus e outros milhões de não judeus opostos a Hitler foram macerados em Auschwitz, em Dachau, em Ravensbrück. Milena não resistiu à dupla perda de Kafka e da liberdade. Kafka precedeu de pouco a hecatombe da Tchecoslováquia que perdia a autonomia sob o passo de ganso dos soldados do exército alemão.

Como um punhado de cinzas tudo que resta de corpos que já vibraram permamecem as cartas a Milena como um dos mais patéticos e mais belos relatos de humanidade, de transcendência artística e de amor desesperado existentes na história dolorosa do convívio do homem com o homem.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “As cartas a Milena como documento literário e da angústia de Kafka .” In Testemunhos Literários do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 3. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.