Destruindo a palavra. Para reencontrá-la mais bela e pura

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1985-06-29. Aguardando revisão.

Talvez nunca se tenha escrito antes um livro em que o artista investe contra a palavra. Escarnece dos limites da palavra. Corrói a palavra até deixá-la mera crosta do nada. Esse livro existe agora. Lembra uma penosa angústia em que o pintor pinta incessantemente para demonstrar que o desenho, as cores e a forma jamais exprimem o que não se pode exprimir, e descrê, usando-as das suas próprias ferramentas.

Vergílio Ferreira se alinha entre os mais inquietantes escritores de Portugal atualmente, compondo com o soberbo poeta Eugênio de Andrade e o prosador Aquilino Ribeiro aquela tríade de uma geração que se rebelou, fecundamente, contra todas as proibições vindas simultaneamente de um regime de direita, o de Salazar, e de ordens do então clandestino e proscrito partido comunista português. Se os fascistas tolhiam durante o longo obscurantismo de quase meio século qualquer narração de aspectos da realidade nacional ou das colônias africanas, Angola e Moçambique, a linha de obediência sem pestanejar a Moscou ditava um sufocante romance de “realismo socialista”. Era o neorealimo português, do qual restam apenas escombros. As exceções, constituídas pelos escritores que deixaram uma obra perene apesar do neorealismo e sua camisa-de-força, não preenchem o número de dedos de uma só mão.

Vergílio Ferreira tem inúmeras distinções no panorama da literatura contemporânea portuguesa. A mais óbvia de todas é ter abandonado o neorealismo de temas e estilos políticos antes de qualquer outro romancista da sua época. Prolífico, Vergílio Ferreira martela em toda sua obra de ficção as mesmas obsessões. O escritor, Sísifo do século XX, ergue a imensa pedra das palavras até o alto da montanha da expressão para apenas vê-la rolar vale abaixo mal terminou sua tarefa, sem tempo de enxugar o suor que lhe banha os músculos exaustos. Carlos Drummond de Andrade já se referia à dura conclusão de que “lutar com palavras é a luta mais vã”. Não no sentido leninista de que as palavras não resolvem quando não utilizadas como bombas incendiárias. A luta com as palavras é vã porque as palavras desafiam o homem no seu emaranhado de significados, as palavras fogem do alvo que o homem quer alcançar.

Para Sempre, o mais recente romance de Vergílio Ferreira (Editora Difel) é aquele paradoxo insolúvel: destrói a palavra, desnuda-a de sua retórica, de seu poder real e, constrói, com a palavra, o mais belo momento de toda uma longa e atormentada carreira literária. Carreira não na sua acepção corriqueira, de corrida rumo à gloria, à fama, aos prêmios literários. Mas, sim, como sinônimo de corrida contra o tempo e evanescência do próprio homem, que envelhece sem poder desvendar o enigma do que significa saber quem somos. Coerentemente, o autor lusitano abandona, passo a passo, Marx e suas certezas dogmáticas, absolutas, inquestionáveis pela dúvida existencialista. Não cremos que ele se aproxime tanto de Sartre, esse simulacro tosco de Heidegger, quanto, perceptivelmente mais, de Camus. Não se trata de forma alguma de atribuir a Vergílio Ferreira uma “influência” camusiana, mas de empatia, de um sem-número de afinidades com o autor de O Homem Revoltado e O Estrangeiro. No autor português e no francês nascido na Argélia os mesmos traços indeléveis: o paganismo da contemplação da natureza, indiferente às aflições humanas; a constatação estoica e angustiada de que não há deuses ou, se os há, estão num Olimpo remoto e inacessível ao ser humano; o cerco em torno à arte como possível resposta ao enigma de se estar no mundo: por quê? Para quê? E a conclusão de que, fora dos lampejos de comunicação humana - através do amor, da entrega de si mesmo ao outro -, todas as revoluções conduzem à tirania, à guilhotina, ao admirável mundo novo dos campos de concentração totalitários, da “felicidade” comprada através do efêmero, a tv, o carro, o “sucesso”, substituindo qualquer aprofundamento ético das origens e fins da vida.

Para Sempre, não há como negar, é um livro que se lê com lágrimas. Cada página é uma confissão pungente, é um desnudamento do autor, sem pieguices nem auto-compaixão. Torna-se impossível não nos sentirmos, desde as primeiras páginas, irmanados com esse outro, máscara de nós mesmos ou reflexo nosso no reflexo impiedoso do olhar que não permite retoques nem mentiras. Um homem recolhe-se a uma casa abandonada, onde viveu sua infância, contabilizando sua vida na soleira da morte. Com uma técnica refinada, Vergílio Ferreira interpenetra o passado e o futuro. A magia de um Pedro Páramo do mexicano Juan Rulfo faz conviver a solidão de quem ainda está debilmente vivo com os mortos avivados pela memória, que falam, interpelam, immobilizados como estão, fantasmagoricamente cristalizados pelo decorrer do tempo: a tia velha debruçada sobre uma máquina de costura da qual emergem planos longuíssimos, o olhar parado; o próprio “eu” de quem narra se debruça sobre o “eu” que ele foi quando menino ou quando universitário, como marido, como viúvo, como pai, como funcionário público de uma Biblioteca Geral. É um dos inúmeros trechos apaixonantes dese romance de laivos kafkianos, como o filme que Alain Resnais fez sobre a Bibliotéque Nationale de Paris na sua ronda de câmara a girar em torno dos milhares e milhares de volumes alinhados um ao lado do outro, como nos misteriosos e alucinantes labirintos de Borges:

“Olho os livros - e de súbito o livros multiplicam-se desde o chão até o tecto. Paredes imensas, corredores infindáveis, compactos de livros, e as caves e as escadarias interiores, depósito de in-fólios no sotão, a cerimônia findou, estou eu só na Biblioteca Geral.

Fecharam os portões, ninguém, todo o grande edifício deserto. Passo pelos longos corredores, de cima a baixo os livros nos seus túmulos. São milênios de balbúrdia, tagalerice infindável, filósofos, investigadores, poetas, doutores da Igreja, moralistas, juristas, políticos, algaraviada infernal, interminável algazarra através das eras - estão imóveis nos seus túmulos irrisórios. Passo ao longo dos corredores, ecoam pelo tecto os meus passos claros no mosaico - silêncio. É a hora grave do fim, meu tempo mortal. Passo por outras salas, outros corredores, entro na sala grande de leitura - ninguém. Houve a festa de despedida, da minha aposentação, agora saíram todos, fiquei ainda. Penetrar-me deste silêncio tumular, críticos, ensaístas, investigadores, ouvir ainda o seu murmúrio pela noite dos séculos, como loucos falatando, discutindo - quem vos ouve? Ms por sob todo este linguajar - que palavra essencial? A que saldasse uma angústia. A que respondesse à procura de uma vida inteira. A que fica depois, a que está antes de todas quantas se disseram. A que mesmo dizendo não diz como um penso para o que não tem cura. Há o ódio e o sonho e a inquietação de nada. O enigma, o absurdo. O não sei quê que perdura como a fome que volta sempre. O mistério que renasce do que o resolveu. E a beleza. A que fica depois de todas as coisas belas. Elas envelhecem, o aceno da beleza noutro lado. Mesmo Deus retira-se para além de Deus. A procura intérmina ofegante. Silêncio.”

Uma literatura derrotada pelo silêncio. Todas as palvras humanas são como que uma Torre de Babel feita de letras e frases que rui ao menor sopro de uma realidade que palpita debaixo da palavra, oculta por ela para sempre. Desfilam todos os inúteis “ismos”, catolicismo dos doutores da teologia do Vaticano, o moralismo das seitas políticas que querem “liberar” ou “disciplinar” o sexo, a família, o Estado, as relações sociais, o “dever do cidadão” para com a pátria, a moral, o partido, a ordem, a “evolução”; o igualistarismo que abolirá as classes; o cubismo; o niilismo, o fauvismo; o suprematismo; o capitalismo; o comunismo; o consumismo; o panicismo que considerava o pânico como medida fundamental do sentimento; os psicologismos e toda a caterva de falsos feiticeiros dançando em torno de tótens ou da pitonisa de Delfos e sem atinar com nada da realidade indecifrável para o homem.

Em livros anteriores, notadamente, em Nítido Nulo, Apelo da Noite, Alegria Breve e Estrela Polar, Vergílio Ferreira já concluíra pelo desespero de não poder dizer, o silêncio sendo a corporificação de um código ao qual não temos acesso nunca. A esse desespero que não crê na ação nem em Deus nem no gaguejar vão das palavras, se opõem a imobilidade das montanhas, ou a inconstância aparente do mar, o silêncio e a palavra resvalada da boca da mãe internada como louca no asilo, que sussurra aos ouvidos do filho criança uma palavra que ele não houve. Não há conselhos, não há consolo a não ser o estoico: “Sê inteiro em ti no exacto instante em que és”. Se julgávamos, vaidosa e inutilmente, que éramos no mundo, como propôs Heidegger, essa noção de quem espera a morte na finitude do Tempo se amplia na velhice não mais para o ser mas para o passivo estar:

“Tenho de ir - que tens que ir? Tens só que estar. Como se houvesse mundo além, há só aqui. Tanto tratado escrito sobre a infância, a juventude, a idade adulta, que é a idade do homem. Em todas elas se fala de ir - a velhice é estar. Queria ter ideias precisas sobre isso. Precisas limpas agradáveis - a velhice tem tanta sujidade. Todas as idades fazem parte da vida, a velhice é um sobejo. E só o que sobra lhe pertence. O que sobra da mesa, das leis, da paciência. Do espaço que se ocupa - mas tenho de ir a Penalva. Dos fatos que se usaram, das ideias que nos remexeram, do calor com que se fazem ser as pessoas coisas animais - mas tenho de ir. Passe o carro da História, atira-lhe com poeira para cima. Passam os proprietários do poder, os fabricantes da civilização, os criadores da ciência, artes e letras, os agentes do comércio e do progresso econômico, ele encosta-se à valeta, fica coberta de lixo orgânico - mas vão sendo horas.”

A verdade estará aquém e além das palavras? “Concluímos daqui a que a língua constitui uma rede fechada sobre si, um tecido de malha que as leis da língua tecem, um quadriculado de palavras sobrepostas ao que chamamos ‘mundo real’. Não há portanto um mundo real traduzido em palavras, mas um mundo de palavras sobreposto a esse real.” E mais adiante: “Que relação pode estabelecer a palavra com ele (o real)? E nós diremos então que o real não existe, que a palavra não designa mas se basta a si mesma e em si mesma se fecha. Nós diremos então que o real é uma ilusão incrustada na própria palavra que o diz. Nós diremos então que a vida mental do homem é uma ficção de si própria”. Inúmeras vezes palavra futilmente se emparelha com outras palavras, todas formando uma cacofonia de sons providos de ruído mas sem nexo. O que invalida também quase todos os problemas filosóficos, já que estão vazados em palavras vazias, “um entretenimento vão como as crianças nos seus jogos de faz-de-conta”.

Seria impossível citar sequer metade das desmistificações da palavra que o romancista alude e que ele enumera. Como que se adentrando na raiz grega do termpo “palavra”, Vergílio Ferreira descobre no original parabole uma superficial alegoria, uma comparação reles com a qual se oculta “para sempre” uma verdade que lhe é imanente. Haja ou não vibrações místicas nessa busca, a palavra inicial, anterior e posterior ao homem: “Diz-se às vezes que essa palavra a sabem os artistas, o poeta, o músico, o pintor, ou seja os que não dizem o que dizem, mas dizem apenas o silêncio primordial, ou seja o que não se diz”. De outras vezes é o amor que pronuncia essa palavra. Ou a palavra escorreu como baba da boca da mãe recostada nas almofadas que o sagrara com a sua loucura: “Tu sabes o que ela disse?.”A boca contorcida. A palavra difícil”. Até o final que soa como um réquiem de início mas depois reforça a noção de sermos nós mesmos em nossa inteireza e integridade por mais precários que sejam. “Tudo tão pouco - que é que resta sempre de uma vida humana?”:

“Estou só - estás só. Não penses. Não fales. És em ti apenas o máximo de ti. Qualquer coisa mais alta do que tu te assumiu e rejeitou como a árvore que se poda para crescer. Que dá pensares-te o ramo que se suprimiu? A árvore existe e continua para fora da tua acidentalidade suprimida. O que te distingue e oprime é o pensamento que a pedra não tem para se executar como pedra. E as estrelas, e os animais. Funda aí a tua grandeza se quiseres, mas que reconheças e aceites a grandeza que te excede. Há uma palavra qualquer que deve poder dizer isso, não a sabes? - e por que queres sabê-la? É a palavra que conhece o mistério e que o mistério conhece - não é tua. De ti é apenas o silêncio sem mais e o eco de uma música em que ele se reabsorva. Pensa-o ardentemene, profundamente, absolutamente. Não és grande, terás apenas a mania das grandezas? Como querer igualar-te ao imenso e imperscrutável? O dia acaba devagar. Assume-o e aceita-o. É a palavra final, a da aceitação. Só os loucos e os iludidos a não sabem. Não sou louco. Não são horas da ilusão. Vou fechar a varanda. Tenho de ir avisar a Deolinda. É uma tarde quente de Agosto, ainda não arrefeceu. Pensa com a grandeza que pode haver na humildade. Pensa. Profundamente, serenamente. Aqui estou. Na casa grande e deserta. Para sempre”.

Vergílio Ferreira, neste que nos parece o seu livro mais perfeito, mais abissal, mais sitiado pelo horror de ser e pela coragem de assumir essa dualidade em meio a iluminações efêmeras de êxtase. Em meio à imobilidade silente de tudo, Vergílio Ferreira interpreta, encarna, melhor dito, a funda, a talvez insanável melancolia portuguesa que impregna toda essa literatura esplêndida, não reconhecida em sua grandeza que nada tem de feérica mas guarda toda a perenidade de uma epifania interior. Se ele comunga conosco na nossa dispensabilidade como seres inúteis e fantasiosamente inchados de soberba, este livro paradoxalmente nos incute coragem - a estoica coragem ibérica nascida com Sêneca e continuada nas viagens marítimas que ansiavam por novos mundos. Na impotência da palavra se consigna, paradoxalmente, o vigor da palavra nas mãos de um escritor que atinge o ápice de sua criação, em sua suprema e portanto inenarrável obra-prima. Para sempre.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1985) 2022. “Destruindo a palavra. Para reencontrá-la mais bela e pura .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.