A Borboleta de Dinard. Este livro não foi apenas traduzido. Foi destruído

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1977/02/5. Aguardando revisão.

São sempre situações humanas colhidas com uma delicada ironia e uma doce compaixão pelo próximo que nada tem de pieguismo.

Depois da meia-noite, num hotel, um hóspede insone passeia pelos corredores. Enquanto o telefone tilinta e uma voz de mulher adverte a um Attilio, do outro lado do fio, que não venha, porque lá fora um infeliz está passeando de lá para cá. Várias hipóteses se apresentam ao que perambula sem sono: retirar-se, ignorando o incidente? Salvar a mulher de um importuno que a acossa? Ou seus passeios teriam sido um mero pretexto para dizer “não” ao insistente chamado noturno? Resolve não ser ártbitro da vida alheia, mas pelo menos conseguir uma explicação para tanta acuidade. “Disse então numa voz excessivamente alta que ressoou pelo corredor afora:

Nestes contos incisivos de duas, três páginas, o magnífico poeta italiano cria pequenas vinhetas perfeitas de percepção, de leveza e de tolerância para com as fraquezas humanas. Há a história breve, pungente, dos três resistentes ao fascismo, em plena Florença massacrada pela Segunda Guerra Mundial, que se escondem no apartamento que lhes serve de esconderijo quando o porteiro avisa que está subindo um alemão. É um rapaz de vinte anos que explica, em péssimo italiano, que copiou para o gnädiger Kollege (prezado colega) poemas de Hölderlin naquela época em que as edições são raras tanto na Alemanha hitleriana quanto na Itália de Mussolini. Era um espírito inquieto: abandonara, desencantado, a especulação filosófica depois que se conscientizara que o Dasein, “o eu existencial em carne e osso”, não passava de um artifício intelectual, o que aumentara a sua angústia e o levara à literatura., em busca de consolo. Nova decepção! A poesia antiga nos era inacessível: os poetas gregos não eram fragmentários como chegaram suas obras até nós, nem as tragédias de Sófocles podiam ser compreendidas profundamente sem o sopro de sacralidade que as envolvia. Os modernos? Não têm rosto, nem estilo, nem história, estamos demasiado próximos deles para haurir sua grandeza ou mediocridade, não há perspectiva histórica suficiente. Depois que o jovem cheio de Angst sai, “parei junto ao quartinho do corredor e abri a porta devagar. Continuava escuro.

Giovanni virou-se de lado e começou a roncar. Dormiam os dois numa caminha muito estreita.”

Eugenio Montale sorri das ilusões e caprichos humanos: uma snob rica sente-se invadida por uma nova moda – a do falso misticismo oriental. Compra um convento arruinado e abandonado, faz soar os sinos a todas as horas enquanto conta como apressou sua evolução espiritual na Terra. Saltou do quarto ao sétimo estágio do seu karma, resolvendo ao mesmo tempo todos os problemas de classes, de injustiças, de teorias democráticas ou totalitárias: “Mas qual igualdade, qual exploração, mas quais direitos… Se tanto faz, se tens aborrecimentos, maçadas e miséria, é só porque de momento o teu karma é aquilo que é. Exigir mais seria como querer sangrar um nabo. Espere pela tua vez e verás o que te reserva o futuro…”

O esplêndido poeta de Ossi di Seppia, Prêmio Nobel de Literatura de 1975, reuniu neste livro A Borboleta de Dinard (Editora Nova Fronteira, 209 páginas), os pequenos contos que publicou, anos a fio, no jornal milanês Corriere della Sera e que são sua obra-prima em prosa, com toques diáfanos de poesia, de autoironia, de apaixonada evocação do passado e de perene horror ao fascismo. Ao leitor estão reservados momentos de puro deslumbramento. Numa sátira hilariante contra os jornalistas apressados e de imaginação delirante, ele se faz entrevistar por uma repórter estrangeira que, incorrigivelmente, deturpa seu nome. “Sr. Fontale, o que opina sobre a proteção dos direitos da mulher na Itália? Sr. Montana, o Sr. Gosta mais de gatos ou de cachorros? Sr. Puntale, já agiu contra a vivissecção de animais em sua vida? A perguntas tão atabalhoadas, e que devem ser respondidas de chofre, corresponde depois uma surpreendente entrevista” absurda: “Herr Puntale e o moderno problema da Angústia”.

Frequentemente, Montale parte para a fantasia surrealista. Numa visita a uma igreja de Edimburgo, na Escócia, o turista se vê diante de paredes do templo poligonal com os dizeres em cada uma delas: “Deus não está onde…”, seguindo-se a enumeração dos lugares em que não se pode encontrar Deus. De repente, um senhor distinto, empunhando uma Bíblia, passa a ler versículos que confirmam a ausência de Deus naqueles locais e uma chusma insuspeitada de pessoas surge no átrio: metodistas, presbiterianos, batistas, unitarianos, burgueses, operários, funcionários, as mais variadas crenças, seitas, e profissões discutem teses teológicas com a intervenção de um árbitro que sopesa os argumentos e as refutações, retira a palavra aos oradores e tenta reconciliar concepções religiosas contrastantes.

O fantástico intervém como um nível desconhecido da realidade que não é perceptível por todos os homens. Em um dos contos, de um quadro detestado emerge todas as noites um cão pintado que começa a latir sem parar. Essa pluri-realidade está retratada também na aparição repentina de uma ave grande que pousa no ramo de árvore de uma cidadezinha e põe em polvorosa os conhecimentos ornitológicos dos habitantes de um prédio. Deve ser o corvo de Edgar Allan Poe, imagina um velho pintor que ilustrou o poema do poeta norte-americano. Já um homem calvo, reprovado em sua pretensão de ser um professor de inglês por desconhecer o poema (seria de Keats ou de Shelley?) que fala de um rouxinol – “Ave imortal, tu não podes morrer” – agita-se com aquele pássaro insólito. Um casal discute as tristezas e as alegrias da liberdade, o marido sarcasticamente zomba da mulher: vai, toda encharcada dependurar-te no ramo, vai. A mulher retruca, orgulhosa, que mais vale um dia de liberdade do que uma vida de escravidão. Depois da alteração, a reconciliação, os pedidos de perdão do homem, o chá servido após aquela aparição breve que, como uma lufada de nostalgia, perpassou por aquelas vidas mornas, medíocres, que se acendem por instantes a sua passagem.

Os mesmos elementos de indagação, de sutileza de captação da natureza, das manias humanas, completam esses croquis rápidos, de reprodução viva da maneira de falar, da visão da realidade que cada pessoa tem, como se a própria vida fosse uma justaposição de interpretações que não se anulam, mas se completam.

Uma lagosta capturada viva desperta a ternura de um menino que acredita que seus sinais de luta pela sobrevivência são uma forma de ela demonstrar que quer brincar com ele. Um velho cozinheiro reconhece na lagosta um motivo para lamentações culinárias. Nos cardápios modernos está escrito homard a l’américaine quando o certo seria o homard a l’armoricaine dos tempos em que ele trabalhava na prestigiosa cozinha do hotel Ritz, de Paris.

Durante um enterro, a viúva de um ricaço que morreu num acidente de automóvel examina disfarçadamente datas e fios de cabelos encontrados no bolso do morto e que ela compara discretamente com a cor dos cabelos das três secretárias devotadíssimas de seu finado esposo adúltero. Uma mulher que entra numa boate de Florença é confundida com quatro mulheres diferentes por quatro homens que afirmam serem os únicos a terem conhecido a verdadeira personalidade da forasteira que chegou para dançar.

Eugenio Montale destila uma pequena comédia humana temperada pela piedade, como um pequeno Balzac dedicado ao esboço que nada tem do caricatural nem do amargor ácido de Pirandello na sua análise das vidas humildes nos subúrbios de Roma. A Borboleta de Dinard é o resumo de toda uma cultura pluralmente erudita, com referências as artes plásticas, ao bel canto ao qual o poeta se dedicou durante vários anos de aprendizagem, a história, a literatura, a zoologia, a botânica.

Uma única advertência se faz ao leitor, como a insígnia que avisava logo à porta do Inferno de Dante: “Deixai toda esperança, ó vós que entrais” de encontrar na tradução brasileira as finesses e deslumbramentos do original.

Quem não conhecer o italiano poderá extrair pelo menos do desenho dessas histórias uma admiração reconfortante. Mas quem examinar o original terá vontade de instaurar uma ação penal contra os “tradutores”, acusados de massacrar um texto indefeso.

Seria justo colocar fotos dos tradutores ou pelo menos seus nomes em imensos anúncios policiais de “Procura-se”; em seguida viriam os nomes dos criminosos: Armandina Puga, Cardigos dos Reis, Carlo Aluigi, Herder Pereira Rodrigues e Marina Colasanti. Com a maior desfaçatez esses intrépidos vândalos desfiguram o original. Por exemplo: “Finche il ghiaccio non s’era rotto da se” transforma-se, por magia da incúria ou da fome das traduções mal pagas, em “Mas o gelo não se quebrará por si”, os olhos de um olhar pungente viram “de um olhar picante”, “doppo aver atteso che” é eliminado, talvez para melhorar o estilo do autor, como se omite também galharda e impunemente toda uma frase: “Se no che il vigile Fabrizio non dove mancare di dar l’allarne”, resumido como uma “condensação” de Seleções (do Reader’s Digest norte-americano) em “Mas o vigilante Fabrizio deu o alarme.”

Deixai toda esperança de nuances, ó vós que não podeis dispor do original italiano ou não sabeis lê-lo!

Para traduzir bem este poeta seria necessário o respeito pela obra de arte, o conhecimento de uma das duas línguas, ou o italiano ou o português, qualidades que não foram consideradas indispensáveis para a tarefa de tradução. Imagine-se que se trata de um filme, um grande filme colorido, mas que vemos dublado e em preto e branco.

Apesar dos pesares, a grandeza destes textos subsiste. Atravessa essa Velha Fronteira de incúria, de estupidez, de inescrupulosidade e milagrosamente consegue dar ao leitor brasileiro uma noção pelo menos aproximativa da sua beleza, da sua graça, do seu lirismo originais.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “A Borboleta de Dinard. Este livro não foi apenas traduzido. Foi destruído .” In Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do pós-guerra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 8. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.