O negro nos livros, poemas e teses

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1982/12/25. Aguardando revisão.

“África! Áfirca da reconquista das liberdades/ África do Negro,/ Não há ninguém na África” (Bernard Dadie, poeta da Costa do Marfim)

Livros com enfoques diversos tornam este ano que termina talvez aquele que, na última década, mais refletiu sobre o negro e mais revelou sobre a Negritude. O luxuoso, informativo e rico primeiro tomo de uma História Geral da África, nas suas quase 800 páginas e redigido por cientistas das mais diversas nacionalidades, remonta às origens das diversas culturas e civilizações africanas (publicação da Editora Ática com a cooperação da Unesco).

A Abolição de Emília Viotti da Costa (Editora Global, 101 páginas) é um estudo interessante do processo abolicionista do Brasil, embora mutilado por sua visão a priori e dogmática de que a abolição da escravatura representou no Brasil a já surradíssima e obsoleta teoria marxista de uma “luta de classes”…

África, o Povo de Carlos Contini (Editora Achiamé, 114 páginas) pareceu-me uma tediosa enumeração das etnias africanas, precedidas do documento míope e mecanicista da UNESCO que acredita “cientificamente” na desigualdade econômica e social como única origem do racismo, teoria que, convenhamos, também vem indiretamente do legado empoeirado de Marx & Co., hoje fundamentalmente corrigido em 180 graus pela psicologia, pela antropologia cultural e outras, estas, sim, ciências humanas que não pretendem ser a demonstração forçada de um teorema em si redutivo e pobre.

Mais importante, porque tem uma visão mais plural e mais abrangente das relações entre as raças no Brasil, é um livro-chave: Fala, Crioulo, de Haroldo Costa (261 páginas, Editora Record). São depoimentos colhidos pelo jornalista carioca Haroldo Costa junto às personalidades mais diversas do segmento negro que compõem, marcadamente, a etnia brasileira. Já lucidamente, no seu prefácio, o escritor Jorge Amado destacara o elemento afetivo como impulso vital para a miscigenação, abandonando todos os “ismos” de um cientificismo pedante e ideologicamente desfigurador.

Assim, um professor de Direito Civil e Romano, de 65 anos, José Pompílio da Hora, alude a uma das alavancas que poderia, realmente, contribuir para a emancipação e a elevação do negro, depois do primeiro passo que foi a Abolição, em 1888. É lógico que a educação, nos países das Américas, é fruto de classes dominantes, de origem europeia, branca. É lógico também que o eurocentrismo sempre erigiu a sua cultura e suas premissas como o único critério pelo qual se pode avaliar a inteligência e o avanço de um povo. Portanto, a educação, no Brasil, teria como tarefa primordial liberar-se da obsessão tecnológica (grifo meu) que classifica povos e civilizações inteiras segundo apenas a óptica de seu possuem ou não siderúrgicas, estaleiros navais, armas mortíferas, enfim, se ultrapassaram a primeira revolução industrial, iniciada na Inglaterra há cerca de 200 anos. Mais ainda: os livros escolares deveriam ser revistos profundamente para não acolher mais a História distorcida que nos é ensinada e da qual o negro é o grande ausente. Embora reconhecendo que por enquanto a educação é feita por brancos para brancos, ou os negros e todos os outros grupos (japoneses, chineses, coreanos etc.) se submetem a esse processo uniformizante ou colocam ao lado das premissas brancas ocidentais alguns de seus valores próprios, que se chocam com o utilitarismo materialista da sociedade de consumo que nos é imposta a todos (brancos, asiáticos, negros e mestiços) pelas agências de publicidade, manipuladoras da psique de milhões de passivos espectadores.

Além destas considerações que faço em torno da meta da educação do negro, proposta pelo professor Pompílio da Hora, o deputado federal Adalberto Camargo, 58 anos, vê na ascensão política um dos instrumentos de conscientização e defesa dos grupos brasileiros negros. Ele argumenta que assim como a vinda de um presidente da Itália ou de um soberano japonês ao Brasil mobiliza multidões de brasileiros descendentes de italianos ou de japoneses, por que multidões igualmente numerosas de brasileiros descendentes de africanos não acorrem ao aeroporto para saudar o presidente do Senegal, o magnífico poeta da négritude, Léopold Senghor?

Dom José Maria Pires, arcebispo de João Pessoa, 62 anos, enfatiza o total descaso com que a Igreja sempre encarou a questão da escravatura no Brasil: “Fazendo causa comum com os dominadores, a Igreja nunca esteve ao lado dos negros em suas lutas de libertação”. Enquanto, comentário meu, hipocritamente a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se coloca, depois de quase dois mil anos de existência da Igreja (diríamos um tanto tardiamente?) “ao lado” dos que hoje chama de “pobres e oprimidos” e lança até um Conselho Indígena Missionário, por que nunca houve uma Pastoral do Negro? Além da omissão, setores importantes da Igreja como a Companhia de Jesus achavam que “não é escandaloso pagar as nossas dívidas em escravos, pois eles são a moeda corrente do país (página 236), como as próprias Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia incluíam, como impedimento para o sacerdócio:”Se tem parte de nação hebreia, ou de qualquer outra infecta (grifo meu) ou de negro ou mulato” (página 237).

Enquanto a advogada e orientadora educacional, 56 anos, Gracierre Ferreira da Costa pergunta: por que as luxuosas Escolas de Samba cariocas não abrigam, ao lado das fantasias de carnaval para quatro dias de deslumbramento, verdadeiras escolas que durante o ano letivo inteiro alfabetizassem os negros e lhes ensinassem algum ofício útil na vida? E faz uma referência dolorosa ao desamparo, que considera duplamente terrível, “da mulher negra, sem instrução, sem marido, sacrificada, enganada por brancos e negros, essas mães solteiras que não têm amanhã nem para si nem para os seus filhos”.

Pelé, Édson Arantes do Nascimento, que aos 17 anos de idade já era a suprema glória do futebol brasileiro na Suécia, hoje com 40 anos de idade, repetiu sempre a adesão a partidos públicos e tem sido sistematicamente agredido e manipulado por uma parte da imprensa rígida que queria a sua adesão cega a ideologias do Partido Único. Pelé é o que melhor harmonizou toda a temática negro e branco. Ele a engloba de forma duplamente fecunda: tem noção de, com o esporte, ter feito alguma coisa pela sua raça (modéstia de quem recebeu em Paris, em 1981, o prêmio inédito de O Esportista do Século). Por outro lado, ele não tem nenhum resquício de racismo às avessas, vingativo, e, sim, a grandeza e nobreza de visão de dizer: “Eu não tenho problema dentro de mim, dentro do meu coração, contra o branco apenas por ser branco. Aprendi sempre a valorizar o homem através do seu pensamento e das suas ações”.

A Antologia Contemporânea da Poesia Negra Brasileira (Editora Global, 103 páginas), subintitulada Axé e organizada por Paulo Colina, é um contraponto às palavras de Guerreiro Ramos, que servem de epígrafe o livro anterior, de Haroldo Costa (Fala, Crioulo):

“É preciso não carregar a pele como um fardo”.

Conselho fácil de ser dado teoricamente, mas e na prática diárias?

Na práxis da sua poesia, grande número dos poetas aqui reunidos tem como inspiração constante o choque plural de ser negro num país que, felizmente, está distante da África do Sul com seu anti-humano e criminoso apartheid e até mesmo da selvageria da discriminação instituída, por exemplo, nos Estados do Sul dos Estados Unidos, mas, ao mesmo tempo, saber que a alforria não significou uma ascensão social. De ignorar as suas origens, perdidas na diáspora africana. De sonhar com quilombos hoje inexistentes. De cantar impelido por uma melancolia talvez incurável na sua desesperança existencial.

Pelo menos nesta amostragem, que às vezes inclui poemas esplêndidos, os poetas dissentem dos depoimentos em prosa, que estoicamente aceitam a luta contra a discriminação e apontam saídas para a emancipação democrática dos brasileiros de cor negra. Seriam os poetas os profetas de uma vingança futura ou retardatários de evocações doloridas, mas hoje atropeladas pelas reivindições diárias de toda uma comunidade – branca, negra, asiática, mestiça, índia – heroicamente em luta pelo seu quinhão justo na sociedade brasileira?

Ninguém poderia emitir um juízo de valor, sociológico ou político, abusivo, se aplicado à criação artística. O fato é que poetas mineiros como Adão Ventura, gaúchos como Oliveira Silveira ou paulistas como Abelardo Rodrigues e Cuti representam, concretamente, uma poesia nova, inédita no Brasil. Vistos sob um prisma internacional, esses criadores de admiráveis obras-primas da poesia estão cronologicamente (ou fora do tempo?) afinados com a poesia reivindicatória de um antilhano, Aimé Césaire, de um senegalês, David Diop; dos norte-americanos Countee Cullen ou Sterling Brown. Opondo-se ao fraterno perdão de Senghor, eles mascam a sua fúria na esperança de um amanhã sangrento e mais tarde igualitário ou abandonam-se introspectivamente a uma visão da vida que equivale à impotência, à resignação, à lembrança do passado dos quilombos ou da paisagem africana que lhes foi arrebatada. Invariavelmente são versos pungentes, fortes, concisos, admiráveis:

“Tratocracia” 

Ele Semog (poeta carioca) 

Quebraram-lhe todos os dentes 

E suas costelas 

Furtaram-lhe a alma 

E a dignidade também 

Mas lhe deixaram a loteria 

Pois sabiam que a miséria 

Não se toma de ninguém. 

Ou, de Oliveira Silveira, do Rio Grande do Sul: 

“Casas de Negros” 

“… laranjeiras, currais e algumas casas de negros” 

Saint-Hilaire 

casas de negros 

queixa e resmungo 

casas de negros 

cantigas do Congo 

casas de negros 

feijoada e charque 

casas de negros 

santo e orixá 

casas de negros 

reza e batuque 

casas de negros 

palavras em choque 

Nas casas de negros 

coisas escravas 

passando livres 

para a casa-grande.

Com o poema “Charqueada” a noção irônica, estoica, épica, só sofrimento atinge um alto nível emotivo com um destacamento, um distanciamento de si mesmo similar ao de atores que sigam esse alheamento proposital ensinado por Bertold Brecht:

  • Os negros estão despidos 

senhora pelotense 

trabalhando no sol. 

  • Os negros estão desnudos 

senhora pelotense 

trabalhando no sal. 

Eles vieram de longe 

de campos tão distantes 

repontados pela estrad 

com seus mugidos fundos 

brancos homens de preto a tocá-los 

e um ponteiro a chamar: Venha, venha! 

Eles vieram 

poleangos assim 

e foram embretados 

e passaram por todas as facas 

pelo sal 

pelo sol 

senhora pelotense 

e chegaram a pretos velhos 

com as marcas na pele 

Na carne 

na alma 

senhora pelotense 

charqueados.

Essa originalidade coesa em poucos e simples versos sem atavios grandiloquentes e inúteis transforma-se em tristeza niilista em Éle Semog:

PANO DE BOCA 

De repente, assim, assim, 

Num passe de mágica 

Com uma fome atávica 

Comeram todas as palavras! 

Ou: 

IMPASSE 

às vezes a vida 

me passa de reluz 

como um imenso 

e inevitável funeral. 

ÀS MINHAS CUSTAS 

Tudo que sei do número treze 

É que é o grupo do galo 

E que é o dia de azar. 

Tudo que sei de liberdade 

é continuar escapando 

Da penitenciária 

Pois não existem quilombos 

Para me guardar

Abelardo Rodrigues ousa mesclar a uma imagem que normalmente despertaria piedade um tom grotesco de títeres que caem pelo chão, torpes, conduzidos por mãos inábeis, misturando o Carnaval e o ritmo de submissão que é uma forma de autonegação para um macabro ritual sádico e masoquista da subjugação e do engodo, ao lado do escárnio e da perda da dignidade humana: “Agora choraremos/ em compassos e apitos/ nossos passos/ de caranguejos./ Pesadamente como o tanque/ miraremos o canhão para nosso espelho/ até sermos felizes/ como viúva saciada”.

É lógico que os demais poetas dessa antologia variam na qualidade da forma e conteúdo de seus versos. Inegavelmente, há participantes, outros, dessa coletânea que nada têm de poetas, mas, sim, de oradores empolados de uma retórica babosa, ou pessoas, que confundem poesia com a letra inconsequente de um sambão tradicional. É inevitável que, ao lado de grande e legítimos talentos, que crescerão com o tempo, haja vocações fracassadas e que deveriam abandonar o cultivo da poesia por um cultivo mais rendoso, das rosas que abundam em seus pseudopoemas, às bactérias que infirmam a banalidade dos que têm ou bisonhamente julgam que têm o que dizer. É o caso palpável, por exemplo, do, digamos, poeta paraibano Arnaldo Xavier. Usando de artimanhas gráficas que já tinham cabelos brancos quando E. E. Cummings, o poeta menor norte-americano que se recusa a usar maiúsculas e confundia layout gráfico com experiência poética. De que adianta, realmente, colocar entre parênteses invertidos as palavras )Agonia(, )Grito(, )Medo(, )Tristeza(, se o final é um cretino:

Ei-la aqui. 

Ei-la aqui! 

Ei-la aqui!? 

Ei-la AQUI. 

  • Não há mais como camuflar a Dor.

Em sua, como diremos, poesia intitulada “Até o Mais Herético dos hereges reza quando ama”, o candidato de Musas esclerosadas começa declarando:

Quando falo 

:)Amor( 

Soa falso como uma Árvore 

Se esboço um gesto de Luz 

)redijo( 

Escuridão 

Em todos os movimentos 

Na Certezabsurdônika: DE QUE, 

ESTAMOS MORRENDO A CADA MOMENTO

Com tanta imbecilidade disposta como o diagrama da própria estultice, o rapaz/homem/senhor depois de admitir com maiúsculas que “não vomito, Eu sou o próprio vômito”, reconhecimento cínico impecável pela certeza da diagnose ele se põe a inventar uma “Niicanção” (que será), “Estrelas Quadrúpedes”, “Sóis Bípedes” para, linhas penosas, adiante, relatar que “Dor foi expulso/ por cuspir no rosto do Goleiro Amor/ e troca de pontapés com Paixão”, resultado de uma partida nefasta contra a inteligência, a renovação poética autêntica, a sensibilidade e a cultura do leitor e, quem sabe?, soberbo “deleithe” (à moda do autor) por sua superioridade intrínseca? Afinal, em outro, que termo se pode usar? Criação de sua larva ele “inova” com termos como “O Pássaro Homem/Só/Queria Voar no gerúndio” e por medo de contágio de tanta perda atônita de neurônios linha após linha o leitor, com um suspiro de alívio, passa a outro bardo.

Esta antologia não teria desculpas que pedir por incluir alguns nomes que ombreiam com os maiores criadores de kitsch, pois no Brasil, afinal, o kitsch serve até para eleger à Câmara dos Deputados, em Brasília, o “poeta” J. G. de Araújo Jorge, fora outras manifestações Certezabsurdônika que galgaram, através do voto, o Planalto ou até mesmo a Assembleia diante do Parque Ibirapuera, nas últimas eleições.

Como a literatura é por essência democrática, não caberia ao crítico mostrar-se didático, complacente nem intolerante para com esses poetas desiguais no talento e na obtenção de suas metas poéticas. No entanto, o que se constata, visivelmente, é que uma parte decisiva da população brasileira, a que tem uma origem étnica africana, dia a dia desfaz os chavões que, como esparadrapos amorfos, são colocados no negro como futebolista, carnavalista, garanhão erótico, temperamento infantil, quando não malandro, assaltante e quimbandista. Essa antologia comprova que, se há, certamente, uma temática negra no vasto repertório da poesia brasileira – e em alguns casos, parece-me, da melhor qualidade - , ela, inexoravelmente, se funde com a população de outras etnias, na luta por um avanço efetivo da Massa de todo o povo brasileiro, na qual está fundida, inevitavelmente, seu segmento negro. Não esmorecer diante do muro dos preconceitos, da prepotência, da injustiça e da ignorância, insuflar à fisionomia do Brasil o traço que mais caracteriza a raça negra: a dignidade. Atualizar os livros que omitem sua participação decisiva na construção deste país, atingir níveis altos de educação e manter os valores ancestrais de sua cultura. Haverá ideal que mais se coadune com os brasileiros de origem africana?

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “O negro nos livros, poemas e teses .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.