Kafka (1983)

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1983/07/02. Aguardando revisão.

Um juiz, diante de um operário detido por estar desempregado ordena que o réu, no prazo de um mês, consiga um emprego ou será preso acusado de “vadiagem”.

Um locutor de rádio, ao condenar a invasão por seu país de um território de uma nação vizinha, é preso e enviado a uma clínica psiquiátrica: se ele está louco, ao ponto de criticar o próprio governo nacional, terá de submeter-se a terapias com drogas alucinatórias.

Quadrilhas organizadas disputam as áreas em que poderão profanar os túmulos, roubar o ouro e as jóias dos cadáveres, e repartir os mausoléus com os loucos, os mendigos e as prostitutas, sem um tostão para pagar um aluguel na favela.

São três exemplos, noticiados pela imprensa diária, que relatam casos verídicos acontecidos em São Paulo e na Rússia, nestes dias.

O que pode ser mais claramente kafkiano como exemplos vivos do clima em que se desenvolvem as criações deste grande autor cujo centenário se celebra neste dia 3 de julho de 1983?

A transformação inesperada e surpreendente de um caixeiro-viajante, narrada em Die Verwandlung (A Metamorfose) é da mesma categoria:

“Uma manhã, ao despertar de sonhos agitados, Gregor Samsa achou-se em sua cama, transformado num gigantesco inseto. Ele jazia sobre as suas costas duras, como que revestidas de um casco, e, ao levantar, um pouco a cabeça, viu seu ventre marrom, arredondado e cortado por anquiloses, sobre o qual a colcha, pronta a deslizar, mal se sustentava. Suas múltiplas pernas, bastante finas em comparação com as dimensões de seu corpo, agitavam-se nervosamente diante de seus olhos.

O que aconteceu comigo?, ele pensou. Não era sonho.”

Qualquer conto, romance ou novelle (conto longo) de Kafka, este autor checo, do ambiente judaico de Praga, de língua alemã, instaura, desde as primeiras linhas, um absurdo como que banalizado, se isso for possível: dentro de um mundo real, descrito com minúcias naturalistas, é a predominância do ilógico, do fantástico que reintegra, na literatura, o mesmo clima de perguntas sem respostas ou de ausência de causas para o irracional que Lewis Carroll dera a Alice e seus personagens do País das Maravilhas e de Através do Espelho.

É através de um espelho que coloca todas as coisas e todos os seres “de cabeça para baixo” que Kafka escreve.

Em Der Hungerkünstler (O Artista da Fome) a arte de um homem no picadeiro é justamente passar fome sem contar mais as horas e os dias que voam: o relógio dentro da sua jaula parou; o calendário que contava seus dias de jejum foi abandonado, e ningém mais se interessa em saber quantos dias ele já jejuou. No final, aquele esqueleto esquecido num montículo de palha é entregue às mandíbulas de um tigre. O artista que nunca encontrara um tipo de comida que lhe agradasse, morre como “artista da fome”. Nada de “demonstrações” circenses de um faquir indiano nem de bater recordes de resistência física: passar fome, se possível até o infinito, é a sua forma superior de arte. Sem ironias nem condescendências.

Em O Processo (Der Prozess) um homem que é, talvez, o outro Kafka, seu alter ego, com o sobrenome críptico de K., é julgado em instâncias inferiores de uma Justiça sempre invisível e no dia de seu aniversário é executado por carrascos sujos, trapalhões e desconhecidos.

Ou em Das Schloss (O Castelo) um enigmático e anônimo agrimensor, denominado apenas K., jamais consegue passar do vale onde os habitantes mesquinhos, comuns, de um vilarejo, vegetam até o plano do Castelo, onde regem todos os destinos personagens corruptos, sensuais e, na cúpula hierárquica, um Soberano inacessível, invisível, arbitrário. A Lei que determina todos os comportamentos humanos é como a ordem brusca da dama do baralho, a Rainha que furiosa investe pelo tribunal adentro, em Alice no País das Maravilhas e exige: “Primeiro a condenação, depois o julgamento! Cortem-lhe a cabeça!

Kafka permanece como, entre outros símbolos, a Esfinge da literatura do século XX. Para captar as suas intenções, as suas origens, todas as arqueologias foram chamadas à frente de batalha. Pressurosos, os doutos especuladores da Literatura muniram-se de pás e microscópios, computadores que somam as vezes em que Kafka usou determinadas palavras para esmiucá-lo e, ah, finalmente, decifrá-lo! Na Alemanha, nos Estador Unidos, na França – quem sabe até na Mogólia Exterior? – os Literaturwissenschaftler ou, como são risivelmente chamados em alemão os “cientistas da literatura” puseram mãos à obra.

Ora, exclamou um grupo, é fácil este enigma: basta apelar para a psicologia freudiana e verificaremos que Franz Kafka sofria do complexo de Édipo. Que detestava o pai, não há dúvida: sua longa carta, em que o invectiva durante dezenas de páginas, está ali para atestar a veracidade de tal hipótese. Logo, Kafka é um frustrado, repelido pela figura vulgar, monstruosa, do Pai Onipotente e que paga caro essa “castração de afeto”, rompendo noivados cinco vezes e concluindo tragicamente que deve permanecer solteiro, pois nunca cresceu, é uma criança de aspecto adulto, mas idade mental de cinco, seis anos, não se casa. Eis tudo!

Imediatamente, uma corrente contrária brande vigorosas bandeiras ao vento para demonstrar o grotesco da interpretação psicológica. Teológica tem de ser a decodificação de Kafka, afirmam a uma só voz. O Pai é transparentemente um símbolo apenas de Deus Todo-Poderoso: atingir a Lei é atingir o Paraíso e onde fomos arremessados rudemente; o Pai pode ser um Jeová impenetrável do Velho Testamento que ordena a Abraão que sacrifique seu amado filho Isaac, cortando-lhe a garganta para testemunhar sua Fé cega em um Senhor irascível, caprichoso e, pelos parâmetros pobremente humanos, cruel. Kafka é um místico, pois não respondeu a seu conhecido, Gustav Janouch, que “escrever é uma forma de rezar?”, peroram triunfantes.

Quao o que, redarguem, zombeteiros, os analistas políticos! Kafka é um profeta, no início deste século, do Inferno monstruoso dos campos de concentração nazistas que Hitler, Eichmann e centenas de outros “executores de ordens” instalaram na Alemanha e nos países ocupados. Em A Colônia Penal (In der Strafkolonie), por exemplo, a máquina que escrevia na carne do prisioneiro o texto do parágrafo legal que ele infringira, torturando-o durante doze horas, ou seja: até a sua morte, com as agulhas retalhando seu corpo com as letras tatuadas sem anestesia em seus membros, costas e costelas já inertes de tanta dor – haveria outra imagem que captasse melhor o horror bestial de Dachau, Auschwitz, Belsen, Theresienstadt? Kafka não “previu” miraculosamente, com lucidez inigualável, os “campos da morte”, os Konzentrationslager em que seis milhões de judeus foram empurrados, nus, para suas covas cavadas previamente por eles mesmos ou jogados nos “chuveiros” dos quais saía, em vez de água, gás venenoso? O martírio do que violou uma Lei qualquer – por exemplo, o da “pureza da raça alemã” ou “a moral e os bons costumes” – não é típico dos milhões de homossexuais e ciganos, sacerdotes e seguidores da ideologia esquerdista que perfazem os outros quatorze milhões de vítimas das “experiências médicas” levadas a cabo nos campos? Como a interessante prova de “tolerância à expansão”: um prisioneiro aspira ar que lhe é bombeado pela boca e pelo nariz ou, para ficar mais engraçado, que lhe é introduzido pelo ânus – enfermeiro, conte os minutos e segundos que uma pessoa leva para explodir, gordíssima como um balão flutuando desesperado no ar comm essa experiência!

Ai de nós, Kafka não é tão arquivável assim e, depois, os políticos, como se sabe, têm a desavergonhada tendência para mudar e assim rever até suas formas de focalizar o enigma Kafka. Por exemplo: sim, é verdade que Kafka predisse certeiramente o que seriam as atrocidades nazistas, mas o mesmo “empirismo”, digamos, predomina nos Gulags de Stalin. E, berra, segura da vitória de seus argumentos, a ala dos dissidentes: claro, como O Processo e O Castelo prenunciam, fora de dúvida, o mundo da Papierkrieg, a guerra da papelada burocrática: estampilhas, selos, carimbos, atesstados, segundas vias que literalmente quase envolvem vidas humanas como múmias egípcias enroladas em gaze. Joseph K. e K. não têm acesso à Justiça, à Lei, à Liberdade porque são réus sem crime, no labirinto de poderes menores, sórdidos, tão inexpugnáveis quanto implacáveis na manufatura de papéis que ninguém lê, ninguém verifica, ninguém contesta: a papelada torna-se a Máquina que se alimenta de vidas humanas fresquinhas, empasteladas em arquivos poeirentos, certidões sebentas, atos notariais roídos por ratos e sem valor, mas conservados ciumentamente embora nunca conferidos: para quê?

Como um elefante tocado por vários cegos ao mesmo tempo, Kafka desafia as definições: para uns deve ser um touro grande, pois tem orelhas enormes, para outros se trata evidentemente, de uma serpente: a tromba não é a cauda de uma cobra? Ou será um piano arfante que devora ervas: afinal, as pressas de marfim no escuro são facilmente confundíveis com um teclado ou dois pares paralelos de ossos, não?

Kafka marca, portanto, de forma insofismável, os limites da crítica. Lógico, todas as perspectivas – mesmo as históricas – preenchem aqueles fragmentos de verdade subjetiva de que falava Kierkegaard. Consequentemente, não é totalmente inútil nos certificarmos de que antes, cronologicamente, de Kafka, Já Musil, o autor austríaco de O Homem sem Qualidades ou melhor: O Homem sem Características Próprias (Der Man ohne Eigenschaften), escrevera um romance labiríntico em que o personagem central em nada se distingue dos demais, aparentemente. Para Kafka, também, fora os acontecimentos alucinantes, tudo é previsível. Depois que Joseph K. foi preso, sem culpa formada, o desenrolar de seus dias e da demais pessoas não poderia ser mais comum, a não ser o padre que na lúgubre catedral abandonada e escura, prega, à noite, um sermão que ninguém escuta, de um púlpito menor, diante de bancos vazios. Seus carrascos cumprem ordens com o mesmo descuido típico de Eichmann e sgundo o lema nazista: “Befehl is Befehl!”, que em português seria mais fiel traduzir – nesta língua que falávamos e que agora é vítima de um câncer de palavras inglesas – por “ordem não se discute!”, em vez do literal mas igualmente inquestionável: “Ordem é ordem!”

Da mesma forma, o macaco que faz uma conferência numa douta academia em “Ein Bericht fur eine Akademie” para explicar como se tornou um ser humano e agora consome Schnapps (pinga) como qualquer outro homem: o que tem de anormal? Sua aparência não é humana. Só sua transformação é, digamos, meio fantástica. E que dizer de Josefine, a ratinha que não tendo seu talento vocal reconhecido pela multidão de camundongos se recusa a cantar, em greve contra a falta de sensibilidade musical dos demais roedores?

Seria então mais aproximada da verdade a análise do Diário (os Tagebücher) de Kafka? Ele contém não só trechos de seus contos inseridos entre uma lembrança e outra de viagens e encontros femininos infrutíferos como declarações aparentemente solenes e formais do próprio autor.

Por exemplo (na anotação quase misteriosa de tão sucinta, típica de seu modo de fixar pensamentos, ideias, observações, recordações): “O apavorante do puramente esquemático”; “Há possibilidades para mim, é certo, mas debaixo de que pedra jazem?”; “O que tenho a ver com os judeus? Mal e mal tenho alguma a ver comigo e deveria, bem quieto, me contentar com poder respirar e ficar num canto.”

“Permanecer casto – Casar-me.

Solteiro – Homem casado.

Conservo todas as minhas forças coesas. Você perderá toda a coesão interior, tornar-se-á um idiota, seguirá qualquer vento que sopre.”

Ou a célebre carta em que ele troveja contra o pai pela vulgaridade implícita e inerradicável da natureza paterna: sua maneira brutal de tratar os empregados domésticos tchecos, aqueles “inimigos pagos” dentro de casa, as frases arrasadoras com que saúda qualquer manifestação filial, o arbítrio levado à loucura de mesmo não tendo opinião alguma sobre um assunto, obviamente qualquer opinião que se tenha sobre qualquer coisa é irremediavelmente, inapelavelmente inferior à sua, que não existe! A mesma carta cheia de ódio e terror e reverencial em que Kafka atribui ao Pai-Minotauro a ausência de qualquer sentimento religioso, expondo à sensibilidade da criança o espetáculo da absoluta indiferença patera diante dos ritos da Sinagoga, como se fosse mais outra maçante obrigação profissional de comerciante inculto e que, como Goebbels, quando ouve falar em cultura se não puxa de um revólver real esmaga com um bocejo e gracejos assassinos qualquer coisa mais sutil, mais refinada, menos grosseira que lhe passe diante dos olhos, do nariz, dos dedos.

Kafka brinca de esconde-esconde com o leitor. Como uma das sinagogas de Praga de nome ambivalente, Altneu, Velhanova, Kafka é suscetível de várias rotulações contraditórias: foi quase simultaneamente sionista e antisionista, contra os judeus e a favor de um renascimento literário judaico que proibisse qualquer criação que não fosse em hebraico ou possivelmente em yídiche. Que permaneceu como um pêndulo ora distante ora próximo das mulheres com as quais, como Felicia Bauer, comemorou o noivado para desfazê-lo e mais tarde retomá-lo. Até as cartas que escrevia eram mera máscara para ocultar seu “eu” verdadeiro. Minutos após ter fechado o envelope de uma correspondência que enviou a Max Brod, assinala: “Carta ontem para Max. Mentiras, arrogância típicas de um ator canastrão”. Escrevendo a Milena, a fascinante e passional intelectual tcheca com quem mantém relações depois puramente epistolares, não hesita em ridicularizar seu possível casamento futuro: “Daí se deduz que estamos ambos casados, você em Viena e eu com o meu medo, em Praga; e não só você , as eu também puxo em vão a barra do vestido do nosso casamento… O medo constitui a minha natureza, eu consisto do meu medo e talvez sea esta a minha parte melhor”.

Desconcertante Kafka. Na maravilhosa observação penetrante de Borges: na literatura mágica não há coisas distantes, a causalidade é fluida e tudo é simultaneamente importante, portanto. Seria importante relacionar Kafka com Baudelaire e o desbancamento do ídolo elevado a dogma estético e ético por Keats: “A Beleza é a Verdade e a Verdade, a Beleza?” Confirmar que, ao contrário dos românticos, modernamente o Horrível é que é o Belo? Aparentá-lo com Ionesco e o teatro do absurdo ou com Beckett e uma literatura da crueldade, desamparo e possível inexistência para os seres humanos, de uma transcendência chamada Deus? Representante típico do gueto em que o artista contemporâneo vive, sem mecenas nem admiradores. Kafka como judeu de língua alemã, sem crença ortodoxa no Talmud e no Judaísmo, numa Thecoslováquia que fremia de ardor nacionalista recém-liberta do jugo austríaco em 1918 não era, como o descrevia o coetâneo, Pavel Eisner, o inimigo do povo sem povo?

Para muitos Kafka instaurou o anti-heroi. Os fracos, vencidos pela impotência, deixaram uma ninhada de assim chamados anti-herois: os da geração beatnick de Jack Kerouac, os ladrões e assassinos do submundo de Barcelona retratados por Jean Genet. Mais ainda: Kafka não será, como ele próprio vaticinava, “o fim e o princípio”? O fim da sintonia entre o leitor e o que lê, já que o autor habilmente escapa, como Beckett por trás de Molloy ou dos mendigos esperando por Godot? Ou Kafka será, realmente, o fim da literatura europeia, naquele crepúsculo entre as duas guerras, carregando o caixão da Grande Literatura do Velho Mundo ao lado de Fernando Pessoa, Joyce, Virginia Woolf, Thomas Mann e Proust? Depois dele, apenas do ponto de vista da cronologia histórica tão cara aos “cientistas da literatura”, explodiu, com ajuda de alguns editores ardilosos latino-americanos e sobretudo europeus, a literatura latino-americana. Borges, Rulfo, Garpentier, Llosa, García Marquez, Guimarães Rosa, Clarice Lispector. Seiva multideslumbrante, mas brotada do mesmo mundo de abolição da causalidade quanto O Castelo, A Metamorfose, O Julgamento (Das Urteil), O Processo

Se lhe é atirada no rosto a pecha de não ter participado da defesa dos múltiplos opimidos – os tchecos lutando por sua independência nacional, os trabalhadores com salários minguados e tugúrios para viver, os lavradores e sua servidão diante da nobrez ignara, egoísta e parasitária, a lavagem cerebral infligida aos crentes que justificavam a imobilidade da Igreja Católica como a vontade do Senhor, cujo Reino, proverbialmente, não é deste mundo. Se for necessária qualquer “justificativa” para a atormentada criação de Kafka – salva do fogo que ele mesmo queria lhe atear por seu conhecido max Brod, que transportou uma valise cheia dos seus manuscritos rumo a Israel -, então ela sera mais sutil, mas não por isso menos densa: Kafka irmanou-se com os filhos de hoje. Irmanou-se a nós que convivemos com 45 países em luta cotidiana, com os botões nervosos por serem apertados em Washington, Moscou ou Paris e prontos a disparar, à escolha, bombas de neutrons, armas químicas (mais baratas que as atômicas e já aprovadas no Camboja, no Laos e no Afeganistão, com a garantia da chuva amarela, versão moderna do desfolhante laranja, de priscas eras vetnamitas, do you remember?) Kafka, no interior mais profundo da Angst (que em alemão tanto pode significar medo quanto angústia), assumiu – pode-se dizer assim? – a nossa identidade transnacional: somos todos arbitrariamente descartáveis, explodíveis, silentes anuências de bodes expiatórios mudos e paralisadoramente aterrorizados e, quem sabe?, com lágrimas sentimentalóides nos olhos ofuscados por novas Hiroshimas.

Seria porém difícil arrolar Kafka no Panteão ilustre dos niilistas, depois que Nietzche, talvez levianamente, se arrogou o direito de expedir, em nome de Deus, a Sua certidão de óbito. Se Kafka recusa o categórico imperativo moral de Kierkegaard e de Kant, nas nossas relações com o Absoluto e com o próximo, como se dizia do príncipe Hamlet, “na sua loucura há método”. Que método? O de uma crença, uma esperança finais. É assim que termina seu hino otimista a uma nova vida, Amerika, aquele contimente novo em que, como cantara democraticamente Walt Whitman, todos seriam iguais e livres de contrangimentos. E é assim que ele – inadvertidamente ou lucidamente – sonha:

“Para mim o mundo estava dividido em três partes: uma, na qual eu vivia como um escravo, sujeito a leis que tinham sido inventadas unicamente para mim e com as quais, não sei por que, eu nunca pude concordar. Depois, um segundo mundo, infinitamente distante, remoto do meu, em que tu (o pai) vivias, ocupado em mandar, dar ordens e com o aborrecimento causado pela desobediência a essas ordens. E por fim um terceiro mundo em que viviam as pessoas restantes, que viviam felizes e livres tanto de dar ordens quanto de obedecê-las”.

Na terminologia percuciente de Ernest Becker, o profundo filósofo norte-americano fugindo à “glória” e ao “poder” ou ao “sucesso” na firma de seguros contra acidentes de trabalho, em que era funcionário do departamento jurídico, fugindo a todas as delícias de uma acomodação burguesa a metas fúteis, Kafka tornou a sua vida, amalgamada indissoluvelmente com a sua arte, um isolamento que frutifica porém na individualização. Hoje, mais do que em tempos mais serenos, Kafka afirmou, talvez até mesmo inconscientemente, o heroísmo pessoal do artista no século XX. Fugir da inautenticidade e espelhar o mundo acarreta a prisão, o hospício, o campo de concentração, a miséria, a incompreensão coletiva, como Solzhenitsyn, Céline, D. H. Lawrence e Joyce comprovam. Mas Kafka aceitou o desafio do poeta de lutar com palavras: “A missão do poeta é profética: a palavra exata guia, a palavra inexata seduz. Não é por acaso que a Biblia é chamada de”A Escritura”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Kafka (1983) .” In Testemunhos Literários do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 3. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.