A poesia quase secreta do Recife: Mauro Mota, Itinerário

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
O Estado de São Paulo, 1975-05-31. Aguardando revisão.

A folha corrida do Recife: desde a resistência à invasão holandesa, vem vencendo a batalha pelo abrasileiramento da nossa cultura, livre de estrangeirismos inúteis mas abertas à qualidade internacional.

Características pessoais: um grande pensador social, Gilberto Freyre.

Um extraordinário renovador do teatro com o Auto da Compadecida, e do romance com A Pedra do Reino, o paraínbano Ariano Suassuna.

Um ousado inovador da pintura, contemporâneo da Semana de Arte de 1922, o pernambucano parisiense Vicente do Rego Monteiro.

Um admirável mestre de concisão poética e de poesia social, João Cabral de Melo Neto.

Outras observações: na região de Pernambuco encontra-se além da cerâmica dos sucessores de Mestre Vitalino de Caruaru o impacto musical do Quinteto Violado e a original poesia popular declamada de Ascenso Ferreira.

Fora desta sumária Carteira de Identidade, o Recife apresenta particularidades menos conhecidas mas igualmente marcantes. O poeta Mauro Mota é uma dessas descobertas gratificantes de um Pernambuco semi-secret0 e pouco divulgado no Sul.

Itinerário reúne alguns de seus poemas mais típicos e mais importantes, embora seja mais uma antologia do que um livro novo como erroneamente afirma sua Editora num arroubo de promoção de vendas.

Para conhecer a força de Mauro Mota, o melhor atalho é abrir logo a página 50. Seu delicioso poema longo, “Cantiga do Engenho Cavalcanti sobre o Livro de Assentamentos do Barão de Tracunhaém” é um mostruário de sua graça, de seu vocabulário regionalista, de sua feição popular através de uma sábia filtragem erudita:

“Ao tomarem seu engenho

tão vivo de fogo-morto,

João Maurício Vanderlei

anima os restos mortais,

que o seu inventário é lei

empurra o epitáfio e sau

da capela de Goitá”

Este fantasma das antigas usinas de açúcar, senhor aristocrático de latifúndios perdidos no tempo, ressuscita da morte como uma força atávica e indomável: “A paisagem restitui-lhes/ os olhos azuis batavos;/ gente, bicho e partidos/ de cana, os demais sentidos.” Há então um lírico encontro com seus bois de nomes originais, Asa Branca, Pensamento, Marfim, Navegante. Senhor sem escrúpulos, expulsa os herdeiros armado de “cabras” que empunham mosquetões: “Os mesmos que trabalharam/ nas eleições provinciais/ e com fogo liquidaram/ o fogo dos liberais.” A sedução de uma menina de 15 anos “o casamento feito na teraç-feira de entrudo” acentuam o caráter machista e depoótico do Barão alma penada que vaga pela casa-grande e pelo pomar onde ecoam as proibições da infância: “manga de noite é veneno; abacate dá sezões;/ goiaba, dor de barriga;/ jaca-mole, hidropsia;/ para morrer de repente,/ talhada de melancia”. Nesse intinerário fantasmagóric, o Barão enumera os filhos ilegítimos que teve com as escravas, registrando “a genealogia sumária de suas crias:/ a 15 pariu Chiquinha,/ a 4, pariu Maria,/ a 27, Juliana./ E a tragédia do Jacinto,/ que por adiantar-se um dia/ à lei ventre-livre, foi/ batizado por cativo”. Tudo revê esse espectro nostálgico e sem descanso: as mezinhas do “curandeiro Avelino:/ garrafadas para sífilis/ pomadas para maleita”; contas de dinheiro entregue depois da safra dos carnavais, a troca de cavalos, as superstições anotadas no papel: “Os dias aziagos péssimos/ para negócios e viagens./ Sangue de irmão na primeira/ segunda-feira de agosto,/ quando Caim matou Abel.” A aparição sem descanso nas noites do Nordeste reanima-se com essas recordações, sente-se novo vivo e poderoso: “Tenente-Coronel do Batalhão,/ dono de terras e gente/ e da carta de barão”.

Há outros poemas singulares que traçam o perfil de Mauro Mota. Os melhores unem sempre a uma pungente denúncia social uma ternura que atenua a acidez da revolta. “A Tecelã” é dos melhores exemplos de criação literária engajada não só com uma reivindicaão ideológica de justiça como também de engajamento com a inteligência. “A Rendeira” medita sobre a beleza criada pelo sofrimento, commo a pérola brota da irritação de um ser vivo, a ostra: “De onde a origem fieira da família rendeira?/ Onde a ponta do fio/ de atavismo e atavio?” até o final seco e de certeiro impacto emotivo: “Horas a fio na esteira/ permanece a rendeira,/ entre o chão e a janela,/ com seu mundo entre as pernas”.

Esta frequente evocação da mulher operária, da mulher humilde e explorada em seu trabalho, atinge também uma classe menos sub-empregada, no poema “Em louvor de uma Estenodatilógrafa”. Aqui o poeta pernambucano casa concisamente a reflexão política e uma ironia sutil contra a burocracia rica em decretos e palavrório empolado mas inerte diante dos dramas que pretende resolver: “No papel-lâmina, deslizam estenógrafos sinais,/ os semoventes bacilos/ das doenas oficiais”. Até os versos lírico-conceituais esplêndidos:

“Sangue de papel-carbono

coagula-se nas cópias

das palavras esmagadas,

migrantes da fita nova.

Nos dedos, há a nostalgia

do piano e a contradição:

ver, no teclado, a oficina

de frases frias e pão”.

Frequentemente Mauro Mota presonifica as coisas inanimadas para enfocá-las de um ponto de vista inédito pela sua originalidade: em “A Mesa” o móvel é visto como um eterno velório: os convivas morreram depois de empunhar os talhares assassinos, enquanto tíbias se cruzam sob ela: “A toalha, a mortalha branca,/ e, em cima da mesa,/ a poeira dos comensais deglutidos”.

Poeta em surdina, jamais cria um verso sequer atroante, de efeito grandiloquente e oco de significado. Ao contrário, nesta inspiração melancólica, íntima, de ruas mortas, de assombrações que perambulam pelas noites do Recife, sua mais delicada e profunda elegia à Morte, Leitmotiv constante, destina-se a um pássaro recolhido pelo Museu do Ginásio Pernambucano. E uma abertura deslumbrante pela arquitetura rítmica e pelo simbolismo da aliteração inicial:

“Flecha feria pela flecha impune

era um pássaro morto, mas eterno”.

E sua modéstia que transparece até no título do poema “Humildade” e que poderia servir de retrato autobiográfico do poeta:

“Que o canto simples, natural, rebente,

água da fonte limpida, do fundo

da alma, de amor e de humildade cheio”

Essa aceitação lúcida da vida estende-se à morte, quando ele próprio se anima a não ter medo: a morte “sucessiva e múltipla” como já a reconhecia Proust diante do espelho que foi levando aos poucos a vida fugitiva debaixo de cajueiros em torno da casa de alpendres na cidadezinha do interior: “Não tenhas medo… : Perdeste a integriadade primitiva,/ sombra do corpo ausente e do espírito distante./ Não tenhas medo,/ tudo já aconteceu”.

Essa insistência na perda progressiva das pessoas, dos lugares, dos nomes, não torna porém os poemas de Itinerário um álbum monótono de evocações lamurientas pelo tempo que passou. Há momentos de permanência: é quando o poeta fixa um momento e um local como um presente eternizado pela lembrança e pela arte, um acorde menor da imensa sinfonia proustiana em busca do tempo perdido:

“Debruço-me de fora

onde havia a janela.

Nuvem ou casa extinta?

Lá estou como eu era.”

A casa como permanência é um motivo poético para o qual Gaston Bachelard em sua monumental A Poética do Espaço já chamou a atenção com a aguçada sensibilidade de sua percepção intelectual:

“Se passamos a imagens que insistem, que nos obrigam a nos lembrar mais adiante do tempo passado, os poetas são os nossos mestres. Com que força nos provam que as casas perdidas para sempre vivem em nós. Em nós, insistem em reviver, como se esperassem de nós um suplemento de ser… Por que nos saciamos tão rápido com a felicidade de habitar a morada? Por que não fizemos durar as horas passageiras? Alguma coisa mais que a realidade faltou à realidade”.

Mauro Mota pressente e transmite plenamente ao leitor essa dimensão da Casa da infância que transcende os limites cronológicos para completar-se numa mistura de sonho e concreta realidade. É essa atmosférica magia do real colorido de irrealidade que o poeta pernambucano infunde à sua busca das coisas que partiram não se sabe para onde.

Na soberba especulação do esteta e filósofo francês:

“Assim, os sonhos descem às vezes tão profundamente num passado indefinido, num passado liberto de suas datas, que as lembranças da casa natal parecem desprender-se de nós… Nosso passado está num além e uma irrealidade impregna os lugares e os tempos… O poeta e o sonhador escrevem páginas que um metafísico do ser ganharia em meditar…, o que foi terá sido mesmo? Os fatos tiveram o valor que lhes dá a memória? A memória distante não se lembra deles senão dando-lhes um valor, uma auréola de felicidade. Apagado o valor, os fatos não se sustentam mais. Existiram? Uma irrealidade se infiltrou na realidade das lembranças que estão na fronteira de nossa história pessoal e de uma pr-história definida, a ponto de a casa natal, depois de nós, voltar a nascer em nós. E toda realidade de lembrança se torna fantasmagórica”.

É essa doce fantasmagoria que dá à morte uma feição branda, sem nada de apavorante na poesia de Itinerário. A amada morta, a perenidade heraclitiana do rio Capibaribe que não espelha mais os jovens de outrora e passa indiferente ao ser humano efêmero são temas que ele dispõe como litanias dos vivos diante da Morte. Entre a vida e o túmulo, porém, commo linha demarcatória de duas realidades, a lembrança perdura. E entre o hoje que amanhã será ontem e a desagregação de tudo - dos companheiros, das imagens da cidade desfeita, dos sentidos que progressivamente se amortecem na mortalha da surdez, da amnésia, da cegueira, da arteriosclerose - a Casa permanece fincada como um único vestígio concreto do ser.

Nas palavras imelhoráveis de Bachelard:

“Para quem sabe escutar a casa do passado, não será ela uma geometria de ecos?”

“A Tecelã”

“Toca a sereia na fábrica,

e o apito com um chicote

bate na manhã nascente

e bate na tua cama no sono da madrugada.

Ternuras da áspera lona

pelo corpo adolescente.

É o trabalho que te chama.

Às pressas tomas o banho,

tomas teu café com pão,

tomas teu lugar no bote

no cais do Capibaribe.

Deixas chorando na esteira

teu filho de mãe solteira.

Levas ao lado a marmita,

contendo a mesma ração

do meio de todo dia,

a carne-seca e o feijão.

De tudo quanto ele pede,

dás só bom-dia ao patrão

e recomeças a luta

na engrenagem da fiação.

Ai, tecelã sem memória,

de onde veio esse algodão?

Lembras o avô semeador

com as sementes na mão

e os cultivadores pais?

Perdidos na plantação

ficaram teus ancestrais.

Plantaram muito. O algodão

nasceu também na cabeça,

cresceu no peito e na cara.

Dispersiva tecelã,

esse algodão, quem colheu?

Tuas pequenas irmãs,

deixando a infância colhida

e o suor infantil e o tempo

na roda da bolandeira

para fazer-te fiandeira.

Ai, tecelã perdulária,

esse algodão, quem colheu?

Muito embora nada tenhas,

estás tecendo o que é teu.

Teces tecendo a ti mesma

na imensa maquinaria,

como se entrasse inteira

na boca do tear e desses

a cor do rosto e dos olhos

e o teu sangue à estamparia.

Os fios dos teus cabelos

entrlaças nesses fios,

e outros fios dolorosos

dos nervos de fibra longa

Ó tecelã perdulária,

enrosca-te en tanta gente

com os ademanes ofídicos

da serpente multifária.

A multidão dos tecidos

exige-te esse tributo.

Para ti, nem sobra ao menos

um pano preto de luto.

Vestes as moças da tua

idade e dos teus anseios,

mas livres da maldição

do teu salário mensal,

com o desconto compulsório,

com os infalíveis cortes

de uma teórica assistência,

que não chega na doença,

nem chega na tua morte.

Com essa policromia

de fazendas, todo dia,

iluminas os passeios,

brilhas nos corpos alheios.

E essas moças desconhecem

o teu sofrimento têxtil,

teu desespero fabril.

Teces os vestidos, teces

agasalhos e camisas,

os lenços especialmente

para adeus, choro e coriza.

Teces toalhas de mesa,

e a tua mesa está vazia.

Toca a sereia da fábrica,

e o apito como um chicote

bate neste fim de tarde,

bate no rosto da lua.

Vais de novo para o bote.

Navegam fome e cansaço

nas águas negras do rio.

Há muita gente na rua

parada no meio-fio.

Nem liga importância à tua

blusa rota de operária.

Vestes o Recife, e voltas

para casa quase nua.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1975) 2022. “A poesia quase secreta do Recife: Mauro Mota, Itinerário .” In Poetas brasileiros contemporâneos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 4. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.