Entrevista - León Damas e a Negritude brasileira

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Correio da Manhã, 1965/04/03. Aguardando revisão.

O poeta León Damas, da Guiana Francesa, que constituíra com Césaire, da Martinica e Senghor, hoje presidente do Senegal, o triângulo sobre o qual se baseia o movimento da Négritude, encontra-se pela segunda vez no Brasil. Na sua sala de estudos de um apartamento em Copacabana ele nos recebe com grande afabilidade, cercado de livros brasileiros e, bem à mão, um dicionário francês-português. Veio pesquisar, com uma bolsa de estudos, a contribuição do homem de cor à literatura brasileira e faz questão de ressaltar, logo de início, a cooperação que vem tendo do diretor da Biblioteca Nacional e o valor da obra de Antônio Olinto sobre os Brasileiros na África. A busca de uma identidade autônoma por parte dos negros, que assume características de um movimento de reivindicações civis nos Estados Unidos adquiriu entre os intelectuais negros de formação francesa uma diretriz nitidamente cultural. Entre nós, o poeta Damas reconheceu imediatamente que a contribuição do negro não se limitava à literatura, extravasando-se na música, no folklore, na linguagem.

“Eu percebi imediatamente que no Brasil a integração do negro não é um cliché, pois ela foi preparada desde a abolição e talvez mesmo antes, incutindo no negro sentimentos patrióticos e a certeza de pertencer a um novo país, a uma nova nacionalidade, que sintetiza pessoas de todas as cores e proveniências. Esta largesse aliás o Brasil herda já de Portugal, que sempre admitiu negros em sua sociedade, antes mesmo da escravatura nas Américas.”

“O Brasil já tinha a sua negritude antes mesmo que nós a estruturássemos. Constituem os seus primeiros sinais os cantos de trabalho, que correspondem aos spirituals dos Estados Unidos, depois as lendas europeias alteradas nas suas versões africanas, preservando-se integralmente o legado da África Negra nos rituais religiosos de candomblé da Bahia, no folklore estudado por Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, estudando-se atualmente a contribuição do negro à literatura de cordel do Nordeste, ao bumba-meu-boi e aos desafios de trovadores”.

“A négritude explode no carnaval brasileiro, esse espetáculo único de uma total fusão de raças. Em grande parte essa ausência de violência e de constrangimento que distingue a integração do negro brasileiro de todos os países do mundo se deve à ação lúcida de intelectuais brancos brasileiros. De forma unânime e continua, através dos séculos, ele vem defendendo o homem de cor, até hoje em dia chegarmos a Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e outros. A única coisa que me surpreende é que as associações já existentes (sobretudo em São Paulo), destinadas ao estudo da contribuição negra e ao progresso desse segmento da população brasileira, não comemorem datas importantes como a morte de José do Patrocínio, para citar somente uma, que no dia 20 de janeiro passou quase inteiramente despercebida no Brasil”.

“O Brasil inspirou-me um poema, que já iniciei, denominado Les Derniers Escales. Ele refletirá, posso adiantar, a fisionomia humana do Brasil, que não é só uma frase de efeito, ninguém melhor do que eu para comprovar como ela existe e como se confirma, na realidade, a visão que deu deste extraordinário país Stefan Zweig na sua obra. Eu provenho da Guiana Francesa, que tem tido uma contribuição literária que supera de muito as suas modestas dimensões geográficas e a sua escassa população; no entanto, e de Caiena um importante poeta jovem, Serge Passiau, que em Le Mal du Pays fala do sentimento de exílio dentro do seu próprio país de que sofrem tantos intelectuais guianenses. Esse exílio é fruto de uma alienação cultural, pois os universitários da Guiana Francesa são forçados a estudar latim e grego e ter uma formação claramente francesa, quando, na minha opinião, seria muito mais útil e profícuo se estudassem no Brasil. Aqui, embora as universidades tenham surgido tardiamente, atingiram em certos casos excelentes níveis, sobretudo no setor da medicina tropical, dos estudos técnicos e sociológicos, sem falar na afinidade cultural que existe entre os nossos países do continente americano, de formação étnica parecida, em parte.”

Para o poeta, que já foi deputado, há uma estreita vinculação entre movimento poético e a ação política, citando como exemplos a poesia da Résistence francesa como fator na liberação da França dos invasores nazistas, a Négritude que influiu na elaboração da Constituição da França de 1946, abrindo as portas do Parlamento aos diferentes países africanos de língua francesa e ainda a ação de Langston Hughes, de Richard Wright e James Baldwin nos Estados Unidos, que complementam as “marchas da liberdade” do reverendo Martin Luther King e unem, assim, le cœur et l’intelligence.

“É ardilosa e absurda a afirmação dos marxistas que acusam a Négritude de ser um movimento afrancesado, que não reflete os desejos e a personalidade do negro africano. A Négritude não lhes deve agradar porque é essencialmente democrática e não incita ódios de classes nem inter-raciais e a prova disso está em que Sartre, que certamente não pode ser acusado de fascista, saudou a Négritude um dos mais decisivos movimentos culturais do pós-guerra. Digo mais ainda: a influência desse movimento se espraia pelos países africanos de língua inglesa, como a Nigéria, cujos principais poetas admitem publicamente sua inspiração. O que os detratores da Négritude não compreendem é que podemos ser diferentes sendo semelhantes, isto é: através de nossa expressão poética em língua francesa trazemos uma aportação inteiramente nova e inédita sea à poesia francesa, seja à articulação de uma poesia negra, fiel aos seus anseios raciais ancestrais. Os que nela veem uma forma de racismo negro desconhecem também o seu conteúdo inteiramente pacífico e sobretudo se esquecem da dolorosa história do homem de cor que certamente não será racista porque conheceu o racismo e tendo conhecido o ódio não o abrigará. A Négritude antecipa a era do diálogo universal entre todos os componentes da espécie humana, inclusive através das trocas culturais e das confrontações artísticas entre os povos. 

“Quando digo que os negros são a raça que menos se poder acusar de ódio não vejo uma contradição a essa afirmação na existência dos”muçulmanos negros” (black Muslims) dos Estados Unidos, que pregam a destruição violenta da raça branca. Nos EUA a situação do negro é sui generis. Se os Estados Unidos tivessem tido colônias africanas como a França, a Inglaterra, Portugal, teriam resolvido de forma diferente o seu problema. Mas lá o que acontece é que o negro cria, dentro da própria metrópole, não na África distante, uma concorrência econômica e sexual ao homem branco. Esta concorrência, creio, é acentuada no Sul dos Estados Unidos (que defende uma situação que foi alterada com uma Guerra de Secessão) e também entre os imigrantes europeus. Segundo eu vejo a situação americana, são os imigrantes de recente integração americana que fazem mais oposição ao negro, ao passo que aqui no Brasil a lei que limitou severamente a imigração, no período de Getúlio Vargas, veio acelerar a formação de uma nacionalidade homogênea e compacta, eliminando o preconceito racial e permitindo a formação de uma sociedade multi-racial harmônica.”

Despedimo-nos do poeta artífice do movimento da Négritude enquanto ele se volta para os microfilmes tirados, na Biblioteca Nacional, dos escritores brasileiros e de seus antepassados. Sua atenção se detinha justamente na mãe de Castro Alves, na qual ele crê reconhecer traços de uma mestiça, justificando assim a eloquência veemente do “Navio Negreiro”, oriunda de uma revolta emocional e intensamente pessoal. León Damas elabora uma obra sobre a contribuição do negro à cultura brasileira, focalizando um aspecto ainda não explorado da cultura que é do nosso País e dos seus ancestrais.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Entrevista - León Damas e a Negritude brasileira .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.