A última denúncia de Soromenho

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1971/02/24. Aguardando revisão.

A Chaga, o último e excelente livro de Soromenho

Na literatura, Angola é um círculo do inferno nos trópicos, complementar o círculo de campos de concentração soviéticos na Rússia de Soljinitsin. Uma literatura clandestina, proibida em seu país de origem, ecoa, em português, as denúncias candentes de uma situação que espezinha o homem e lhe nega qualquer dignidade essencial. Não é uma literatura da négritude. Nem se insere na literatura portuguesa, a não ser na categoria de protesto. Mas é um veio secreto, explosivo, de extraordinária força de linguagem que completa o quadro de discórdia liberal diante do colonialismo e do racismo que Doris Lessing na África do Sul, com seus contos reunidos em The Habit of Loving, e de Alan Paton com Cry, the Beloved Country iniciavam na literatura africana em inglês.

Entretanto, seus expoentes mais expressivos são quase totalmente desconhecidos entre nós: afinal, de que valem os direitos de alguns milhões de negros diante do peso esmagador do outro e dos diamantes da África do Sul? Mas como na literatura os pesos são diferentes, para o leitor vale infinitamente mais um Castro Soromenho do que um Primeiro-Ministro Verwoerd.

Quem é Castro Soromenho?

Co-fundador do Movimento de Libertação de Angola, esclareceu à imprensa de Paris – onde seus romances têm tiragem de 100 a 200 mil exemplares cada um – que “nasci em Angola, sou angolano de raiz mas sou sobretudo um escritor português”. Incluído como expoente branco numa antologia dedicada à Négritude, irritou-se:

  • “Faço parte da”presença africana”, sou uma voz integrante dela, mas preferia que me citassem como membro do côro muito mais amplo de uma “presença humana” na África”.

Herético dentro do pensamento socialista, em seus livros era imparcial o suficiente para reconhecer o lado “criador, viril e positivo do colonialismo branco na África, que para lá levou a tecnologia do século XX”. Perseguido pelo regime de Salazar, passou no Brasil os últimos três anos de seus 58 anos de vida, lecionando na Universidade de São Paulo sociologia africana, embora não tivesse curso superior.

Como recorda um seu ex-discípulo da USP:

  • Era uma figura estranha, quase disforme. Falava tão baixo que nós, alunos, tínhamos dificuldade em acompanhá-lo. Baixo de estatura, os olhos claros e sempre inquietos, a cabeleira toda branca, era um rebelde que detestava os sectarismos, a limitação rígida dos slogans do partido, de movimentos organizados, “todos destinados a aprisionar a liberdade original do homem”.

Quatro anos após sua morte em São Paulo, em 1968, é publicado no Brasil A Chaga, o romance amargo, intenso, que o escritor português, nascido em Luanda, trouxera como manuscrito alinhavado da Europa e terminara nos intervalos dos trabalhos na redação do jornal O Estado de São Paulo que o acolhera como comentarista político anti-salazarista.

Integrante de uma literatura subterrânea, eruptiva, vital, Castro Soromenho é conhecido em alemão, inglês, francês, italiano, russo e espanhol. É o vértice de um triângulo angolano liberal que se completa com Luandino Vieira, autor de contos enfeixados em Luuanda e Alexandre Cabral, contista. Mas sua leitura é mais engajada, inteligentemente, com o ser humano ultrajado em seus direitos, do que com os métodos externos coercitivos que se proponham a modificar o comportamento hostil do homem para com seu semelhante por mudanças meramente político-econômicas.

Acima de tudo, seu compromisso é com a denúncia dos horrores de um colonialismo que, nutrindo-se literalmente da África, viola seus mais elementares direitos. Não há perigo, por isso, de se deparar com uma tendenciosa literatura de propaganda política panfletarista, em que o talento é substituído pelos slogans veementes e ocos.

Opondo-se às pesquisas de estilo de um Aquilino Ribeiro e ao romance psicológico de Miguel Torga, sua denúncia social nada tem do tom emotivo de um Ferreira de Castro. Considerado pelo sociólogo e profundo conhecedor do Brasil e da África Roger Bastide “o maior ficcionista do mundo africano”, Castro Soromenho reproduz, com admirável fidelidade, as duas Áfricas bipartidas pelo colonialismo extorsivo. De um lado, há os negros, tangidos pela ignorância, pela violência, pela forme. De outro, a minoria branca, com seus inumeráveis matizes sociais.

Para o Se. Administrador-Geral da Província Ultra-Marina de Angola – personagem que representa a filosofia do colonialismo do século XIX ainda sobrevivente nas colônias portuguêsas – “os negros admitem a autoridade, a violência justa”. Os negros, desde cedo, aprendem pela cartilha ensinada pelos jesuítas e que tão bons efeitos surtiu no Brasil até 1822: a cartilha dos três Ps: pau, pão e pano. Pau para os rebeldes, “os atrevidotes das cidades influenciadas por ideias estrangeiras”; pão para manter a vida escrava e dar lucro contínuo ao branco; pano para “cobrir as vergonhas”, mas não a ponto de impedir a violação de “meras negrinhas” de 12 anos, cobiçadas por soldados solitários peões anônimos nesse sinistro jogo de xadrez desenhado por Soromenho no tabuleiro africano. Os brancos são, na maioria, os aldeões como o João porqueiro, evocado por um soldado:

“Estava fora da terra havia muitos anos, mas o meu pai lembrava-se dele. Ninguém sabia ao certo, or onde andara o João porqueiro. Lá pelas Áfricas, diziam. Depois, deixou-se de falar dele. Um dia o homem chega cheio de notas e com um automóvel que nem um ministro! O João porqueiro descobriu uma mina nos matos da África, disse o meu pai. Uma mina de quê? Quis saber o me padrinho. O pai não sabia de que era a mina. Mas à noite, quando estávamos a jantar, o padrinho veio com a novidade: o Dr.Anacleto, que também andou pelas Áfricas, diz que a mina não é mina nenhuma, ou melhor, é uma mina, sim, mas é uma mina de pretos.”Os pretos nascem nas minas”, perguntou a Mariquinhas, minha irmã mais nova. Nós largamos todos a rir.”

Ou representantes do pequeno comércio, da incipiente indústria, até o topo limitadíssimo da pirâmide: a Administração de Além-Mar, uma Administração obviamente branca, patriótica, civilizadora. Como esclarece um personagem, funcionário adulador dos poderosos: - “Somos nós os portugueses mestres em matéria de colonização, até os ingleses reconhecem nossa superioridade”.

Entre esse verniz tênue, branco, e o oceano negro estão os sipaios, na maioria mulatos da guarda indígena nacional, que aspira aos privilégios da minoria europeia. A maioria silenciosa, negra, os cinco milhões que constituem a base são o motor da economia que supre a metrópole. Analfabetos, mascando drogas que diminuem o embrutecimento do trabalho duríssimo nas minas, nas usinas hidrelétricas, nas fazendas, nas fábricas, os negros refugiam-se nas tradições tribais, invocam os primitivos e surgem com imagens poderosas no romance:

“Vinte homens, com tangas de pele de leopardo, dorsos nus reluzentes de barro vermelho de antílope ou de penas de papagaio cinzento, deram um passo avante e apresentaram armas”

Os negros são os personagens trágicos deste romance que fotografa, com sensibilidade extraordinária, a Natureza verdejante e com secura de relato doloroso, pessoal, a humilhação diária de não-ser num mundo fantoche. Como reconhece um personagem lúcido, autobiográfico, que retrata em palavras candentes esta clamorosa opressão humana:

“É esse negro que por aí anda com ar de medo é como a raiz de uma terra queimada. Sob a humildade, a resignação, o medo, ele vive com desespero e ódio. Para a sua vida o colonialismo é uma queimada, uma chaga, mas eles são as raízes vivas dentro desta terra queimada”.

Para o leitor deste terrível mural, sóbrio e de paixão contida por um estilo de magistral disciplina, Angola nunca mais será um ponto verde, amplo, no mapa da África.

Como para Castro Soromenho, será, como para a consciência do próprio homem, a chaga na pele de um Continente, admiravelmente captada por uma sensibilidade compassiva e que não compactua com sua gangrena.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “A última denúncia de Soromenho .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.