O teorema espacial de Doris Lessing. Longo e belo

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1983/02/12. Aguardando revisão.

Doris Lessing demonstra, como um teorema de alta matemática, que a Literatura detém um dos poderes mais radicais, tornando-a temida e banida por todos aqueles que se recusam a ver a realidade: a Literatura modifica a percepção do mundo de quem lê.

Um livro – nefasto como Minha Luta de Hitler ou admirável como Viagem ao Farol, de Virginia Woolf – altera profunda e definitivamente a realidade imediata. A Editora Nova Fronteira teve uma nobilitante audácia em publicar no Brasil Shikasta (451 páginas), o último livro da deslumbrante, da inquietante escritora britânica, sem dúvida a única sobrevivente, hoje, daquela que foi a grande literatura europeia. Desde que surgiu nos países de língua inglesa em 1979, Shikasta, com o subtítulo de Canopus em Argos: Arquivos, vem causando o maior furor. Estupefação nos meios literários: Doris Lessing “aderiu” àquela que o establishement literário considera um gênero “inferior”: a “ficção científica”! Sereníssima como a República de Veneza, Doris Lessing retruca com um muxoxo diante e de tanta incompreensão: “O que estou fazendo agora é ficção espacial, não científica”. É uma diferença sutil, mas decisiva. Alguns ótimos autores, reconhecendo a importância da ciência, da tecnologia, em nossas vidas diárias, passaram a imaginar seres extraterrestres, futuros mundos galácticos que o ser humano conquistaria no espaço sideral: Bradbury, Asimov e tutti quanti. Shikasta, realmente, nada tem a ver com essas projeções em que a ciência e a tecnologia contemporâneas desempenham um papel crescentemente plasmador da vida na Terra e em outros planetas.

Reconhecendo que, depois que os Estados Unidos enviaram astronautas à Lua e que a URSS transmitiu para todo o mundo a constatação de Gagarin de que a Terra é azul, Doris Lessing confrontou a pequenez da Terra com a História do homem e da mulher nesta Terra, desde que emergiram da caverna ancestral, acenderam a primeira fogueira e plantaram a primeira gleba de terra. E conclui, lucidamente: “Nós habitamos este planeta, mas não somos deste planeta apenas”. Nada de sua visão profunda tem a ver com as meias-verdades histéricas de um von Daenicken a vender no mercado suas “provas” de que a raça humana veio de outras galáxias. A palavra grega theorein é um verbo que significa simplesmente olhar alguma coisa. Dela se deriva outro termo: teorema, que é um princípio, verdade ou lei que já foi comprovada, matematicamente, como tal. Portanto, a autora olhou para a Terra, para a raça humana, para a sua dolorosa História milenar e começou, neste livro que é o primeiro de uma série já de cinco livros, a saga da sobrevivência da Humanidade, mesmo daquele outro teorema realista, embora apavorante: mesmo depois da Terceira Guerra Mundial, que não é só iminente como inevitável, afirma. O que conta, para ela, são menos os 99% da Humanidade, que perecerão de forma monstruosa: o que conta é aquele pequeno punhado de 1% de pessoas que reconstruirão o mundo.

Como?! Indagam, estupefatos e com ar de evidente superioridade, os críticos literários dos grandes suplementos literários, do New York Times, do Times londrino e reviewers de infinitas revistas e jornais dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Austrália, da Nova Zelândia, etc. John Leonard, um dos críticos mais temidos pela agudeza de seus acertos literários (que fazem esquecer seus erros de avaliação também literária), retrocedeu, com um sorriso de zombaria. “Miss Lessing é sem dúvida uma das mentes (grifo meu) mais fascinantes que escrevem em inglês neste século, mas Shikasta, francamente…”

Shikasta, segundo Leonard, era apenas um relato minucioso e, subentendia-se, tedioso, da desumanidade do homem para com o homem. Ora, para isso não era preciso desperdiçar o talento de uma grande escritora, de uma das supremas mentes da Humanidade de hoje. A insistência na citação da palavra mente é importante, porque os críticos como John Leonard, apesar de seu discernimento, cometem o erro de julgar que a Literatura seja apenas um exercício, um trabalho, um testemunho, um statement mental. Para Doris Lessing (como para Platão) não há cisão entre a mente e o coração ou a mente e a alma (como ensinam as grandes religiões do Oriente). Daí a incompreensão: como se explica que a trajetória maravilhosa de uma grande pensadora percorra fases tão enriquecedoras como a revolta virulenta denunciadora do racismo dos brancos contra qualquer povo “de cor”, depois da batalha incessante pelos direitos da mulher, plurimilenarmente pisoteados pelo homem, seguida da constatação, com o psicólogo inglês Laing, de que o mundo à volta do esquizofrênico é que está insanavelmente louco e de repente… isso?! Shikasta?

Sim, só que não de repente. Shikasta coincide com a culminação, com o ápice da maturidade da resoluta aliada das minorias indefesas, pois Shikasta é o fruto maduro da iniciação da autora nos exercícios espirituais do Sufismo. O Sufismo não é suscetível de ser descrito com meia dúzia de frases, mas parte da sua substância, se pudermos dizer assim, é a noção de que o ser humano emerge como quem se banha no célebre rio de Heráclito: a vida é passagem, ou como diria Guimarães Rosa, no final de Grande Sertão: Veredas: Travessia.

Se nenhum dos romances anteriores, The Children of Violence (também conhecido como Martha’s Quest), Memoirs of a Survivor, Briefing for a Descent into Hell, fora apenas mente, mas sempre, simultaneamente, feeling, emoção, coração, comoção, identificação com o outro, por que seria diferente no caso de Shikasta? Doris Lessing percebera racionalmente a existência de uma insuportável humilhação dos negros pelos brancos na Rodésia onde seu pai, desgostoso com a Inglaterra, comprara uma fazenda e ao mesmo tempo identificara seus sentimentos humanos com os humilhados e envilecidos por uma minoria indigna de qualquer sentimento e mesmo de qualquer inteligência.

Depois, em The Golden Notebook, ela argumentara, minuciosamente, contra os privilégios do homem à custa do silêncio e da anuência temerosa da mulher. Fora comunista quando a Europa parecia sucumbir debaixo das botas da Wehrmacht hitlerista a “anexar” os Sudetos, a Áustria, a Polônia. Até 1956, quando, no XX Congresso do partido Comunista, Kruchev abriu uma pequena janela sobre os pavorosos campos de concentração de Stalin, os Gulags, que encerram os “poupados” dos 60 milhões de fuzilamentos. Aí ela abjurou, enojada, do Comunismo, tão brutal quanto o nazifascismo, do qual, aliás, em que se distinguia?

As teorias de Laing (e, indiretamente, as de Lacan também) a levaram a estudar o ser humano racional e sensível enlouquecido por uma sociedade repressiva, como já tinham deposto sobre essa anomalia Freud, Jung, Adler, Reich, toda a psicologia moderna. Agora, com Shikasta Doris Lessing, essa raríssima perfeição de beleza e profundidade, de estilo e de meditação, vê toda a humanidade ameaçada por Shamat, o espírito do Mal, da destruição, que cobiça e esmaga a Terra, ou seja, Shikasta. No entanto, há um Espírito Superior, Canopus, que infiltra na Terra condenada seres do seu reino superior espiritualmente e que salvarão os seres humanos da hecatombe universal. Isto é, serão salvos apenas os escolhidos dentre a massa de egoístas, entorpecidos pelo materialismo, pela noção bestial de “superioridade” racial, pelo prazer do consumo pelo consumo, pelo prazer orgiástico, pelas drogas, pela violência, pela atitude tipificada, pelo advogado que nestes dias de hoje defende o criminoso de guerra Altmann, refugiado na Bolívia: “Podem ficar certos de que meu cliente não se suicidará. O povo alemão é um povo superior”.

Doris Lessing não é maniqueísta. Ao condenar, veementemente, a primeira hecatombe (a segunda seria a final, a atômica), que a raça branca, que os europeus trouxeram para todos os continentes que dominaram, ela não exclui a vingança futura dos segmentos não-brancos da Humanidade contra os brancos, escravizando-os, tiranizando-os, quando não os exterminando ou retirando-lhes qualquer noção de autoestima. Não: ela pondera sempre os vários lados de qualquer questão: os negros foram escravizados pelos árabes, pelos portugueses, pelos demais brancos com a ajuda, indispensável, de negros que venderam seus irmãos ou inimigos tribais. A civilização branca deve ser colocada no Tribunal da História e eticamente não pode ser absolvida como coletividade. Mas há brancos que não são racistas, ela especifica, e a civilização branca não é o chicote, o pelourinho, as 14 horas diárias de trabalho impostas aos operários durante a Revolução Industrial Inglesa ou, sua suprema expressão, a bomba atômica. Ao lado do horror há antevisões do paraíso que para ela nunca é perdido, mas é sempre futuro também: Bach, Mozart, Pasteur, Jean Moulin, Shakespeare, Gandhi, São Francisco de Assis, enfim, todos os atos de amor e de elevação que não podem ser negados simplistamente por outras raças sem incorrer no mesmo erro dos “arianos”.

Shikasta só tem contra si, talvez, a extensão de seu relato, feito por meio de relatórios de enviados à Terra por Canopus. É o que os franceses chamam de um grain de beautê, uma pequena pinta que não desfaz a beleza de um rosto de traços e cútis perfeitos. Praticamente cada página, se lida atentamente, revelará, contudo, momentos da mais alta literatura do século XX, mesmo quando inferiormente traduzidos do original:

“O que eu disse àqueles shikastianos foi o seguinte:

Antes da Catástrofe, no tempo dos Gigantes, que tinham sido seus amigos e mentores, e que lhes haviam ensinado tudo o que sabiam, Shikasta era um mundo agradável e alegre, onde era raro o perigo e a ameaça. Canopus alimentava Shikasta com um ar rico e vigoroso que mantinha todos saudáveis e seguros, e, acima de tudo, fazia com que todos se amassem. Mas, por causa de um acidente, essa substância da vida não podia mais chegar até o planeta como antes, tendo sido reduzida a quantidades mínimas. O suprimento desse ar tinha um nome. Chamava-se SOWF – substância do sentimento de comunhão –, naturalmente eu despendera tempo e esforço para inventar uma única sílaba que fosse facilmente memorizada. O pequeno jato de SOWF que chegava até o planeta era a coisa mais preciosa que possuíam e evitaria que voltassem ao nível dos animais. Disse que havia um abismo entre eles e os outros animais de Shikasta, e o que os fazia superiores era seu conhecimento do SOWF, o SOWF os protegeria e preservaria. Deviam reverenciar o SOWF… Se eles, que estava ali sentados à minha frente, escutando essas preciosas revelações, não se protegessem ficariam piores do que animais. Não se deviam prejudicar usando excessivamente a substância de Shikasta. Não deviam usar seus semelhantes. Não se deviam transformar em animais que vivem só para comer e dormir – não, uma parte de suas vidas devia ser reservada para a lembrança de Canopus, a lembrança da substância do sentimento de comunhão que era tudo o que possuíam.

E havia mais, e pior. Havia inimigos em Shikasta, povos malvados, inimigos de Canopus, que estavam roubando o SOWF. Esses inimigos escravizavam os shikastianos sempre que podiam. E o método que usavam era o de encorajar as qualidades que Canopus detestava. Tinham prazer em ferir os outros, em usar os outros – tinham prazer em qualquer manifestação da ausência da substância do sentimento de comunhão. Para vencer seus inimigos, os shikastianos deviam amar uns aos outros, ajudarem-se mutuamente, considerarem-se todos iguais e nunca tomarem os bens ou a substância dos outros… Foi o que eu disse a eles, dia após dia, enquanto a Assinatura cintilava com a luz do céu noturno e das chamas que dançavam na fogueira.”

Nas suas projeções Doris Lessing vê com nitidez a violência da raça branca, a destruição da semente de amor do Cristianismo primitivo pelos dogmas e interesses terrenos da Igreja Católica e das igrejas ditas evangélicas ou protestantes, todas incapazes ou desinteressadas em se opor à escravização de povos e culturas inteiros, em se opor às ditaduras de Hitler ou da URSS, em sustar ou diminuir a destruição dos recursos finitos da Terra pela aliança que governa as nações: a aliança entre o poderio bélico e as indústrias que o alimentam em tempos de guerra e o substituem em parte pelo consumismo desenfreado e desprovido de sentido nos tempos de paz. Não há nenhuma incoerência, porém, na sua nota firme de crença na reconstrução dos escombros da destruição nuclear, de uma humanidade melhor, por ação de milhares de seres humanos, aquele 1% que sobreviverá ao choque dos mísseis entre Washington e Moscou, Pequim e Nova Delhi, Londres e Buenos Aires, Paris e Bonn:

“… Portanto, esta é a condição dos shikastianos agora, poucos ainda, mas em breve mais e mais, e logo – multidões.

Nada do que tocam ou veem tem substância, e assim eles repousam, em imaginação, no caos, procurando forças nas possibilidades de uma destruição criativa. Estão vazios de tudo, menos do conhecimento de que o universo é um motor ruidoso de criatividade e, eles, manifestações temporárias do mesmo.

Criaturas infinitamente danificadas, reduzidas e degeneradas, afastadas das suas origens, quase perdidas – animais, que perderam o caminho determinado para eles por seus mentores, estão sendo levados para trás e para longe de tudo que tinham e agora não têm onde se firmar a não ser nos extremos mais ultrajantes da paciência. Uma paciência humilde e irônica, que aprende a olhar uma folha, perfeita por um dia, e a ver nela a explosão das galáxias e o campo de batalha das espécies. Os shikastianos, nesse fim ignóbil e horrível, enquanto lutam, procuram, correm entre seus artefatos desmoronados, esquálidos, erguem as mentes para os píncaros da coragem e da… vou usar a palavra fé. Depois de pensar sobre o assunto. Com cautela. Com um respeito exato e esperançoso.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “O teorema espacial de Doris Lessing. Longo e belo .” In As três grandes damas da literatura europeia: Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 7. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.