O vermelho da vida. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão de Hilda Hilst
A poesia lírica é um fio estendido sobre um abismo: um erro e o salto mortal se torna resível ou trágico. A poetisa paulista Hilda Hilst soube esticar bem o arame de sua expressão poética nesta inspirada coletânea amorosa. São versos que utilizam uma linguagem comum, diária, sem pedantismos de estilo ocamente “elevado”: “Minha medida? Amor/ E tua boca na minha/ Imerecida”.
Frequentemente, rebrilhando no fluxo de palavras calculadas, uma imagem deslumbra pela originalidade e pela surpresa: “Um cavalo de jade sob as águas/ Dupla transparência, fio suspenso”. Ou: “O preconceito?/ Um punhado de sal num mar de águas”. Certos trechos têm uma involuntária feição clássica, reminiscente dos grandes líricos portugueses: “E tudo o que eu te digo, tecido de palavras/ Porque te amo tanto, Túlio, disse nada”. De inspiração romântica, Hilda Hilst canta, a par do amor/ júbilo, o seu término ameaçador, a Morte, a quem suplica que se detenha “porque o amor de Túlio/ o vermelho da vida, pela primeira vez/ Secreto, se avizinha”.
Próximo da filosofia epicurista ds odes de Ricardo Reis (um dos heterônimos do poeta Fernando Pessoa), sua lírica celebra o êxtase do momento que passa ou rememora um passado imaginado ou remoto. E a publicação deste novo volume cimenta a posição de Hilda Hilst como uma das três mais importantes poetisas do Brasil, ao lado de Marly de Oliveira (A Suave Pantera) e Olga Savary (Poemas). No entanto, é uma notoriedade escassa que seus volumes lhe trazem. Embora isso não lhe afugente o humor: “Com estes poemas de amor, espero, pelo menos os amantes me lerão, se não antes, quem sabe depois?”
A incompreensão de seu trabalho, que a isola tanto dos círculos de “fabricação” literária quanto da narcisística autopromoção como “gênio”, atinge às vezes proporções mais graves. Um amigo, por exemplo, quando da publicação de seu livro Qadós censurou em artigo assinado o que ele considerou “o caos verbal da autora, a sexualidade delirante de fêmea insaciável de machos que busca no monte de lixo a beleza literária arrancada de uma montoeira de detritos”. Editores irados lhe telefonam de madrugada para reclamar de seus livros de seu autor preferido – a se arrastarem dentro da lama paralisadora, na busca vã do amor e da compreensão lógica da tragédia humana. Tendo já se despojado de fortunas e sem qualquer senso prático nem ambição financeira, Hilda Hilst prefere viver à sombra austera de seu provérbio chinês predileto: “Se tens dois pães, vende um e compra um livro”.
Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão é a sua volta à poesia, desde 1969. “Eu achava que não ia mais escrever poemas porque através do conto tentei falar do homem de forma caleidoscópica, olhado de todos os lados. Isso seria impossível na poesia, que é sobretudo contenção, não é o desobramento e o devendamento psicológico da personalidade”.
Mesmo a sua prosa, porém, nada tem de ortodoxa. Para ela, o racconto, a história como narração episódica, não tem mais sentido, a não ser no caso das histórias especialíssimas de um Jorge Luís Borges. “Muitas pessoas se chocam com o meu vocabulário. Se mostro o meu lado obsceno e minhas inquietações quanto a Deus, que para mim existe até no que há de mais abjeto, é por pensar que na literatura não há, como reflexo da totalidade do homem, limites uniformes nem tolhidos pelos tabus.” Esse caminho coerentemente escolhido e seguido visa a “desvincular o leitor do mundo das aparências, colocando-o fora de um código acanhado e dando-lhe liberdade num mundo cada vez mais censurado e tolhido na sua livre escolha”.
Na poesia amorosa ela volta ao tema erótico: “Uma continuação do estigma da paixão dos meus personagens do livro Qadós que se encontravam em situação-limite”. A paixão, essa intensificação do ser para ela, “é reflexo de uma vitalidade intensa e cotidiana”. Esta coletânea de versos de amor brotou, porém, de um gesto: “Vi num olhar o que depois eclodiu nestes poemas, sem que houvesse neessidade de concretzar nada de físico”. Como diz Hegel, a poesia é mais própria da velhice que da juventude, porque, com o ritmo mais lento da idade, pode-se domar melhor a paixão e a invenção poética se torna de qualidade mais madura, mais trabalhada, melhor. Com exceção, é lógico, de um Rimbaud meteórico. O exemplo mais típico, em todo caso, seria o de Petrarca, ou de Dante, que fala da amada com o distanciamento do tempo e da castidade. De forma que o processo passional pode ser fecundo para a poesia amorosa como tributo de um amor não realizado, só sonhado. “Talvez seja assim mesmo: dentro de nós, o vermelho da vida. Fora de nós, na literatura: a memória, a invenção, a construção elaborada.”
Reuso
Citação
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author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {O vermelho da vida. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão de
Hilda Hilst},
booktitle = {Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa,
Clarice Lispector e Hilda Hilst},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
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date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-2/3-hilda-hilst/03-o-vermelho-da-vida-jubilo-memoria-noviciado-da-paixao-de-hilda-hilst.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Veja, 1974/04/24. Aguardando revisão.}
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