A poesia não deve morrer. Senão, que esperança restaria ao mundo?
“Não sei em que tempo foi, confundo sempre a infância e o Éden”
L. Senghor
Ao visitar Coimbra, o poeta do Senegal Léopold Senghor evoca a gota perdida de sangue português que deu origem a seu nome – Senghor é uma corruptela de Senhor – quando no século XV os portugueses e árabes começaram o comércio de escravos para as Américas. Hoje presidente de seu país, Léopold Sedar (da tribo dos serere) Senghor é a ponta de lança mais universal do movimento iniciado na década de 30 em Paris. Em 1932, um ano antes da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha e do seu Reich da “raça superior”, um antilhano negro, Aimé Césaire, fundava o movimento Légitime Défense. Era o estopim da rebelião negra contra a canga da cultura branca. Revolução de Copérnico: a Europa não era o centro do planeta, assim como a Terra não era o centro do universo. O sol se deslocava para a zona de sombra da raça cativa, da raça vendida para os algodoais do Sul dos Estados Unidos e para os canaviais do Nordeste brasileiro, a raça tripudiada e que nunca inventara nenhum dos instrumentos de servidão do homem branco: nem as armas de fogo nem a dinamite, nem o campo de concentração nem a contabilidade, nem o lucro nem o juro e a linha de montagem industrial.
Aimé Césaire, amigo fraternal de Senghor, era a vertente revolucionária, de uma revolta que escarnecia da assimilação do negro à gramática do branco, que esticava os cabelos e evitava o sol, as mulheres espalhando pó de arroz no rosto para se aproximar do “branqueamento desejado”. O essencial era ser “os macacos da civilização branca”, misturar-se com os brancos para ter filhos mulatos, abandonar gradualmente a situação de seres “há pouco descidos das árvores” e que se distinguiam por sua “robustez em resistir às chicotadas” de ingleses, portugueses, espanhóis, holandeses, franceses. Desiludido de um Cristianismo que terminava quando o missal se fechava depois da bendição do padre aos fiéis, desiludido com o marxismo que “procura amoldar os negros à sua doutrina em vez de fazer o contrário, que seria o justo”, ele inicia a centelha de um movimento a que Senghor emprestará logo sua sabedoria profunda e seus horizontes mais amplos: a négritude. O que era a négritude? A repulsa dos padrões brancos, o reconhecimento de que os homens e mulheres de cor não podiam escrever como Camões, Cervantes, Shakespeare e Racine, não podiam sentir o que uma cultura estranha lhes impunha como norma. A négritude era saber-se negro, sentir-se consciente e orgulhosamente preso às características da alegria negra, do colorido negro, da espontaneidade negra, da cordialidade e meiguice negras. Aprofundando essa redescoberta que os negros norte-americanos como Richard Wright tinham feito através do ódio e da amargura, Senghor trazia a esse soerguimento de uma raça a altivez do pertencer a uma pátria de riquíssimas tradições artísticas, culturais, humanas: a África ancestral, a raiz das civilizações do Benin, do Mali e os laços familiares, tribais que a escravidão viera violentar. As pesquisas dos antropólogos franceses na África Negra e sobretudo do sábio alemão Frobenius não deixavam razões para qualquer dúvida: A Europa desenvolvera somente uma técnica superior. Em todos os outros domínios da presença humana o africano tinha um passado soberbo, com seus vestígios potentes nas máscaras que agora influenciavam a pintura cubista de Picasso no quadro famoso Les Demoiselles d’Avignon, nas religiões que em vez de assimilarem o africano criavam uma síntese entre o vodu e o Cristianismo, São Jorge ao lado de Xangô, Iansã irmanada com Santa Bárbara da Bahia ao Haiti. Revelava-se a beleza do jazz, do samba, do espiritual, do blues. O que o Tiradentes haitiano, Toussaint L’Ouverture, tentara fazer pela sua pátria negra da América, pisada pelo colonialismo francês, a négritude fazia agora em termo intelectuais: liberava o negro do seu complexo de inferioridade, só deu “exotismo” de criança grande, de adulto retardado e que só era aplaudido quando se comportava “como um branco tal e qual”: agora black is beautiful, o negro é lindo.
Senghor cantava a raiz da religião de curandeiros, de soberanos negros do passado, cantava a natureza do Kilimandjaro coroado de neve, os rios coleantes as pirogas, as árvores como o baobá, as girafas e os elefantes, a poesia oral e sobretudo a doçura da mulher negra: “mulher nua, mulher negra/ vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza!…/ Fruto maduro de carnes firmes, sombrios êxtases do vinho escuro/ boca que torna lírica a minha boca/ Savana de horizontes límpidos/ e que freme sob as carícias/ ardentes do Vento Leste”.
Senghor, católico, companheiro de ginásio na França do ex-presidente francês Georges Pompidou, membro da Resistência francesa na França ocupada pelos alemães em 1940, engloba todas as raças num retorno espiritual e etimológico à palavra católico, que significa universal: de nada adiantava lançar os negros contra os brancos como no passado os brancos tinham lançado tribo contra tribo ou como agora, na Europa dilacerada pelo nazismo, indivíduos da mesma pigmentação se bombardeavam, se exterminavam em campos de concentração e na defesa, palmo a palmo, de Stalingrado. Não era a guerra que ele pregava, mas o amor e a congregação da humanidade numa ampla família que abrangia diversos tipos de viver: o modelo europeu não era o único mas apenas um a mais a somar-se às propostas da Ásia, dos indígenas das Américas, da sabedoria ancestral das tribos africanas.
Nos soldados negros norte-americanos que vêm combater pela democracia no solo europeu ele sente pulsar sob o uniforme o tam-tam da África-mãe inicial, na infantaria senegalesa que colabora com os aliados para arrasar catedrais góticas ele se sente cindido entre seu amor pela igualdade dos homens e a luta bárbara que se trava destruindo os monumentos que não são herança nacional de nenhum país mas patrimônio cultural da humanidade inteira.
Professor de gramática, agregé negro aceito segundo os padrões europeus na metrópole, ele é acolhido de volta a seu país natal com honras de Estado e eleito presidente com um filho pródigo que trazia de Paris a semente da libertação política também para o Senegal. Foi Paris que lhe devolveu seu rosto africano: Senghor quer que a África, livre da colonização europeia, se torne um irmão ativo na construção de um mundo de paz, de reconciliação, segundo a doutrina do Cristo, de “amar o próximo como a ti mesmo”. É a raça negra, com seu instinto espontâneo para a música, para a dança, para o gesto fraternal, para a generosidade, parece-lhe a mensageira ideal dessa nova proposição contra o seco racionalismo do “Eu penso, portanto eu sou”, de Descartes.
Não: eu danço, portanto eu me irmano com o próximo, retruca a África alegre. E mesmo entre guerras, durante a carnificina que hoje dilacera o continente com tropas cubanas em Angola, grupos etíopes contra soldados somalis, ambos armados pela União Soviética, com a ameaça do regime racista da monstruosa África do Sul do apartheid de apossar-se da bomba atômica, Senghor, continua crendo na fraternidade do homem e na perenidade da poesia:
“Já é tempo de sustar o processo de desagregação do mundo moderno e em primeiro lugar o da poesia. É preciso restituí-la às suas origens, aos tempos em que ela era cantada e dançada. Como na Grécia, em Israel sobretudo no Egito dos faraós. Como hoje em dia na África Negra. ‘Toda casa dividida por lutas internas’, toda arte voltada contra si mesma não pode deixar de perecer. A poesia não deve morrer. Senão, que esperança restaria ao mundo?”
Reuso
Citação
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author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
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booktitle = {Racismo e literatura negra},
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url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-1/4-literatura-africana/09-a-poesia-nao-deve-morrer-senao-que-esperanca-restaria-ao-mundo.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1977/11/5. Aguardando revisão.}
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