Carta de agradecimento a Clarice, por um novo livro
Clarice Lispector,
Você talvez não saiba, por isso venho lhe dar a notícia que torna este ano extraordinário: você subverteu tudo com Felicidade Clandestina, seu livro novíssimo. Já não há mais temporadas mortas de lançamento de livros no Brasil. Os 25 contos enfeixados nesse volume esguio negam o verão escaldante para florescer numa primavera sempre viva. E sobretudo, Clarice, o que os coveiros gratuitos proclamavam não é verdade: a Literatura brasileira não está mais órfa! Todos diziam: a Clarice não faz mais nada: contos? Só os do início da carreira dela. E assim obliquamente, como os seus personagens costumam agir, você simplesmente transmite um telex de argúcia, de sensibilidade vulnerável e de lirismo que provam que a nossa literatura é, dentro de uma grande literatura - a hispano-americana - uma das mais vitais e interessantes do mundo.
Já se disse que você criou, com Felicidade Clandestina, o conto confissão. Em “Restos de Carnaval” você consegue, em quatro páginas apenas resumir a infância pobre em Recife da menina que se fantasia de rosa com restos de papel crepom e fica poupando ao máximo o lança-perfume e o saco de confete que tinham lhe dado. E aquela expectativa infantil do Carnaval! A transformação das pessoas comuns em princesas, em leões, em palhaços, em rosas! Enquanto isso, sua alegria e sua fantasia cerceadas, policiadas pela doença da mãe, que tinha que se agravar justamente quando você sonhava com aquela etapa em que é permitido disfarçar e até negar a realidade. E quando você acha difícil escrever, o coração e a memória contritos pela recordação penosa:
“Porque sinto como ficarei de coração ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.”
Com a piora do estado de saúde da mãe, os preparativos da sua felicidade clandestina ficam adiados e é só no final, quando tudo se acalma, que sua irmã penteia e pinta você:
“Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fôra desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorsos lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
“Só depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu, então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa”.
Mas não é só no conto lírico confessional, que você confia partes da sua vida, dos seus temores, da sua angústia ao leitor, que você inova o conto no Brasil, Clarice. O despojamento já quase oriental de “O Grande Passeio” é inédito entre nós. Como contar sem pieguismo a história de “uma velhinha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo?” É um conto que tem muito dos poemas haikai do Japão: um mínimo de palavras contendo um mundo explosivo de significados, de sutis sugestões, as reticências significando tanto ou mais do que os adjetivos descritivos:
“Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação:
- Mocinha.
As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava:
- Nome, nome mesmo, é Margarida”.
Com essa contenção, só certos trechos de Tchékov, Clarice: como se uma parte da essência dele saísse da Rússia e florescesse em Pernambuco, como foi o seu itinerário de Tetchélnik para o Recife.
Há muitas excelências mais nos seus contos: aquela pesquisa sobre o ovo na mesa da cozinha: o ovo foi elaborado na Macedônia? É através do ovo que se chega a Deus? O ovo é uma demonstração da intensidade da vida interior da galinha? E aquele conto sobre as baratas que morrem na sua casa comendo uma mistura de açúcar e gesso e se desvendam a você como estátuas no alvorecer de Pompéia? E aquelas criadas que têm tristezas antigas, em rugas, indefinidas, como se visitassem uma floresta primitiva interior e voltassem com uma fome que herdaram da parte selvagem de si mesmas? E aquelas crianças solitárias que deveriam ter recebido um cachorro determinado como preenchimento de suas vidas e que cruzam com ele na rua sem poder adotá-lo só o amando e sendo correspondidas intensamente?
Ler seus contos é como estar à beira de um precipício, Clarice. Há uma paisagem desolada à espera de uma ternura que deve brotar da própria espera angustiada. E, acima de tudo, há uma poesia que se exprime sempre de forma inesperada: pelo estouvamento humorístico de uma trouvaille, como a empregada com sua explicação patética: “Trivial, não, senhora, só sei fazer comida de pobre” ou pelas frases de crianças e de velhos - esses seus personagens prediletos ao lado dos bichos, Clarice. Eu leio livros por gosto e por profissão há mais de vinte anos. E não podia deixar de lhe participar o que você, na sua modéstia, talvez só intua confusamente: seu livro é uma obra-prima, maravilhosa, admirável de lucidez, de força, de descoberta, de estilo, de surpresa.
A felicidade agora, com a publicação destes seus contos, não é mais clandestina: é de todos, no Brasil, que amam a literatura madura que você, José Cândido de Carvalho, Ariano Suassuna, Hilda Hilst, Nélida Piñon e André de Figueiredo criam.
Quando outros se empolgam com realizações técnicas, eu me exalto com todos esses recordes que você conseguiu com escassas 159 páginas: dar-nos, de sopetão, uma clareira de inteligência sensível que corresponde literariamente a uma Transamazônica e a mais de duzentas milhas de civilização. Por tudo isso, que é tanto, obrigado, Clarice.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Carta de agradecimento a Clarice, por um novo livro},
booktitle = {Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa,
Clarice Lispector e Hilda Hilst},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
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date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-2/2-clarice-lispector/02-carta-de-agradecimento-a-clarice-por-um-novo-livro.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1972-01-20. Aguardando revisão.}
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