A morte de Tennessee Williams. Um retratista da irremediável condição humana

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1983/02/26. Aguardando revisão.

Thomas Lanler Williams nasceu no dia 26 de março de 1911, em Columbus, Estado de Mississipi (daqui a exatamente um mês, portanto, iria fazer 72 anos). Thomas Lanier esperaria 20 anos para mudar de nome. Dessa idade em diante, resolveu, seria chamado de Tennessee. E assim seria conhecido no mundo todo como um dos maiores dramaturgos que já se viu. O teatro e o cinema o celebrizaram. E, desde ontem, é através deles que se poderá lembrar de Tennessee: ele foi encontrado morto pela manhã na cama de um quarto do hotel Elysee, em Nova York.

Um Bonde Chamado Desejo, Gata em Teto de Zinco Quente, Doce Pássaro da Juventude, De Repente, no Último Verão, A Rosa Tatuada. Poucos não conhecem obras como essas, de Tennessee, vividas no teatro e cinema por astros que vão de Elizabeth Taylor, Vivien Leigh, Anna Magnani, Katherine Hepburn, Jane Fonda, a Marlon Brando.

Criou personagens inesquecíveis, ganhou muitos prêmios (dois Pulitzer), fol roteirista de cinema, romancista. Passou boa parte dos últimos anos entregue a drogas, álcool, tratamentos psiquiátricos em diversas clínicas. Estreou sua última peça na Broadway em 1980: Clothes for a Summer Hotel. Nada de sucesso. Em 1981, numa entrevista, disse: "Estou muito consciente de que minha popularidade tem diminuído. Mas não permito que isso me impeça escrever".

A passagem do tempo era implacável com ele. Sua saúde estava bem mal nos últimos tempos. A polícia acredita que ele tenha morrido de causas naturais, mas mesmo assim ordenou a necrópsia. Ao saber da morte de Williams, Marlon Brando, que interpretou obras suas no teatro e cinema, disse: "Ele foi um homem que viveu com a morte toda a sua vida. Acho que ele morreu muitas vezes antes de morrer".

“Eu sempre confiei na bondade de estranhos”

(Blanche Dubois em Um Bonde Chamado Desejo)

Suas peças são um Museu Clínico de patologias saídas de um pesadelo: a impotência sexual, a castração, o fetichismo, a ninfomania, o canibalismo, a loucura, o suicídio. Como seus personagens trágicos, Tennessee Williams refletia a inquietação de alguém incapaz de mentir a esboroar-se doloridamente diante da desumanidade dos seres humanos uns para com os outros. Obsessivamente, a hipocrisia circunda sempre a área da verdade, do idealismo, da pureza. Amanda, a moça aleijada de Glass Menagerie (À Margem da Vida) vive isolada do mundo exterior, sonhando fantasias irreais com sua coleção de bichinhos de vidro, frágeis e inúteis diante do utilitarismo e da torpeza do mundo que a deixou ilhada. Brick, em Gata em Teto de Zinco Quente, destrói o marido, acusando-o de ser um "tarado" e um "pervertido" por não conseguir a consumação do casamento e entregar-se, sem vontade própria, ao álcool e ao nojo que sente pela brutalidade mesquinha que vê em sua família e na sociedade rapaz a seu redor. A riquíssima Violet de De repente no Verão Passado vive no meio de plantas tropicais imensas "que lembram órgãos arrancados de um corpo, as feridas ainda escorrendo sangue fresco". No ar, sucedem-se os silvos apavorantes de animais e pássaros selvagens e invisíveis. Seu filho adorado, Sebastian, era um poeta "acima da vulgaridade da fama", cuja memória venerável está sendo ameaçada por sua prima e noiva, Catharine. Catharine, a quem um médico administra o "soro da verdade" para impedi-la de mentir, relata uma história de horror: Sebastian usava a mãe para atrair rapazes para a sua companhia; envolvido por uma chusma de crianças esfarrapadas e mendigas, numa praia do Sul da Espanha, é atrozmente devorado aos nacos gotejantes de sangue pela turba faminta, num macabro ritual de violência.

A ganancia inescrupulosa pelo dinheiro através de todo e qualquer meio, o massacre dos puros e inocentes, a impossibilidade de fuga de um mundo puritano, de mentalidade estreita e sórdida, a negação da sexualidade, monstruosamente reprimida -não há umа реça sua que não seja uma imprecação, em clima de paroxismo, contra as leis que aprisionam o corpo, mercantilizam os sentimentos e transformam a religião numa caixa registradora a tilintar amém à opressão geral: dos brancos contra os negros, dos que enriqueceram ilicitamento contra suas vítimas sugadas inapelavelmente, dos abrutalhados contra os sensíveis, os frágeis e os pisoteados.

Tennessee Williams transpôs muitas de suas vivências para o palco: presente uma vez a um jantar do qual participava o magnífico romancista, do Sul dos Estados Unidos como ele, William Faulkner, ao notar a tristeza do olhar do grande escritor, desatou a chorar convulsivamente. Obrigado pelo pai a trabalhar numa fábrica de sapatos, retratou o pai ausente, a mãe enlouquecida por origens fantasiosamente "nobres da estirpe dos Bourbons" e a si mesmo como o fugitivo de uma cidade sufocante, de uma situação familiar e humana irremediável. Ao contrário de Arthur Miller, de quem nem toda a orquestração monopolista da Esquerda radical conseguiu extrair mais do que uma peça de sucesso, Morte de um Caixeiro Viajante, Tennessee Williams sempre obteve um sucesso que lhe permitiu, uma vez, ter cinco peças suas em cartaz na Broadway e na off-Broadway simultaneamente. No entanto, os dramas pungentes deTennessee Williams são uma denúncia muito mais loquaz e incendiaria das iniquidades do "grande sonho americano" do que as raquíticas tentativas, precedidas de bombástica e vazia promoção, de Arthur Miller.

Williams não é apenas um autor acidamente crítico dos costumes e tabus norte-americanos: seus tribunais candentes são um inferno descrito com a eloquência de um Milton que escrevesse o Paraíso Perdido: paradoxalmente infundido de lirismo e beleza. Há uma comoção humaníssima a transmitir-se de seus personagens aos espectadores, não uma comiseração, mas uma cristã identificação com o próximo, sem jamais aderir à liturgia aparatosa de qualquer culto do Cristianismo codificado pelas facções que dele abusivamente se apoderaram para fins antieticamente seculares e rendosos de aprovação do status quo.

Uma minoria dos que leem as peças de Tennessee Williams ou assistem à sua montagem no teatro ou adaptação para o cinema revolta-se contra o "mundo cão" que ele revela ser o coração pulsante de um organismo geneticamente pervertido para ingerir apenas cifras e produzir apenas lucros. E possível, porém, ver nas melancólicas, trágicas e poéticas cenas que ele inesquecivelmente plasmou, não restritamente uma sociedade indiciada, mas a totalidade de todas as sociedades humanas havidas até hoje: qual delas não se distingue pela sua cupidez, pelo seu egoísmo sem limites, pela anulação da sensibilidade com o preço para a mísera sobrevivência? Certamente, há uma insistência nas características que ele conhece como testemunha ocular: o racismo sulista, a derrota do Sul culto e escravagista diante do Norte rude e industrializado, a condenação, pela Constituição dos Estados do Sul, de casamentos entre brancos e "raças inferiores", o extermínio social e às vezes físico dos "desvios sexuais", de todos os que desafiam a Ku Klux Klan, isto é: os judeus, os negros, os católicos, os homossexuais, enforcados à meia-noite em lugares remotos das deslumbrantes paisagens sulinas, os carrascos encapuzados de negro, empunhando tochas ardentes, extirpadores da "laia" peçonhenta que "ultraja" os valores supremos e sagrados do Sul.

Se a violência o estupro, a castração, o esmigalhamento de vidas e consciências é um dos motivos principais de Tennessee Williams, a mulher é a sua mais indefesa vítima, que ele retrata com uma profundidade inédita na literatura norte-americana. A condição feminina - muito antes das dissertações pomposas de uma Simone de Beauvoir - é a súmula desse spiritual cantado a meia-voz, de mulheres acorrentadas à sua biologia, por arbítrio de um código social que teima em usá-la sempre como um mero reprodutor, com como aquiescente objeto de um mundo dinâmico de dinheiro, volúpia, exílio para a a cozinha, a cama e a igreja dominical. Frequentemente, a mulher consente na sua autodestruição: a incomparável Blanche Dubois de Um Bonde Chamado Desejo enlouquece; Hannah, a solteirona beirando os 40 anos de idade de A Noite do Iguana cede ao pedido do homem que atinge o orgasmo olhando para uma peça íntima que ela coloca a seu alcance durante um passeio de barco; Rosa em A Rosa Tatuada torna-se casta e pudica, depois que enviúva.

Rosa é, no entanto, a ruptura que Tennessee Williams crê discernir na mulher de outra cultura que não seja a protestante sulista dos Estados Unidos: ao certificar-se da infidelidade do marido, ela abandona seu estado de reclusão martirizada e se entrega conscientemente a um novo homem, as cinzas do marido contrabandista assassinado espalhando-se com o vento da madrugada da costa da Flórida.

O simbolismo de muitos nomes alguns citados num francês macarrônico faz transparecer ora a vulgaridade (Mangiacavalo), ora a aura poética (Blanche, Alma, Amanda), ora a hipocrisia ou a ironia deliberada do autor (Dr. Cucrowicz, que seria uma adaptação satírica de Sugar Daddy ou Dr. Açuquinha, em polonês). Criado em um meio predominantemente feminino, Tennessee Williams chocou uma grande parte do público com suas Memórias (Editora Nova Fronteira) não só ao falar detalhadamente sobre sua homossexualidade como por insistir no que pareceu uma "super-abundância" de lembranças mórbidas a muitos leitores: a irmā, louca, que passa os dias a fazer acenos com a mão e jurar ser a Rainha da Inglaterra; uma operação de catarata a que se submete diante de uma platéia de estudantes de medicina e que, por ser uma operação gratuita, o força a engolir o próprio vômito e observar a agulha penetrar a iris e o cristalino; um guarda rodoviário, émulo de Nero, ata-lhe o pé esquerdo ao pulso direito e lhe ordena que se arraste até o Departamento de Estradas não muito longe dali, já que o escritor não conseguiu achar sua carta de motorista.

Frequentemente, ele próprio se quer mostrar como um rufião, um fracassado sem talento, um canastrão ridículo, apesar de toda a glória teatral de que foi, em nosso século, talvez, o proprietário exclusivo. O menino que brincava com as figuras do baralho imaginando o cerco de Tróia descrito na Ilíada não passou da adolescência: o amor é um mito inatingível, a verdade está inexoravelmente conspurcada pela mentira universalmente aceita e propagada, milênios a fio.

Não que sua vida não tivesse, além do sentimento de desamparo, de tragédia, de depressão e temor constantes, também um arrasador senso de humor: como indicador de lugares em um cinema de Manhattan, ele não permite que ninguém entre enquanto a música tema romântico do filme Casablanca, com Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, não tiver terminado, avisando os espectadores: "Não há lugares vagos, vai haver uma pequena espera", apenas para ouvir, extasiado, a melodia sem interrupções de pessoas procurando poltronas no escuro...

Sua entrevista, concedida há alguns anos à revista Play-boy, quando esta ainda estava sob a direção competente de Robie Macauley no setor de literatura, continha especificações de uma franqueza absoluta sobre suas preferências por zonas erógenas. Ele mesmo ria: Gore Vidal é quem tem talento. Dá entrevistas em que manda tudo às favas. Por trás daquela máscara plural, Tennessee Williams, com a sensibilidade sutilíssima de um mestre impressionista francês, preservava uma busca de ultrapassar os códigos rígidos dos Estados Unidos como eram em sua infância e juventude, mais de meio século atrás, e até de deixar para sempre aquele país que relutante ou generosamente lhe concedera tanto. Sem demagogias fáceis, afinal, ele tipificou o drama de um talento imensamente superior, incompreendido por dedicadíssimos inimigos a priori.

“Para mim, escrever é uma busca constante no fundo de uma fonte de achados muito evasiva, e nunca se capta completamente o que se procura. A meta a que me proponho quando estou escrevendo é apenas uma coisa assim como capturar a qualidade constantemente evanescente da existência.”

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “A morte de Tennessee Williams. Um retratista da irremediável condição humana .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.