Resenha do livro - Um fuzil na mão um poema no bolso de Emmanuel Dongala
Africano errado…
Lumumba? “Um relâmpago verbal que iluminou o continente.” Malcolm X? “Liberou o negro americano somente com a palavra.” Uma granada? “É uma granada, não um coco.”
Com definições desse tipo, um escritor da África Negra totalmente desconhecido no Brasil, o congolês Emmanuel Dongala, pretende escrever a história de um jovem revolucionário, Mayéla dia Mayéla, disposto a tarefas gigantescas. Hércules de ébano, como diria o autor, Mayéla luta, ao mesmo tempo, contra: 1) os feiticeiros tribais; 2) contra o colonialismo, a “grande besta fascista, parteira de todos os porcos enlameados do mundo branco”; 3) contra o regime monstruoso da racista África do Sul; 4) contra as lutas tribais; 5) contra os chineses e os brancos e 6) contra o negro, afinal “o inimigo do próprio negro”. É uma batalha que o escritor e o heroi perdem em todas as frentes. Há temas demais. E os personagens representam tipos tão variados que estariam a exigir uma dúzia de volumes e não um simples romance. Surgem: um feiticeiro que descrê da luta revolucionária; um negro americano que não compreende o “mito África escrito com A maiúsculo”; um outro que “tenta reencontrar a alma no fundo de um copo”; e um quarto que julga Louis Armstrong um conformista que meramente se lamenta no trumpete das injustiças do racismo.
É impossível focalizar o regime paranazista de Johanesburgo com frases do tipo: as vozes de Bessie Smith e Billie Holiday “eram luminosas como um sol! Que rebente esse sol e nós, fortalecidos pela verdade bebida por nossas pupilas abertas, teremos andado e andaremos ainda”. Dongala, químico e poeta, confundiu o fuzil com a arte. E o tiro, pobre África, saiu pela culatra.
… e os esquecidos
Culturalmente, as editoras brasileiras – há exceções? – sempre viveram alheias à situação geográfica do Brasil. Evitaram os autores hispano-americanos como quem impede a entrada de um vírus subdesenvolvido no país. Foi preciso que a ventoinha do Prêmio Nobel, dado ao guatemalteco Miguel Angel Asturias, lhes mostrasse de onde soprava o vento da renovação literária dos últimos trinta anos. Agora, com a África Negra, mais uma vez eles descobrem tardiamente que nas entrelinhas das manchetes dos jornais existe, além de Angola, Guiné Bissau e Moçambique, algo mais que o cenário para Tarzan, safáris e o onisciente general Idi Amin. A Nova Fronteria, de fino faro, que já pressentira o livro do general Spinola, Portugal e o Futuro, antecipou-se a todas, mas publicou apressadamente este romance imberbe, Um Fuzil na Mão, um Poema no Bolso, de Emmanuel Dongala. É uma escolha bíblica: primeiro se editem os últimos em qualidade literária. Porque, de outro modo, qual o motivo para não se lançarem algumas das dezenas de escritores negros importantes surgidos antes e depois da célebre négritude de Léopold Senghor? E que critério justifica imprimir um romance panfletário em vez de um grande poeta nigeriano como John Pepper Clark? Formado em literatura na Universidade de Lagos, sua peça Song for a Goat foi talvez a mais marcante apresentada em seu país.
Influenciado por poetas eruditos, como o americano Ezra Pound, ou rapsódicos, como o inglês Dylan Thomas, imagista, de cintilantes metáforas visuais, John Pepper Clark destila com maestria de estilo o problema da escravidão e do racismo em seu poema célebre, que compara a tragédia do negro à do gado prestes a ser abatido, sem resistência, no matadouro: “Que secreta esperança ou ciência/ Vos insuflam coragem,/ Talvez os tormentos que sofrestes/ foram mis fortes que as tempestades que fazem transbordar o Níger?/ mas não me concedereis então,/ já que o facão no final predominará sobre as vossas cabeças/ Ao menos a paciência que guardais em vossa cauda?”
Haveria muitos outros nomes e títulos que, como uma barragem rompida, inundariam o mercado literário brasileiro com talentos excepcionais. A começar com Castro Soromenho, um romancista branco, mas que deu um testemunho pungente da brutalidade da colonização lusa em terras africanas com um estilo seco, sem emotividades grandiloquentes.
E por que não revelar em primeira mão o esplêndido e original poeta congolês Tchicaya U’Tamsi (que significa “Folha Pequena que Fala em Nome de seu País”), premiado no Festival Mundial de Artes Negras em Dascar, em 1966? Apaixonado pela libertação do Congo e seguidor de Lumumba, teve sua coletânea de poemas Epítome prefaciada com entusiasmo por Senghor. Algumas linhas do seu poema Christ valem mais que todas as páginas de Dongala: “Cristo, eu rio de tua tristeza/ Ó meu doce Cristo/ Espinho por espinho/ Temos em comum a mesma coroa de espinhos/ Conto mais de um Judas nos dedos que tu/ Meus olhos mentem à minha alma/ Em que o mundo é carneiro pascal./ Dize-me em que Egito meu povo tem os pés acorrentados”.
Opondo às armas reais as do escritor, as palavras que denunciam, o sul-africano Alan Paton com seu dilacerante Cry, the Beloved Country! constituiriam ainda um roteiro seguro para quem quiser seguir as trilhas da África fora das rotas da importação do folclórico ou “exótico”.
A literatura não se faz apenas com “cor local e pitoresco”. Nem, como Emmanuel Dongala prova tão claramente, com um fuzil na mão e um poema no bolso. Principalmente se a pólvora estiver molhada de lacrimejante sentimentalismo e o poema se perdeu num bolso furado.
Reuso
Citação
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editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Resenha do livro - Um fuzil na mão um poema no bolso de
Emmanuel Dongala},
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doi = {10.5281/zenodo.8368806},
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abstract = {Veja, 1974/09/11. Aguardando revisão.}
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