A tragicomédia de Trevisan, em renovada e envolvente concisão telegráfica
O esplêndido contista Dalton Trevisan em seu 17º livro, Lincha Tarado, consegue a concisão telegráfica de um haicai em prosa e dissimula entre suas tragicomédias curitibanas citações que mesclam Shakespeare e o sambista Noel Rosa. A noite escura da alma do poeta espanhol, San Juan de la Cruz, as fatídicas horas coaguladas em todos os relógios do poema de García Lorca, o final do mundo de Eliot com um estrondo, mesmo a macha que não saía das mãos assassinas de Lady Macbeth ou o “morrer, talvez dormir” , da dúvida do Hamlet shakespeariano – todos surgem como comentários universais de uma dor local. Até a natureza intervém, com seu coro de pássaros a sublinhar mais um infortúnio humano naquele inferno de Eros e crueldade. Para um leitor menos imaginativo, Dalton Trevisan se repete, para uma percepção mais nítida, ele inova a sua epopeia de guerras conjugais e de sátiros alquebrados pela velhice, mas ainda insaciados.
Constitui, ao contrário, uma vitória do autor abarcar sempre a mesma realidade-estanque, a mesma cena de ferocidade entremeada de superstição popular e de lubricidade indomável. Com a abertura atual, apesar do confisco recente de revistas pornográficas, o escritor pode exprimir-se melhor e exprimir melhor a sordidez, a torpeza dos ambientes da camada social que ele sempre focalizou em seu livro inicial.
Alguns de seus motivos centrais – a humilhação a que os maridos submetem as mulheres, os detalhes realistas repelentes, os pormenores sádicos e libidinosos – atingiram, com este último volume, uma perfeição formal suprema:
“Se pudesse nunca mais acordar. Se os malditos pardais não acendessem o sol, de manhã, ali na cama, é barata leprosa com caspa na sobrancelha.
Mal abre um olho: o coágulo sanguíneo da cortina presa em grampos de roupa. Ó longa odisseia do boêmio em busca da casa perdida.”
O sexo é o “abismo das rosas” que já deu o título a uma sua coletânea de contos e é a irrisão humana: “Eterno galã, dorme junto da porta, defendendo a dama”. Ou: “Em troca, promete correntinha dourada para o tornozelo gorducho. Uma pata choca, já imaginou, de sapatão e correntinha no pé de unha encravada?” Nunca o amor se sobrepõe a uma concupiscência tirânica, o tormento é a atmosfera diária tanto dos tarados quanto de suas vítimas, moças pobres e deformadas, ou as esposas humilhadas e eternamente vencidas em sua batalha pela fidelidade conjugal. Dalton Trevisan consegue com o conto que abre este livro “Lincha Tarado”, dar um tom coral à tragédia sexual, misturando os sentimentos mais nobres com a vileza de uma libido monstruosa, os ecos da punição ressoando inutilmente como um fluxo de recordações e advertências ineficazes, o linchamento no cinema embaralhado com a canção que indaga se o pássaro de olhos vazados com a agulha canta mais bonito e se isto é consolo para o a sua cegueira. Não há saída possível para o aguilhão do sexo fora a morte violenta. Mulheres ciumentas envenenam os maridos, ou atiram nas amantes disparos certeiros, depois envelhecem impunes, o buço transformado em bigode espesso, a voz grossa, doença na espinha, corcunda, de bengala.
Talvez seja, porém, errôneo colocar etiquetas nos personagens e nos acontecimentos cotidianos que desfilam por estas páginas. Nem uma análise psicológica nem política decifrariam esse choque de códigos morais em que o machismo é confundido com o vilipêndio da parceira, a transcendência erótica com uma posse carnal abusiva. Sábio, o autor não rotula seus protagonistas, nem mesmo sugere um juízo de valor: por mais que a sociedade exteriormente mude, a perversão prevalece, intocada pelas alterações sociais: o ciúme, a cólera, a paixão, a prepotência imutáveis em qualquer regime instaurado pelo ser humano. A expressão “monstro moral” surge da boca de alguém a condenar um sedutor barato com a mesma imparcialidade das crendices populares em benzedeiras, videntes, quiromantes, das dissimulações e ignomínias “a que a carne está sujeita”. Uma leitura moralista veria na mera exposição destas tragédias anônimas uma tomada de posição, mas Dalton Trevisan apenas registra, grava, constata. Para lê-lo é preciso um estado de espírito de isenção semelhante à leitura de um marquês de Sade ou de um Jean Genet, em que estão indissociavelmente amalgamadas a expressão estética e a ausência de qualquer ética reconhecível. Longe dele, porém, a elaboração de um mero tratado de sexualidade humana, científico, a sublinhar estatísticas e erigir conclusões. Dalton Trevisan é possivelmente o único autor a não condenar seus dom Joões ao diabo, mergulhando na mesma perplexidade e na mesma ausência de parâmetros religiosos a priori que as caracteriza. A punição do código penal ou das máximas tiradas da Bíblia atinge equanimemente pecadores e inocentes, o caos parece presidir a essa meteórica aparição humana no palco efêmero entre o berço e a morte, tendo o orgasmo como única meta. Não serviria de nada apenas para classificações eruditas da filosofia grega para esclarecer os atos e escolhas de seus personagens: não porque sejam toscos, mas porque desafiam os rótulos: trata-se de hedonistas, de epicuristas, de estoicos? Em parte, sim, mas uma parte deles fica como uma fratura exposta deslocada diante do leitor. Intui-se uma grandeza que ultrapassa os fatos comezinhos do dia a dia, mesmo quando o narrador esmiuça detalhes anatômicos femininos. Há uma aura romântica de inocência perdida de permeio à devassidão senescente:
“Na gaveta sempre o pacote de bala azedinha. O bolso do guarda-pó branco do eterno menino: bala Zequinha, tubo de creme (por que verde, João?), anel mágico, revistinha suja, haicai de amor.”
Assim como o que se entrevê de miséria econômica por detrás do meretrício (dos beliches em que se amontoam as mulheres nas “vagas para moças de fino trato” à venda do corpo em troca de tratamentos dentários) não explica o que normalmente se chamaria de desvario. Mas a normalidade é uma abstração neste mundo escavado pelo magistral autor de tantas obras-primas, que com a integridade de um Freud examina as crenças mais sagradas não só da burguesia, mas da humanidade e as submete à interpretação do leitor. Sua abstenção é olímpica: parece que seus contos meramente espelham situações que tachamos de hediondas ou enternecedoras, patéticas ou tétricas: faunos encanecidos “sempre atrás de mulher”, almofadinhas que se ligam a professoras solteironas e feiosas porque contam com o emprego vitalício da explorada: “O Ditinho pensou no cheque todo fim de mês”, blefadores do pôquer indiferentes ao nascimento do quinto filho e às dores de parto das mulheres que engravidaram ditatorialmente, sem a anuência, vaga que fosse, da esposa.
Frequentemente o derrame cerebral e a paralisia entravam a perseguição das saias, mas não a impedem totalmente, as esposas resignadas e detestadas ajoelhadas ao lado do conquistador cheio de empáfia e baba espumejante. Com um domínio cada vez mais perfeito do seu carrossel humano, brotam as frases feitas, os lugares comuns – “ser mãe é sofrer no paraíso”, “os dias contados”, “o último desejo” do samba de Noel Rosa – que são os pontos de referência de seus trôpegos integrantes. Não há soluções plausíveis, há um fatalismo da carne que se cumpre de uma página a outra, inexoravelmente. Não interessa ao contista interrogar se os códigos que regem o sexo estão errados, se o aborto, a sedução, a prostituição são crimes puníveis pela lei. Seria o destino embutido já no código genético de cada um a forçar a libido a infringir todos os códigos erguidos pela moral, pela convivência social e pelas religiões? Para a satisfação não há barreiras, não há preconceitos: há o império da sensualidade que zomba das muralhes que lhe ergue a estultice de todos os governantes. Nem se revela a duplicidade de comportamento: exteriormente a compostura, por dentro o ardor incontido – no mundo de Dalton Trevisan não há escolhas individuais, o inconsciente se funde com a consciência e o próprio autor quer ser cúmplice das mazelas do seu mais ínfimo perpetrador de horrores, desde o longínquo Vampiro de Curitiba até os sátiros crapulosos de todos os seus livros. Além-túmulo, o que se chamaria de descalabro: a morta por ciúmes floresce em beleza nos medalhões coloridos das lápides enfeitadas de flores murchas, um enterro é comemorado com uma ida ao bordel, em homenagem póstuma ao “último desejo” do morto. Ritmicamente, como num ritual incompreensível, “além do cemitério acendem-se as primeiras lâmpadas vermelhas nas casinhas de mulheres da vida”, o mito de Eros e Thanatos imperecível enquanto o ser humano existir, imelhorável em sua condição básica. É raro, em qualquer literatura, o exemplo de Dalton Trevisan insuperável já agora que se aproxima da vintena de livros publicados. Grande parte dos autores restringe a criação ou decai quando se torna prolífico: ele, não, parecer deter algum segredo alquímico que transforma sempre a matéria vil de que se compõem suas tramas no metal mais nobre da literatura: a noção de uma transcendência ultra-humana, a marca mortal de uma arte irretocável em meio à transitoriedade de tudo.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2022,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {A tragicomédia de Trevisan, em renovada e envolvente concisão
telegráfica},
booktitle = {Grandes contistas brasileiros do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {10},
date = {2023},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-10/02-dalton-trevisan/11-a-tragicomedia-de-trevisan-em-renovada-e-envolvente-concisao-telegrafica.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1980-10-11. Aguardando revisão.}
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