Cora Coralina. A morte da poetisa. E de um grande ser humano
“A vida é boa e você pode fazê-la sempre melhor. Seja otimista. O otimismo é uma força construtora.”
Cora Coralina
Obejtivamente, e de maneira simplista, há apenas duas maneiras de encarar-se a criação literária de Cora Coralina, a poetisa goiana que morreu anteontem, aos 96 anos de idade. Se fôssemos aplicar um critério crítico, severo, intelectual, Cora Coralina não passaria de um fenômeno a mais do emocionalismo brasileiro e de um aureolado exemplo de heroísmo pessoal. O brasileiro, sentimental, emotivo, opta, sem pensar, imediatamente pelos versos que falam, com rala e rasa eloquência, dos humilhados, dos ofendidos, dos oprimidos e deserdados. Celebram, se for o termo, o menor abandonado, a mulher pública - no Ano Internacional da Mulher -, o bóia-fria esquecido pelos sindicatos, pelos pelegos, pelos patrões, pelas “ôtoridades todas”.
Obviamente, todos os que confundem a beleza pessoal de Bruna Lombardi com a sua absoluta falta de talento literário exaltam-se e louvam, desemsuradamente, uma poetisa que, no caso da Cora Coralina, repetimos, comove pela idade avanaçada, pelo heroísmo pessoal, pela marginalidade, pelo otimismo. Chico Xavier, com todo o respeito, não é best-seller no Brasil? Não só com a esperana além-túmulo mas também com os feitos magníficos de um ser humano cheio de denodo e grandeza pessoal confundem-se assim literatura e excepcional valor individual, desde o ziguezagueante prêmio Nobel até os mais nobres anseios.
Se fosse possível, sem paixão, distinguir a grandeza humana da mediocridade literária de Cora Coralina, seu nome não seria, a rigor, comentado sob um prisma de conquista cultural ou intelectual, mas sim nas páginas grandiosas dos anônimos mas combativos vencidos da vida. Ora, arguirão com carradas de razão os inúmeros admiradores de Cora Coralina: Carlos Drummond de Andrade, o ápice da genialidade poética da língua, ao lado de Fernando Pessoa e Camões, entusiasmou-se com a totalidade da vida e obra da poetisa e doceira goiana. Uma análise serena nos permitiria ver, porém, que a generosidade do Grande Poeta abriu talvez demasiadamente suas comportas, ao abraaçar, sejamos justos, valores que lhe dizem muito ao coração (nada de dedurar nomes!), mas que trazem para os demais uma colheita intelectual muito magra, to say the least.
Quem seria, porém, tão sem coração, quem seria tão monstruoso a ponto de não reconhecer que o acontecimento terrível da menina paupérrima não ter um vintém de cobre para comprar alimento para seu pássaro e por isso perdê-lo, abrindo-lhe a gaiola para que ele sobrevivesse, não é digno de compaixão sincera, de revolta justíssima contra as desigualdades sôcio-econômicas e de pungente solidariedade humanda diante de tanto e tão inútil horror?
Bastam no entanto o cancioneiro popular do Nordeste, dos ditos do povo brasileiro e sobretudo o maravilhoso talento de Luiz Gonzaga, retratando a seca no Nordeste, a crueldade humana de se furar os olhos de um pássaro para que ele cante melhor e equiparar a dor da ave mutilada com a tristeza de um amor perdido para se aquilatar que a grande poesia - perdoem-me ir contra a corrente da Esquerda Ballantine’s - nunca abdica da beleza estética, do domínio de suas ferramentas, da profundeza filosófica de suas narrações e conclusões. Se se admira com fervor, Garrincha, a mestria de seu futebol endossa essa admiração. Cora Coralina? Uma extraordinária figura humana e, como o próprio Carlos Drummond de Andrade escreve, “Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências, os homens ricos e influentes do Estado… Cora Coralina, um admirável brasileiro”. Note-se que nunca ele reconhece nos versos singelos da veneranda goiana mais do que uma adesão à terra, aos humildes… mas transcendência poética como a dos repentistas ou dos quadros naif ou de algumas letras de músicas populares brasileiras? Honestamente, nem sombra.
Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bredas, que adotou o sonoro pseudônimo (Cora Coralina) para não ser confundida com o sem-fim de Anas do seu Estado natal - cuja padroeira Sant’Ana, é popularíssima - deixa um suplo legado: o de uma dignidade, uma fibra e um gênio para viver, e um ralo, ralíssimo talento - se quisermos ser bondosos a ponto de usar esse termo - como poetisa.
Sem se deixar alquebrar pela idade, pobreza, pela escassa instrução, lia e recomendava a leitura de insuperáveis escritores como Eça de Queiroz, Guimarães Rosa e Drummond. Se os compreendia, era então melhor crítica do que fazedora de versos, vocação que, ai de nós, se perdeu. Muitos brasileiros, entre os escombros de uma inflação e uma corrupção que rivalizam com a corrupção e sua impunidade no plano da previdência social, das parcas economias dos misérrimos, das mordomias, dos até 52 milhões de cruzeiros recebidos mensalmente por alguns funcionários da representação política de São Paulo, encontram nos versos lineares de Cora Coralina um Mobral da literatura, possivelmente com os mesmos escassos resultados dessa envelhecida e ieneficiente tentativa de erradicação do primeiro analfabetismo entre nós - o das letras.
Cora Coralina - não há polémica possível - deixou gestos admiráveis que nem todos os cobertores da fábrica Parahyba, do senador Severo Gomes, o patrão-padrão, poderiam servir para enxugar as lágrimas sinceras que despertam. Seria impossível enumerá-los todos. Bastem a grandeza de pobre, doar a crianças carentes quase um milhão de cruzeiros, em 1983, ao autografar um de seus livros em Andradina, região de Araçatuba; a garra digna de todos os louvores de sacudir a poeira do misto de comiseração (dos jovens) e de inércia (dos idosos) ao incitar os velhos a se ajudarem a si mesmos; ao defender, com versos que despertam o entusiasmo do coração mas não simultanemente o da inteligência, o lavrador explorado, o menor abandonado em favelas, glebas, portas de orfanatos; a coragem de erguer um hino (trôpego de contagiante loquacidade, é verdade) à mulher da vida, à mulher “caída”, vítima de uma sociedade que é na realidade sua proxeneta, Infelizmente, contudo, a literatura não se faz apenas com nobres sentimentos e exaltada, genuína solidariedade humana, caso contrário, Jorge Amado seria - Deus nos perdoe - o nosso Dostoievsky.
Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Goiás, primeira mulher a receber o prêmio Juca Pato em São Paulo, no ano passado, Cora Coralina foi a caloura pela qual o público do auditório e o da casa torce por razões que só o coração, mas não a mente, conhece. Disse sempre todas as coisas certas: para um documentário televisivo sobre num montão de lixo para tornar palpável a imagética de sua poesia. Insurge-se, valentemente, contra o autoritarismo dos mais velhos que na sua infância a comandavam, transferindo a aspereza de seus gritos antes dirigidos aos escravos (cuja liberdade fora há pouco abolida) para as crianças: “Criança não tem querer”, “criança não faz perguntas”.
Pioneira, como Chiquinha Gonzaga, de um feminismo inteligente, que não pretende colocar saias no executivo de grandes empresas, cedo se rebela, concretamente, contra a tutela luso-árabe do “mulher não precisa aprender a ler”, “mulher que aprende a escrever só caminha para a perdição por meio de cartas a namorados”. Cora Coralina falou forte e com coerência em prol da proteção dos sete milhões de menores sem escolas no Brasil enquanto milhares (milhões?) de universitários ordenham a vasta vaca do Estado chegando às aulas de carro do último tipo para aproveitar a refeição, subsidiada pelo Estado Lamentou a onde de pornografia no Brasil sem fazer coro com as lamentáveis puritanas Senhoras de Santana (da capital paulista, estas) que querem que o Brasil volte a adotar o véu da cabeça aos pés para as brasileiras, o dernier cri da moda à la Khomeini.
Mas os lugares-comuns de Cora Coralina também dariam para encher todo um almanaque farmacêutico, ao lado de seus versos igualmente de almanaque e dos menos inspirados, desgraçadamente. Basta folhear seus livros sem paixões oportunisto-ideológicas ou legítimas lágrimas de solidariedade humana, não estremecimento cerebral.
Sem dúvida, merecedora do troféu que o Conselho Municipal de Lazer lhe entregou, Cora Coralina foi o resultado nítido dessa confusão entre literatura e lazer que até alguns anos atrás ainda atrelava a cultura à Secretaria de Esporte e Turismo. O que é pena, porque se Cora Coralina foi uma nobre, generosa, admirável mulher, das que raramente surgem no Brasil entre o bocejo da mulher antiga indecisa entre que maquiagem escolher para a enésima festa e a mulher moderna, da proletária a todas as profissionais que enfrentam a discriminação do machismo made in Brazil - tão raramente também sua inspiração ascendeu a um nível que se pudesse do ponto de vista literário, com toda a bondade do mundo, considerar mais do que protopoético. O que é, mesmo, lastimável, como tudo que, na efêmera existência humana, é insanável.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Cora Coralina. A morte da poetisa. E de um grande ser humano},
booktitle = {Poetas brasileiros contemporâneos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {4},
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url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-4/15-cora-coralina/00-cora-coralina-a-morte-da-poetisa-e-de-um-grande-ser-humano.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1985-04-12. Aguardando revisão.}
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