Prefácio ao livro de Paulo Colina

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
In COLINA, Paulo. A noite não pede licença, Roswitha Kempf Editores, 1987. Aguardando revisão.

Dramaturgo, tradutor, animador de encontros culturais na União Brasileira de Escritores, em São Paulo, o poeta Paulo Colina tem uma personalidade artística nítida, forte, a destacá-lo do conjunto de importantes poetas negros contemporâneos no Brasil de hoje.

A poesia de Paulo Colina já ultrapassou, há muito, o tom de queixume derivado do angustiante preconceito racial: a sua poesia não é um muro de lamentações sobre o passado da ignomínia – a chibata, a senzala, o navio de escravos, o estigma, a orfandade da Abolição de 1888. Contemplativa, cheia de meditações filosóficas em forma de metáfora poética, a poesia de Paulo Colina me parece, sobretudo, a, de uma sensibilidade plural, moderna, que se depara com o contexto urbano, repetição da crueldade do Brasil rural transformada na pobre geometria de nosso sky line urbano, a buscar o lucro e o logro nos céus.

Habitante da sua época e da sua cidade escolhida, Paulo Colina tem a inventividade como passo seguro para não cair na banalidade tumular do lugar-comum, do sentimentaloide:

Infinda gravidez de ausência 

no ventre da cidade

ele decifra na desolação cinzenta da cidade-acampamento à beira do dividendo, da Bolsa de Valores em alta ou em baixa, do mercado de empregos, essa forma “moderna” de pelourinho em mim, e não se examinam os dentes do escravo, lhe impõem porém o acorrentamento do seu tempo, pés e mãos atados a escritórios onde a fraude, dia a dia, goteja e faz fortunas.

O som arrastado dum carro de bois

nos ombros largos da noite

ecoa como volta obsessiva do passado retido em gravuras de Rugendas e Debret, até que o corte lancinante de um avião que possa “fabrica” as manchetes dos jornais:

o jato leva e traz o dia seguinte

rompendo a barreira do nosso sonho

o poeta, como desterrado de toda as repúblicas, desde a Cidade concebida por Platão, impregna estes versos (que têm a rara dádiva de uma abstração que não se prende ao piegas, ao kitsch do palavrório oco que no Brasil muitas vezes passa por “poesia”…) de uma originalidade expressiva característica.

Seria possível destacar linhas soltas que inauguram uma novidade de ver, sentir e exprimir:

o limo do tempo apenas conserva

o fogo campeia a memória

ou imagens sugestivas, de feitura aparentemente simples, espontâneas, como:

Abrir as mãos

e soprar a pena

sentimento do mundo

Lúcido, o poeta se vê, recolhendo o que resta de seus anseios, esperanças desfeitas, limitações impostas externamente:

Sou todo cacos de vidro

E nós todos, buscando no bar, no álcool, no esquecimento, estarmos refletidos estoicamente nos “espelhos do Nada”. Esse naufrágio coletivo da “Nave dos Tolos” medieval que somos nós, os seres humanos, captados em nossa insignificância, não escapa ao poeta invadido pela melancolia, em meio ao modismo de letreiros luminosos em inglês na noite. Seu cosmopolitismo, que o leva a conhecer, em inglês, poetas e prosadores decisivos do nosso tempo como a traduzir, com ajuda de outrem poesias de um outro artista desgarrado da vida, japonês, pobre, possivelmente ignorante do orgulho étnico de seu povo que se considera uma Herrenrasse (uma raça de dominadores) pois descende, só ela, de deuses, aquele infeliz Takuboku Ishikawa – tudo isso não faz perder a seiva paulistana, contemporânea, desse poeta que livro a livro, poema a poema, amadurece. Os grilhões de um passado histórico que lhe foi roubado permanecem: Paulo Colina não é um “alienado” como entoariam em coro as vozes que seguem mais o “materialismo histérico” do que “histórico”. Consciente de que a Princesa, quem sabe, esqueceu-se de assinar a carteira de trabalho que completaria a Abolição, ele sutilmente ironiza o carnaval como epopeia da raça, da mesma maneira que não veria no futebol, creio, a glorificação do artilheiro negro.

Mais elevada e menos efêmera é esta poesia que começa da constatação da quarta-feira e cinzas cotidiana, longe das passarelas, do ópio da cor, das luzes, do som e dos aplausos da multidão. Quero crer que Paulo Colina forja um canto muito mais abrangente e que desafia um período de tempo tão escasso e tão artificialmente celebrado. As suas conquistas de estilo, a concisão e o impacto de seus versos nos asseguram que ele depura, cada vez mais, o seu ritmo contemporaneamente sincopado, traspassado de blues – uma voz autêntica da ebulição do Brasil deste final da década de 80 e que todos os prognósticos tranquilamente indicam que será uma das vozes decisivas da poesia brasileira a fincar a sua inspiração de talento, inteligência e vigor neste solo nem sempre mãe gentil. Mas não é o destino dos poetas autênticos da modernidade, de Baudelaire a Fernando Pessoa, tecerem seu canto como quem se sobrepõe às correntes adversas de um tempo sombrio, o mais ferozmente armado de códigos e látegos para “disciplinar” o poeta?

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1987) 2022. “Prefácio ao livro de Paulo Colina .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.