Esperando Haydum
Fluxofloema, Hilda Hilst (Editora Perspectiva)
“E foi assim que o poeta/ Assombrado com as ausências/ Resolveu fazer parte da paisagem/ E repensar convivências” Hilda Hilst (Poesia 1959/1967)
Hilda Hilst tem vivido assombrada com várias ausências desde que se formou pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, e desistiu de ser advogada. Em nenhum parágrafo de nenhum código “encontrou lugar para o amor”, uma ausência que, a seu ver, torna o mundo da lei tão arbitrário quanto um conto do Kafka. Em 1950, aos vinte anos de idade, publicou seu primeiro livro de poesias Presságios – seguido de outros quatro. Há dois anos terminou uma série de oito peças. A poesia e o teatro são tentativas suas de “fazer parte da paisagem”, mas o silêncio quase total envolve essas experiências de “tornar em diálogo meus monólgos”. Quase todos os críticos ignoraram o excelente nível artesanal e a veemência lírica de sua criação poética. Só grupos amadores se animaram a encenar seus dramas profundos. Hilda Hilst isola-se dos grandes centros em sua fazenda perto de Campinas, São Paulo, com seu marido, o escultor Dante Casarini. Nesta semana “repensa suas convivências” de forma inédita: com seu primeiro livro de contos. Fluxofloema enfeixa, porém, mais do que cinco contos: são cinco formas de interrogação filosófica sobre o homem e sua busca mística de Deus.
Escritas em estilos diferentes e sem inter-relação, entre uma narrativa e a outra só existe como elo o simbolismo da trilogia. No conto inicial, “Fluxo”, o escritor Ruiska, sua mulher Ruisis e Rukah, o filho morto (que depois surge como um anão fantasmagórico): no seguinte, Osmo, o amante assassino Osmo e as mulheres Mirtza e Kausa: em “O Unicórnio”, os dois irmãos, ela lésbica e ele homossexual, que transformam a narradora no Unicórnio assim como as condições psíquicas e sociais transformaram um ser humano em inseto na Metamorfose de Kafka. Em “Lázaro”, Rouah, o demônio, o maldito, é irmão gêmeo de Jesus e compõe com ele o pólo complementar de Lázaro, o ser humano. No conto final, “Floema”, novamente o triângulo composto por Koyo, simbólico do ser humano que busca Deus: a Comunidade, que o tacha de louco: e Haydum (a Natureza? Deus? Ou um Jeová implacável e imperscrutável pela percepção limitadamente humana?). Em “Fluxo” há uma supreposição propositada de frases referentes a problemas teológicos e frases ridículas, prosaicas ou cômicas, como nas peças de Beckett: “Oi, ai. Não há salvação. Calma, vai chupando o teu pirulito. Eu queria ser filho de um tubo”. Ou reflexos da tentativa desesperada de comunicação da própria autora: “E por isso eu te aconselho a escrever daqui por diante coisas de fácil digestão, acaba com a coisa de escrever coisa que ninguém entende”
Mas é com o conto final, “Floema”, que Hilda Hilst atinge um dos pontos mais altos da criação literária do Brasil atual. Evocando o misterioso personagem de “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa, um homem, Koyo, simbólico de toda a raça humana, se debate com um Deus que o chamou. É esse ser indefinível – monstruoso ou bom? Surdo ou cruel? – que primeiro se dirige ao homem: “Koyo, descansei, mas no descanso também sofro dessa angústia de ser, e no escuro uma noite ME PENSEI… Estou todo dentro, de perfil também sou de frente, sou sempre inteiro, uso a linguagem fundamental, sem essa que disseste”. Isolado de todos, tentando decifrar Haydum com faculdades humanas, Koyo é tido como louco pela comunidade em que vive: “Falam assim os filhos-outros: tínhamos um pai um dia, agora um rasto, nem come o que a mãe põe à mesa, fala em fome, nem nos olha, caminha como a hiena, lento, em ponta…, Mas a mãe colhe abóboras porque diz que ele grita durante a hora cinza. Que hora? Essa do sonho, sem lua, nem sol. Que ele grita: Abóboras. Haydum da cor do fogo… Sobe todos os dias a colina, leva o carvão no bolso, risca um círculo”. Nem as palavras servem para communicar os seres humanos: Abóbora, para Koyo, é parte de uma interrogação a Haydum: “Somos, para o teu olho, como as abóboras, Haydum?” e anda tem a ver com seu apetite. É outra forma de interrogar o Que Não Pode Ser Conhecido: “Me diz, Haydum, o que é a essência da substância. Me diz como tocaste a essência, que sopro ou gesto faz nascer o movimento”. Um membro da comunidade o ameaça pelo seu desligamento do mundo: “Velho Koyo, a corda não foi feita só pra laçar o lobo, nem para estrangular os porcos, a corda pode ser usada pra te laçar, ou pensas que vais ficar a vida inteira com essa lama no corpo, atirando vergonha sobre a casa?” Outro tenta persuadi-lo a aderir ao mundo prático: “Koyo, falo em nome de todos, aprende como nós a aceitar a vida… Já pensaste, Koyo, se usasses a febre que tens em alqueires de tomate?”
Como um mistério de filme de Bergman, com imagens visuais da força de uma obra-prima do cinema japonês, este conto deslumbrante leva a condição humana às suas últimas consequências. Da fé à descrença em Deus, desde a solidão do místico numa comunidade materialista e hostil até o desafio de uma divindade que até o final permanece impassível e indecifrável: Deus. Demônio ou Indiferença?
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Esperando Haydum},
booktitle = {Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa,
Clarice Lispector e Hilda Hilst},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {2},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-2/3-hilda-hilst/01-esperando-haydum.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Veja, 1970-12-09. Aguardando revisão.}
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