Perfil da Literatura Negra

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Mostra Internacional de São Paulo, 1985/05/20-26. Aguardando revisão.

“Eu sou invisível.

Não, não sou um fantasma como os que perseguiram Edgar Allan Poe. Nem sou um daqueles ectoplasmas feitos nos filmes de Holywood. Sou um ser humano feito de substância de carne e osso, fibras e líquidos – e talvez se pudesse até dizer de mim que tenho um cérebro. Sou invisível, compreendem, apenas porque as pessoas se recusam a me ver…

Nem a minha invisibilidade é uma questão de algum acidente bioquímico que tenha acontecido com a minha epiderme. A invisibilidade a que me refiro acontece devido a uma insólita disposição dos olhos daqueles com quem entro em contato. Trata-se de uma construção de seus olhos interiores, aqueles que as pessoas usam para ver, através de seus olhos físicos, para ver a realidade… Você se contorce de dor, ansioso para se convencer de que você existe no mundo real, de que você faz parte dos sons da angústia circundante, e você passa a usar os punhos, amaldiçoa sua condição e jura que conseguirá fazer os outros te reconhecerem. Qual o quê! Raramente se consegue..”

Quem está falando assim? Um judeu em plena Alemanha nazista? Um homossexual? Um índio? Um velho? Uma mulher discriminada em todas as áreas de seus direitos humanos? Um velho, mero ferro velho hoje imprestável depois que foi usado até o fim? Um índio de terras, família e cultura roubados impunemente e que reclama diante de autoridades como que voluntariamente surdas?

Não: a voz do Homem Invisível – ou da Mulher Invisível – é a de um negro ou negra. É a voz do extraordinário escritor norte-americano Ralph Ellison em seu livro-chave The Invisible Man. Ele percorre nesta narrativa fantástica todos os registros da experiência pela qual passa quem não é visto pelos outros. Haverá estratégias, modos de comportar-me que mudem essa situação? Quem sabe se eu for obediente, humilde, até mesmo subserviente, os outros me verão e responderão, mesmo que seja fracamente, a meus acenos para ser reconhecido como um ser humano? Eu devo rebelar-me, usar a violência, arrebentar todos os códigos? Eles e elas me circundam, são infinitamente mais fortes do que eu, eu quase diria que são todo poderosos.

E se eu usar a inteligência – será que serei visto? Ou devo isolar-me num canto, exatamente como eles e elas querem, tornando-me uma figura baça, apagada, quase inexistente, sem causar o transtorno da minha presença-trambolho e me tornar invisível no meio de um gueto de outros invisíveis como eu? Ou devo agir, desafiando a injustiça que me é feita pelo preconceito, pela insensibilidade, pela inveja, pela crueldade, pela deliberada intenção de me usarem e de fazerem de mim a polpa amorfa de suas ordens e caprichos?

Não precisamos descer à banalidade histórica de mencionar que os negros foram arrancados da África e transferidos à força para as Américas como escravos, pois esse – é óbvio – é o nosso ponto de partida. Como, porém, o marginal, o excluído antes de qualquer julgamento, o condenado sem comparecer previamente diante de tribunal algum reage dentro de um mundo que da escravidão o transformou num mero animal sem alma nem identidade. O negro passou a ser, conforme o caso, uma minoria diante de uma sociedade branca, como nos Estados Unidos, ou de uma sociedade que mal emergiu do colonialismo imposto pelo europeu, como tantos países da África Negra. Ou finalmente ele é ainda aquele em quem todos pisam, como no regime racista do monstruoso apartheid da África do Sul?

Recodificar pode parecer uma palavra pedante para tentarmos interpretar como os poetas, artistas plásticos dançarinos, os compositores musicais, os novelistas, poetas e dramaturgos negros viram quem sempre se recusou teimosamente a vê-los. Recodificar, com o significado de criar um novo código é uma expressão difícil, hermética, por isso digamos mais simplesmente: como o negro pôde sobreviver e achar o seu nicho nestas sociedades: uma mais, outras menos intolerantes, uma mais hipócrita do que outras em reconhecer seu preconceito racial contra ele?

O primeiro obstáculo, que reforça o desprezo aviltante que os racistas demonstram pelos “inferiores” é, sem dúvida, o estereótipo, a caricatura. O negro? Ora, é preguiçoso, cheio de superstições, pai ou mãe de santo, lixeiro, prostituta disfarçada que desfila nua nas escolas de samba, arrombador de casas, presidiário, no máximo jogador de futebol ou corredor esportivo. Além, é lógico, de um garanhão insaciável, sempre pronto para maratonas sexuais lendárias. Assim, cem milhões de indivíduos arrancados à força e com engano do seu habitat na África Negra de seus ancestrais e trazido para as Américas como gado humano simplesmente, ça va sans dire, simplesmente NÃO TÊM CULTURA. No máximo, são crianças supersticiosas e dóceis. Usam-se dois critérios simultaneamente. Assim, quando se trata da Europa e partindo da visão sacrossanta de que a Europa é o ÚNICO centro de civilização e cultura do mundo, a literatura oral de Homero, na Grécia Antiga, é louvada como tradição transmitida de geração em geração com seus versos imortais da Ilíada e da Odisseia. Ignora-se, portanto, criminosamente, dolorosamente, a riquíssima tradição oral da cultura e da civilização autóctones da África Negra. Partindo de Benin, de Daomé, do Quênia, do Senegal, da Nigéria e de dezenas de outras nações ao sul do Saara que nos legaram testemunhos importantes como os códigos penais, a genealogia das tribos, sobre as fábulas e apólogos de cada grupo e sobretudo se joga no lixo o acervo riquíssimo dos rituais religiosos do culto do sagrado que inflama o devoto coração negro. Sacudiam os ombros os racistas dos colonizadores Impérios colonialistas, zombeteiros: é inútil aprender línguas arrevesadas como o Wolof, o Bambara, o Peule, o Bamileke, o Ewondo, o Kikongo, o Yoruba, o Hauoussa, o Kishauili ou o Suahili. Aconteceu exatamente o que aconteceu no Zaire, ex Congo Belga, onde os dominadores belgas só saíram apressados, quando da independência de sua imensa e riquíssima colônia, e deixaram para trás apenas quatorze africanos com diplomas universitários para tomar conta de um enorme país emergente. Como os belgas, os demais colonizadores brancos – com raríssimas exceções – ignoravam, arrogantemente, que toda aquela tradição oral tão rica era também, legitimamente, Literatura, era História, era Sociologia; era Psicologia, eram os Mitos multisseculares de povos inteiros! E como nas noites em que “a negrada” se reunia em torno das fogueiras, nas clareiras da mata, exausta de cavar diamantes para os patrõezinhos louros de Bruxelas ou Antuérpia na realidade cantavam em coro zombando dos “sinhozinhos” e suas mentiras, com aquela risonha ironia ferina do humor negro!

Depois, pouco a pouco, como uma neblina, desfez-se gradualmente a invisibilidade. Grandes artistas europeus, grandes escritores e filósofos brancos começaram a levantar o véu e a verificar que, como diria Descartes, o negro pensa, logo existe! O quadro de Picasso Les Demoiselles d’Avignon testemunhava clara e conscientemente influências das admiráveis máscaras negras, da escultura negra. Sartre proclamava que o negro afrontado, subjugado, erguia do chão a pedra que o branco arremessara contra ele com ódio e nojo que mal escondiam a sua insegurança o seu medo e a sua inveja do “Negro”, o negro passava a usar as mesmas armas dos brancos. O negro começava a sua literatura escrita, conforme os padrões ditados pelos brancos, por volta de 1900. Mas não só a literatura escrita: nos Estados Unidos os spirituals (muito mais tarde o jazz, o blues) com seu conteúdo bíblico, cantado nas igrejas protestantes ou no trabalho do campo, os spirituals se adaptavam perfeitamente ao sofrimento que no Velho Testamento falava dos judeus, exilados de sua terra natal escravizados no Egito, tangidos numa diáspora semelhante ao doloroso e involuntário périplo do negro. Moisés estendia a visão paradisíaca da Terra Prometida a todos os subjugados e expulsos de sua terra original. Os negros, escravizados nos Estados Unidos, estavam no mesmo deserto espiritual, as plantações de algodão do Sul rivalizando com o branco de suas carapinhas e a religião de um homem que morreu na Cruz a lhes prometer a libertação do cativeiro, quem sabe até a volta mítica à África de seus antepassados?

Aqui também havia uma modificação do código que os brancos seguiam. Para os negros a Terra Prometida, a Canaã, não era Israel, era a liberdade, a justiça, a democracia, o reconhecimento de seus direitos humanos que lhes dessem a possibilidade concreta, cotidiana, de serem considerados adultos livres e pensantes, independentes e responsáveis. Assim como teriam que gozar da plenitude de seus direitos humanos inalienáveis porque vinham junto com sua imersão na água batismal. A Bíblia passava a ser o livro da esperança e da promessa, não só judaica, não só cristã, mas também negra. Não podemos, dolorosamente, deixar de reconhecer que as Américas também neste ponto como em tantos outros, serviram de ambiente para pogroms e para a destruição dos negros, assim como ocorreu, por exemplo, com o Quilombo de Palmares.

As Américas nasceram de dois holocaustos: o das tribos indígenas e o holocausto: dos negros chicoteados de seu habitat natural rumo a países, povos e línguas estrangeiras, como diz a esplêndida escritora inglesa, Doris Lessing: a arrogância, a falta de humildade, de curiosidade por um ser humano diferente, mas nunca inferior

A Liberdade tinha sido conquistada com a vitória das tropas de Lincoln? A liberdade era boa para os brancos? Ela tinha que ser boa também para aos negros. Ao grito de Marcus Gavey “Come back to Africa!” (“Voltem para a África!”) quando os Estados Unidos fundaram a Libéria justamente para se descartar daquela massa de trabalhadores gratuitos, agora que eles tinham se tornado um estorvo pago e renitente, ele lucidamente respondia que não, o lugar dos ex-escravos é aqui, na América. O que nos pode servir de lição: W. E. Dubois precedeu os movimentos de libertação de vários países africanos negros e suas obras serviram de livro de cabeceira ou Bíblia para líderes africanos como Kwame Nkruman e Jomo Kenyata entre outros. Em 1903 ele já tinha a audácia de proclamar: será inútil a batalha dos negros pelos seus direitos? Estará o negro condenado como os heróis punidos gregos, Sísifo, Tântalo – a ver sempre seus esforços baldados? Os racistas do Sul se organizaram em sinistros grupos fanáticos e violentos: o Ku Klux Klan, apavorantes encapuzados, brandindo tochas de fogo e procurando “justiça e divertimento”: sair à caça de negros e católicos para enforcar ou linchar e depois incendiar suas míseras casas. Sereno em sua combatividade, Dubois fez o que para os brancos e para muitos negros que queriam “esquecer” a África que consideravam simiesca e selvagem, (conforme o chavão distorcedor da verdade repetido mil vezes): Dubois pensou profundamente, conscientemente e proclamou, sem se abalar, e de suas meditações surgiu o primeiro raio de luz que rompia aquela total invisibilidade negra. Em primeiro lugar, dizia, o negro tem que ser ele mesmo. Vencer a degradação social que lhe é imposta. Vencer a miséria, a ignorância, a inércia. Vencer a imitação servil e infecunda dos modelos brancos. Não está aí, inteira, a semente da futura Négritude de Senghor e de Aimé Césaire, aquele movimento de valorização total do mundo negro que genialmente Lima Barreto vira entre nós, muitos anos antes do ilustre poeta-Presidente do Senegal e do poeta das Antilhas com seu movimento da negrice?

Chicoteados para fora de sua paisagem natural rumo a países desconhecidos em fétidos navios negreiros, rumo a países e povos de línguas e costumes estrangeiros o negro deparou com características dos brancos dominantes que a magnífica escritora inglesa Doris Lessing foi cáustica mas justa ao denunciar: a arrogância vazia, a falta de humildade, de mera curiosidade por um ser humano diferente, mas nunca inferior, levou o branco a destruir, sem cuidados impérios inteiros: civilizações e culturas antiquíssimas da África, dos astecas, maias e toltecas no México e Guatemala, dos Incas no Perú e Bolívia – todos caíram arrasados pela soberba branca – mercantilista e protestante na América do Norte, hipocritamente conivente por meio da Igreja Católica que se diz seguidora do “amai o próximo” pregado por Cristo e que fazia vista grossa com relação à escravidão e ao massacre dos negros e índios no Brasil. Como a mesma Igreja, dita Católica, mais tarde abençoaria o fascismo de Mussolini, os trens de Hitler que despachavam soldados para a Segunda Guerra Mundial e calava seus púlpitos diante do genocídio de judeus, eslavos, homossexuais, ciganos aos milhões nos campos de concentração…

Mas se uma parte crescentemente influente e importante da intelectualidade branca se aliara, eloquente, à causa da abolição da escravatura – no Brasil o poeta baiano Castro Alves, o pensador da aristocracia pernambucana, Joaquim Nabuco, nos Estados Unidos a romancista Harriet Beecher Stowe e seu romance A cabana do pai Tomás – persistia outro problema crucial. Como manter fielmente os valores ancestrais africanos usando-se de uma língua estrangeira? O português, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde e em Guiné-Bissau; o espanhol, em Cuba, na Colômbia, no Peru, na Venezuela; o inglês nos Estados Unidos, o francês nas Antilhas tinham outras sonoridades, diferentes da estrutura e das sonoridades originais das línguas e dos dialetos da África Negra. Foi uma escolha difícil, decisiva mesmo, mas que brotou simultaneamente em todos os países: o negro contornou essa dificuldade. Apoderou-se da língua dos dominadores, da maioria branca. Não sei se cometo uma injustiça e se for o caso penitencio-me dela desde aqui e agora, mas tudo leva a crer que foi nos Estados Unidos que primeiro explodiu o orgulho de ser negro, a recusa de macaquear os modos de vestir, de falar, de ser do homem branco. W. E. Dubois, em 1890 – quando a União nacional quase se esfacelara por causa, principalmente, da abolição da escravatura nos EUA, nos Estados Confederados do Sul agrário e escravagista – Dubois atreveu-se a proclamar o “Movimento do Niágara”. O que queria esse negro assanhado, que se formara em filosofia em Harvard e Berlim? Assediar a consciência norte-americana até que os negros, afrontados em seus mínimos direitos, lesados, sem direito a voto, pessimamente alojados, pessimamente remunerados, sem acesso à instrução: cumpria torná-los cidadãos iguais aos outros como rezava, formalmente, a Constituição.

Ao mesmo tempo que ele clamava por boas escolas (mas não de samba), pelo voto que não fosse fraudado nas urnas controladas por brancos inescrupulosos. Ele aconselhava o enriquecimento dos negros para poderem competir em pé de igualdade com os ricos de pele clara, professava sem nenhum fanatismo uma fé profunda e comovedoramente democrata: Liberdade individual e de escolha de trabalho. Liberdade de associação. Liberdade de pensamento e de opinião. Liberdade de culto e de educação. E generoso, ultrapassando as falsas barreiras da cor da pele, acrescentava, convincente:

“De tudo isso nós precisamos, não separados dos demais, mas sim todos combatendo pelo mesmo ideal: o ideal da fraternidade humana. Sem oposição nem desprezo pelas outras raças que constituem a República norte-americana”.

Poeta, ao contrário de Dubois, que fundou a Associação para a Defesa das Pessoas de Cor e lutou de 1910 a 1945 pela independência dos países da África Negra subjugados pelos colonizadores ingleses, franceses, holandeses, belgas, portugueses, alemães, o poeta Langston Hughes lança a semente de um sentimento de exílio negro em meio à neve nos Estados Unidos. E como o nosso poeta Jorge de Lima ao falar do ’banzo”, da saudade triste que se apodera do negro no Brasil longe de seu meio ambiente natural, na África longínqua; do negro que teme a civilização materialista, melancólica, cinzenta, dos arranha-céus. Ele anseia pelo sol, pelas palmeiras, pelos tambores nativos e espera algum dia não ter vergonha de se sentar à mesa dos brancos: “pois eu também sou a América”.

Essa reação do negro transplantado para outros países se divide em vertentes diferentes, naturalmente. De um lado, há os que anseiam por voltar à África, à aldeia tribal, ao ambiente primevo dos avós e bisavós: em sua busca de readquirir uma identidade perdida. De outro, a aceitação consciente de que “agora somos parte integrante e inalienável do mosaico das Américas”. Esta aceitação de seu americanismo – afinal há mais ou menos 400 anos os negros aculturados no Novo Mundo são dos mais antigos e básicos “americanos”, do Sul, do Centro ou do Norte da América – não deixa de ter uma subdivisão amarga, cheia de ódio e ironia, em que se emprega a mais ácida ironia contra o branco opressor. Demonstra essa reação um dos poetas brasileiros mais talentosos dentre os que Paulo Clina judiciosamente coligiu em sua pioneira coletânea de poetas negros brasileiros contemporâneos, denominada Axé, pela qual lutei denodadamente e com razão na reunião da Associação Paulista de Críticos de Arte que lhe atribuiu um prêmio justíssimo e até então outorgado somente a autores brancos ou mestiços. O poeta Cuti exemplifica essa atitude em seu poema intitulado “Palavra”:

Palavra 

Que sai da violência, do sarcasmo 

Dos bêbados felizes 

Deitados na rede da ilusão dum Brasil branco 

Arrotando a vergonha-sobremesa do nosso olho 

Hesitante em olhar para trás 

Dos partidários de Rui Barbosa hoje 

Na queima da “mancha negra da escravidão” 

Do esquecimento das feridas que escorrem pus 

Na carne de milhões de brasileiros 

Nós 

Que sai do cheiro podre de favela 

Onde a cor das pessoas 

É seta é meta direta da mentalidade escravagista 

Em branco processo disfarçado 

Palavra 

Arrancada da angústia que se torce no meio dos medos 

Do povo doente de não querer parentesco de escravo 

Palavra 

Fustigada : “Racista!” 

Porque picha verdades cruas na cara da compostura 

Maquiada de sonhos europeizantes 

Palavra 

Cuspe de escravo na cara do amo 

Do amo-bibelô-vovô guardado 

Nas estrofes do poema encomendado pelo cofre 

Nos talheres da inconsciência 

No útero estéril da nobreza 

Palavra com olho d’água 

Com choro censurado 

Orvalho de tristezas sobre folhas de cafezal 

Em farpas de canavial 

No sórdido riso dourado da terra 

Palavra com palavra que se embola 

Mar de bolhas que fervilha 

Pela estrada dessa História de nós povo aqui 

Trazido 

Aqui sugado 

Aqui bagaço 

Cuspido 

Palavra-cobrança na porta emperrada da consciência 

Nacional 

Sinal do sentimento nosso 

Nessa língua estrangeira 

Por enquanto

Nas Antilhas, Aimé Césaire e depois o senegalês Léopold Senghor extrapolam a celebração do ser negro com a Négritude, uma tendência que o grande escritor brasileiro negro, Lima Barreto já antecipara, como dissemos anteriormente, com seu conceito revolucionário de celebração da “negrice” brasileira, que ele tentava articular em verdadeiro movimento literário. O estopim desse Renascimento Negro parte da revista criada por intelectuais da Martinica intitulada Légitime Défense. Os antilhanos de cultura francesa, empanturrados do Parnasianismo quando Paris já tinha Rimbaud, Baudelaire, Verlaine e os surrealistas se rebelam, com razão. A nota de autenticidade africana é confirmada pela revista fundada em Paris subsequentemente, em 1934: L’Étudiant Noir (O Estudante Preto). Aí Aimé Césaire avança a tese de que nem o surrealismo nem o marxismo podem servir de modelos para a Négritude, pois são movimentos que partem da Europa, dirigidos a europeus: ora, a África Negra, demonstrava o etnólogo alemão Frobenius, de maneira irrespondível, é civilizada até à medula dos ossos. Antes da chegada dos brancos colonialistas à África, os negros indígenas nada tinham de subdesenvolvidos no plano das artes, da literatura, das religiões, das relações familiares, no plano jurídico, moral e político:

“A ideia do negro bárbaro não passa de uma invenção europeia”, afirma Frobenius, dispondo de dados arqueológicos irrefutáveis, convincentes na mão. Theodore Monot também denuncia a imbecilidade europeia de tomar a experiência do homem branco como a única. No máximo, os europeus poderiam ter um avanço tecnológico – o que hoje nos levou a Hiroshima, aos mísseis SS-2L russos e aos mísseis Pershing e Cruise norte-americanos.

A tecnologia que os índios astecas confundiam com a vinda dos deuses ou com a magia ao vislumbrarem Hernán Cortés e seus soldados descerem de navios montados a cavalo e com pedaços de madeira que cuspiam fogo e matavam alvos ao longe. Um poeta e ensaísta dos Estados Unidos com quem conversei hoje, durante esse frutífero congresso, o norte-americano Don Lee, assumiu conscientemente e voluntariamente uma dupla personalidade: é Don Lee por batismo na América anglo-saxônica e é também por eleição própria Haki Madhubuti. Ele retoma a frase célebre de Aimé Césaire que ainda considera válida hoje em dia:

“Nous autres nègres n’avons rien inventé » (Nós, negros, nada inventamos) para exortar a comunidade negra a apoderar-se dos conhecimentos, vitais hoje em dia para qualquer raça, da era tecnológica branca, na Rússia ou nos Estados Unidos ou do know-how japonês com sua nipônica coesão nacional e sua supremacia eletrônica alcançada hoje em dia já em termos mundiais de competição com os EUA. Don Lee pede a altos brados: menos televisão e mais estudo. Mais livros para os negros, mais conhecimentos para os negros: este é o desafio para os negros hoje em dia mais urgente, crê.”Não sou contra os brancos nem tenho objetivos absurdos de querer tomar para os negros, como compensação pela escravidão, os territórios dos Estados do Sul dos Estados Unidos, a Geórgia, o Alabama, o Tennesse, o Texas etc., como advogam, sem pensar, certos grupos fanáticos negros. O que eu quero é a participação integral do negro na malha de informações e eficiência do mundo moderno, porque mais do que nunca hoje em dia a informação, saber é poder”

O negro encarou o código que lhe impunha o branco dominante e o modificou estruturalmente, creio. O calor humano, a solidariedade, a fraternidade, a criatividade artística, a reflexão serena em todas as áreas da ação e do pensamento vieram dar vida às estátuas do Museu de Cera em que se estão transformando as sociedades brancas racistas que se idolatram a si mesmas, alijadas voluntariamente do espaço e do tempo.

A integração pacífica das raças, a miscigenação serão utopias a que recorremos para ocultar a hipocrisia do preconceito generalizado? A África do Sul, esse enclave hitlerista em pleno final do século XX, “liberou” recentemente o amor e a união matrimonial entre pessoas de raças diferentes – quanta magnanimidade! Isso embora marido e mulher de cores diferentes ou amasiados terem que continuar a se sentar em bancos de jardins públicos diferentes, a viajar em trens diferentes e tomar água em bebedouros diferentes, além de outras restrições.

E não é sem propósito a menção específica à África do Sul. Eu lhes pedi licença para iniciar esse apressado esboço homenageando as organizadoras deste importante encontro inicial. Permitam que o encerre com uma nota dupla: primeiro, uma nota de esperança, a fim de que a educação, o respeito mútuo tragam uma contribuição recíproca cada vez maior a todas as raças, visando ao objetivo maior da humanização de nosso convívio. A segunda nota seria o reconhecimento, a homenagem sincera a todos os que forjaram a libertação plural da África Negra, muitos deles autores brancos como Alan Patton, Doris Lessing, Nadine Gordiner e os grandes líderes atuantes hoje em dia: Dom Desmond Tutu, Nelson Mandela, sem esquecer os corajosos predecessores, o Reverendo Martin Luther King, o Mahatma Gandhi. Todos nos legam e legaram uma lição imorredoura no coração e no espírito do ser humano, não importa a sua raça: a noção superior do ahimsa, o princípio-bússola da não-violência, o amor e o respeito pelo nosso próximo. Sem esquecer aquela anônima Rose, uma faxineira preta norte-americana que certa vez se recusou a ceder, num ônibus do Sul dos Estados Unidos, o seu lugar, na parte detrás do veículo em que viajava a um passageiro branco e com isso deflagrou todo o processo de mudança em prol dos direitos civis dos negros naquele país. Desde aí ecoaram até nós as estrofes do hino da esperança cantado por multidões de todas as raças, sexos e religiões ao invadir Washington, diante do Monumento à Memória de Lincoln:

“We shall overcome!” 

“Venceremos!”

O esplêndido escritor irlandês George Bernard Shaw exprimiu esse mesmo anseio ao anotar lucidamente”

“Você vê como estão as coisas e diz: Por quê? Mas eu sonho com coisas que nunca existiram e então eu digo: Por que não?”

É o sonho visionário da grande alma de Martin Luther King exclamando: “I have a dream!” (“Eu tenho um sonho!”): o sonho da justiça, da liberdade, do respeito mútuo, da pacífica e fecunda convivência de todos os seres humanos no mundo: não é chegado o momento de começarmos a realizar concretamente o que sonhamos?

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Perfil da Literatura Negra .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.