Senghor, o Orfeu negro

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Veja, 1969/12/31. Aguardando revisão.

Pelo menos no Senegal, a poesia está no poder. Amigos desde os bancos do ginásio Louis-le-Grand, em Paris, Georges Pompidou e Léopold Senghor desde cedo sentiram-se unidos pelas paixões comuns da poesia e da política. No caso do atual presidente da França, a poesia passou a um hobby cultivado nos intervalos da administração governamental. No de seu amigo africano, a política não eclipsou a criação poética desde sua eleição unânime, em 1960, para a presidência da antiga colônia francesa. Pouco depois de assumir a suprema magistratura senegalesa, Senghor conquistava fama mundial em outro campo: o da literatura, com seus Poèmes, publicados em 1964. Seus poemas formulavam de forma concreta a teoria da négritude que ele cimentara, expandindo o pensamento inicial de Aimé Césaire, estruturado filosoficamente por Jean-Paul Sartre. A négritude é porém só um dos aspectos da grandeza deste Orfeu negro. É o que compravam seus Poemas traduzidos agora no Brasil (Edições Grifo, 1969). A África Negra, como é natural, inspira a maior parte de seus versos, mas sua versatilidade estende-se à participação política, à exaltação poética de jardins da França e da neve caindo sobre Paris. Ou às elegias que catam a doce saudade portuguesa na voz de Amália Rodrigues.

Sua definição da négritude dada durante uma entrevista ao jornal Le Monde aplica-se predominantemente à sua própria poesia: “Uma força emotiva que leva à assimilação intuitiva do mundo exterior (e não racional) aliada ao dom do símbolo, da imagem e do ritmo e uma noção de excepcional de comunhão, de solidariedade coletiva”. O painel deslumbrante da sua inventividade poética abre-se com a evocação da África, uma evocação em que a aldeia natal ressurge docemente: “Eu não sei em que tempo se deu, confundo sempre a infância com o Éden”. Uma infância passada em Joal-la-Portugaise: “Joal/ Eu me lembro/ Lembro-me das signares à sombra verde das varandas./ Das signares de olhos surreais como um luar na praia”. Nesta África com vestígios do Brasil (signare é uma corruptela de senhora, a sinhá brasileira, que no Senegal designa as mulheres de cor casadas com homens brancos), a natureza funde-se com os dialetos e a celebração da missa em latim, palmeiras e trombetas tribais. A exaltação da pele negra antecede de vários anos o movimento atual black is beautiful (a cor negra é linda) dos artistas negros americanos. No admirável poema intitulado “Mulher Negra”, ele celebra dois de seus temas constantes: a beleza africana e o amor. Em “Mensagem” são os ancestrais dos negros africanos modernos, diplomados na Europa (como o próprio Senghor), que falam, exortando-os a não se iludirem pelos diplomas (“amontoais folhas de papel”) e a voltarem aos ritos de sua raça e de suas civilizações antigas: “Ide a Mbissel à Fa’ou; rezai o terço de santuário que balizaram a Grande Via./ Segui de novo a Estrada Real e meditai esse caminho de cruz e glória./ Vossos Grandes Sacerdotes responder-vos-ão: Voz do Sangue!”

Mas a poesia de Senghor não se restringe ao exótico. Suas “Elegias” ultrapassam qualquer referência local para adquirir uma grandeza solene e majestosa. Particularmente na “Elegia da Meia-Noite”, que celebra o “Verão, esplêndido Verão, que nutres o Poeta como leite da tua luz/ A mim, que brotava como trigo primaveril, que me inebriava/ com a verdura da água, com o verde escorrer no ouro do tempo”. Na “Elegia das Saudades” é a “gota de sangue português que se perdeu no mar da minha Négritude”, é a origem do nome Senghor (do português Senhor) e onde “reencontrei meu sangue, descobri meu nome outro ano em Coimbra/ sob a misturada dos livros/ Mundo selado de caracteres estritos e misteriosos, ó noite das verdes florestas, aurora de plagas inauditas..” Nos seus cânticos para mulatas, com acompanhamento de instrumentos indígenas como “Congo (Woi para três korás e um balafong)”, ou ouvindo num “calmo e grave jardim da França” o apelo “do tam-tam retumbante, veemente, lancinante”, Senghor – como documentam mesmo essas traduções literais e sem sopro poético – é um dos grandes poetas do mundo atual. Delicado e pujante Orfeu negro, em sua lira se alinham as paisagens paradisíacas da África, o requinte estilístico do francês com seus recursos de ritmo, cor e melodia, e uma contribuição inédita de força e sensibilidade à grande poesia deste século.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Senghor, o Orfeu negro .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.