Alberto Moravia e Elsa Morante: entrevista a Leo Gilson Ribeiro

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal do Brasil, 1960/08/21. Aguardando revisão.

Nosso primeiro contato com Alberto Moravia e Mário Praz, que Aldous Huxley considera “o maior crítico europeu da atualidade”, teve lugar durante um passeio de caro organizado pelo Instituto Italiano, que permitiu aos visitantes apreciar as decantadas belezas paisagísticas do Rio. A par da loquacidade inquieta de Moravia, que contrastava com a melancolia opaca de seus olhos, Mário Praz se revelava meticuloso e ordenado nas perguntas, cujas respostas anotava rapidamente num bloco de notas que levava sempre à mão. Nosso colóquio com o grande escritor italiano se fez, portanto, depois de um convite fragmentário, entre uma e outra sessão do Congresso do Pen-Clube, uma e outra visita a igrejas e locais célebres do Rio, contudo, estabelecera-se um clima de cordialidade e bom humor que eliminaram de nossa entrevista qualquer rigidez e formalidade. Bastante conhecido em toda a Europa, seu primeiro romance, Gli Indifferenti, escritos aos 17 anos e publicado quando o autor tinha 23, causou estupor pelo tema escabroso que abordava – a bancarrota moral de uma família burguesa – e obteve vivo sucesso editorial. No entanto, Moravia prefere fugir a qualquer classificação literária e recusa os rótulos que os críticos mais abalizados querem colocar em sua atividade criadora, por conseguinte, não se considera nem um Thomas Mann italiano nem um Huxley, nem um cronista social, mas tão somente ele mesmo, sem filiações nem parentescos literários. Depois da obra de estreia, muitas outras fizeram crescer sua fama, no entanto, Agostino – como todos os demais relatos moravianos, ambientado na sua Roma natal caleidoscópica, onde camadas sucessivas de séculos e culturas diferentes coexistem e se justapõem umas às outras – permanecerá, cremos, como uma de suas mais perfeitas criações artísticas, o retrato patético de um adolescente que prematuramente conhece a “sordidez e a humilhação do sexo”, o adultério, o homossexualismo, a crueldade e a indiferença. Seria difícil descobrir em Moravia um moralista de velho estilo: seus personagens agem de maneira desumana entre si por inércia, por ignorância, por indiferença, raramente por cálculo e crueldade premeditada. Seria melhor, porém, que o próprio escritor, presidente em seu país do Pen-Clube (uma entidade que congrega, na Itália, alguns dos mais importantes nomes da Literatura contemporânea peninsular), nos fale a respeito de si mesmo e de suas impressões do Brasil. Inicialmente, diante do assombro revelado por todos os participantes estrangeiros do Congresso ao terem notícias das dificuldades indescritíveis de importação de livros entre nós, quisemos conhecer a opinião de Alberto Moravia a respeito desse embargo cultural que o pusera fora de si dias antes:

LGR - Alberto Moravia, recentemente, Sr. Manifestou surpresa e indignação ao saber que existem, no Brasil, gravames seríssimos no setor da livre importação de livros estrangeiros: “taxas de renovação da Marinha Mercante, corte dos ágios para aquisição de livros etc.”. Por favor, dê-nos sua impressão a respeito dessa situação sui generis.

AM – “Creio que os livros devam ser vendidos sem qualquer ônus, de espécie alguma (a ênfase é de Moravia), a câmbio normal. Ainda não analisei a fundo a proposta feita por outros governos sul-americanos, de dará subsídios às bibliotecas para possibilitar a importação de obras culturais, essa medida deve ser tomada de acordo com os casos individuais, de país a país. No entanto, fique bem claro que a taxação de livros estrangeiros é sobretudo uma taxação da inteligência. Fiquei profundamente impressionado pelo fato de praticamente não encontrar livros estrangeiros no Rio de Janeiro, a Capital, de quase 4 milhões de habitantes, de um país civilizado e pujante, uma Nação que se integra plenamente no presente. Fui a diversas livrarias, que me tinham indicado como sendo boas e não encontrei quase nada, nada absolutamente, de interessante, de atual, nem guias do Rio, em inglês ou francês, pude encontrar! Em todos os lugares do mundo em que estive, sem exceção, encontrei livros de toda espécie, até no Egito e no Oriente Médio. Esta é uma lacuna sumamente grave que o Governo, as autoridades, devem sanar o mais rápido possível.”

LGR: – Certos setores brasileiros têm classificado essa atitude de obscurantista.

AM – “Qualquer ato contra a cultura é obscurantista. Toda autoridade, em qualquer país, deve favorecer ao máximo o intercâmbio de livros entre os países, um intercâmbio livre e abundante, que só pode ser benéfico para uma cultura em formação, como é a do Brasil, justamente. A razão é óbvia: hoje em dia, mais do que nunca, nenhuma cultura pode ter a pretensão absurda de ser autossuficiente. Nem culturas antiquíssimas e riquíssimas, como a francesa, por exemplo, podem ter essa miragem absurda. Calculo que até mesmo sob o Fascismo – e todo totalitarismo é, por natureza, obscurantista – havia uma importação maciça de livros estrangeiros, o mesmo sucede atualmente na União Soviética. Irei até mais longe: mesmo em países que se encontram ainda em estado pré-industrial, na fase agrícola de seu desenvolvimento econômico, como o Irã, importam-se livros à vontade. O Brasil parece um caso único.”

LGR – Depois de ter confirmado o que vários livreiros estrangeiros já denunciaram, inclusive junto à International Publishers Association em Zurique, na Suíça, onde nossa política cambial com relação ao livro foi taxada de verdadeira calamidade, Moravia analisa um problema afim: o do analfabetismo e superpovoamento crescentes do globo, principalmente nos 2/3 da terra – ou sejam: as nações subdesenvolvidas -, revelado em termos angustiantes pelo eminente cientista britânico, Julian Huxley, à Unesco.

AM – “Conheço essa tese que é verdadeira, pelo menos em teoria, e que se concretiza, acelerando esse processo alarmante, cada vez que são tomadas medidas que dificultam o diálogo cultural entre os povos.”

LGR – O Sr. Se referiu à interpenetração e interdependência de culturas no mundo atual, confirmando a tese de Toynbee de que se forma um mundo unitário hoje em dia. Na sua opinião, qual seria a contribuição especificamente italiana para essa civilização una e global?

AM – “A contribuição italiana seria, sobretudo, humanística. Humanística em todas as acepções da palavra: estética, ideológica etc. Já a Literatura italiana do após-guerra é uma documentação eloquente desse Humanismo, porque na Cultura italiana o HOMEM sempre constituiu, ancestral e vitalmente, O CENTRO DE TODO O UNIVERSO, A MEDIDA DE TODAS AS COISAS. A Literatura italiana, ao contrário da Literatura francesa, por exemplo, é feita de personalidades, de indivíduos isolados, que têm cada um a sua voz, sua contribuição subjetiva, sua própria visão do mundo. Na nossa Literatura não se podem distinguir, na realidade, correntes ou escolas de valor genérico ou coletivo. Naturalmente, depois da guerra, os fatores político-sociais começaram a aumentar grandemente de importância, sem, contudo, predominar, exclusivamente no cenário italiano. Como não poderia deixar de ser, a Literatura refletiu a influência desses fatores de fato. Creio que um fenômeno semelhante, aliás, se produziu nas demais Literaturas europeias que passaram por esse processo de renovamento.”

LGR – Poder-se-ia dizer, como querem alguns críticos, que Italo Svevo (autor de La Coscienza di Zeno, que fundou, por assim dizer, a literatura interior, de sutil indagação psicológica, relacionada, em parte, com o método evocativo utilizado por Proust) foi o iniciador da moderna Literatura italiana e o grande predecessor de todos os escritores do após-guerra?

AM – “Não creio que se possa considerá-lo meramente o iniciador de um movimento qualquer, ele é o maior prosador italiano modernos, depois de Verga, cronologicamente, fugindo, portanto, a classificações sumárias. Quanto à Literatura contemporânea de meu país, devo dizer, que, é claro, durante o período de opressão fascista, que impedia a livre expressão e a crítica por parte dos artistas, a Literatura tornou-se mais evasiva, ao passo que depois da guerra ela passou a participar mais da realidade circundante.”

LGR – Que se deve fazer para que os brasileiros tenham uma visão inteligente e atual da Literatura italiana de hoje?

AM – “É preciso, sobretudo, que se traduzam muitos livros, mas compreenda o que quero dizer: não se trata de traduzir uma grande quantidade de livros, mas sim muitos livros bons. As traduções devem ser feitas com discernimento, o plano de traduções deve ser orgânico, estruturado, qualitativo. Creio que o critério que deve predominar no setor das traduções não deve ser somente comercial, mas sim o de uma formação e de um intercâmbio culturais. Poderia constituir um grande perigo para o Brasil adotar um critério de meros bestsellers, que só têm sentido num país como os Estados Unidos, que têm uma indústria editorial gigantesca e só podem traduzir livros de grande venda assegurada de antemão. Aqui no Brasil, porém, país em formação, as traduções devem ser seletivas.”

LGR – Que impressão teve do Brasil, que visita pela primeira vez?

AM – “Recebi uma grande e forte impressão, de um país tumultuoso, de exuberante e surpreendente vitalidade. Essa me parece a palavra que define o Brasil melhor do que qualquer outra: vitalidade, pujança impressionantes. É claro que o Brasil paga o preço de seus”fenômenos de crescimento”, de sua puberdade, mas o resultado total é magnífico. É preciso explicar que a vitalidade implica, sem dúvida, em coisas boas ou más, a vitalidade é uma lei por si só, não lhe importam os critérios humanos de bom ou mau, ela se impõe, impondo ao mesmo tempo seus efeitos brutais e seus efeitos benéficos. Note que as coisas que não são vitais são sempre boazinhas, isto é: medíocres. Por exemplo: o teatro, na Itália, é uma expressão sem vitalidade, boa, na média, mas sem altos e baixos, com a única exceção, provavelmente, do Piccolo Teatro di Milano. O cinema, ao contrário, é vitalíssimo: exuberante de dinheiro, de mau gosto, de mulheres belíssimas, de ótimos atores e geniais diretores. A vitalidade é como a própria origem dessa palavra indica: vida e portanto impureza, mistura, mas principalmente uma fecunda mistura, uma impureza sumamente fértil.”

LGR – O Sr. Concorda com a afirmação de John Dos Passos, René Clair e outros que querem ver em nossa época sobretudo a predominância de uma cultura visiva, em detrimento da Literatura, e que por conseguinte o Cinema seja o meio mais típico e válido de expressão artística de nossa época?

AM – “Em nossa época dinâmica, tumultuosa, agitada, a predominância dos meios visuais se deve à predominância das massas, que tiveram agora acesso aos meios de cultura. E, naturalmente, todo elemento visivo é mais fácil, porque mais primitivo. Creio no primado da palavra e se algumas civilizações são predominante e tradicionalmente visuais, como a mediterrânea, por exemplo, isso não significa que não tenham também uma elevada experiência linguística, paralelamente. A civilização anglo-saxônica, para citarmos outro exemplo ilustrativo, é predominantemente linguística, baseada sobre essa expressão puramente literária e, contudo, ninguém sonhará em considerar a esplêndida Literatura inglesa inferior, sob qualquer ponto-de-vista.”

LGR – Já que o Sr. se refere a civilizações diferentes, que obedecem a cânones artísticos diversos, diga-nos alguma coisa a respeito do país que mais o impressionou, dos inúmeros que percorreu até agora.

AM – “Mais do que qualquer outro, deixou-me impressão vivíssima e indelével o Japão. Atualmente, estão traduzindo três livros meus lá: La Romana, Agostino e La Disubbidienza. O Japão representa uma grande, maravilhosa Cultura, um país que se refez completamente depois da hecatombe da guerra e de Hiroshima e Nasáqui. Atualmente sobrepuja aos demais fatores o fator social, no Japão, mas o conteúdo fortemente intelectual das criações japonesas impregna ainda profundamente todas as atividades humanas naquela nação. O Japão é a nação dupla por excelência, seus filhos são orientais e ocidentais ao mesmo tempo: com incomparável sabedoria, aproveitaram da nossa civilização o melhor e retiveram o melhor de sua própria civilização. Em minha opinião, naquele magnífico país asiático se encontra um dos povos mais inteligentes e mais interessantes da terra, com preocupações estéticas e éticas extraordinárias.”

LGR – Referindo-nos às suas palavras inaugurais do Congresso, por meio das quais o Sr. ressaltou as diferenças entre o Oriente e o Ocidente, principalmente as de caráter religioso, que poderia dizer-nos ainda sobre esse assunto?

AM - “A religião no Oriente está em fraca decadência, isto é: seus Institutos, pelo menos. Um fenômeno contrário se produz na Igreja Católica, no Ocidente, cujas instituições ainda estão muito fortes. Na China, por exemplo, o Budismo está como que posto de lado, inclusive devido a fatores políticos e sociais. O que quero frisar, contudo, é que na Ásia predomina o fator político sobre todos os demais, ao passo que no Ocidente, coexistindo com essa efervescência de fenômenos sociais observa-se uma crescente descristianização das massas, cujo sentimento, ao perder paulatinamente sua inquietação especificamente religiosa não abdica, por isso, de suas preocupações morais e humanas, algo como os Enciclopedistas franceses que amavam o ser humano, embora fossem ateus.”

LGR – Fale-nos a respeito de seus livros.

AM – “Nada sei, nada posso dizer sobre eles. Escrevo simplesmente como forma de autoexpressão. Um escritor, creio, parte sempre do particular, o eu individual, para o geral e nunca diversamente. Quanto aos críticos que dizem que me atenho meramente a uma crítica da burguesia, confesso que têm um conceito demasiado estreito do que seja a Literatura: ela é sem dúvida, mais do que isso somente. Certamente, há um conteúdo ético em tudo o que escrevo, mas nunca uma filosofia consciente, que os escritores não possuem. A minha Weltanschauung reflete imagens da realidade, tenta descrever as relações entre o homem e a realidade, que, como diz, aliás, Pirandello, é sempre diferente para cada observador: Così è, si vi pare.”

LGR – Quanto aos compromissos éticos a que o Sr. se referiu, expresse sua reação com relação à literatura comprometida ou engagée, aos escritores, como Camus, que preconizam uma intensa participação do escritor nas preocupações imediatas do homem: sua luta maior por maior justiça social, por ideais políticos etc.

AM – “Creio que o artista deva participar sempre das reivindicações do homem, mas só, conditio sine qua non se a sua obra mantiver os valores estéticos da Literatura e da Arte.”

LGR – Poderíamos considerar Carlo Levi, o autor de Cristo se è fermato a Eboli, como um escritor em que domina qual dos dois fatores? O ético ou o estético?

AM – “Acho que o Levi é um dos raros exemplos de perfeito equilíbrio, de integral fusão dos dois imperativos. O livro que o Sr. citou me parece ilustrativo do gênero”crônica social poética” que legitima, artisticamente, as inquietações sociais presentes em toda a obra de Levi.”

LGR – E Pasternak?

AM – “Pasternack também participou como artista, salientemos que, às vezes, recusar-se a colaborar é também uma forma de participação. Além do que, Pasternack foi sobretudo um grande poeta, como novelista considero seu Dr. Jivago secundário. Por outro lado, não exageremos nunca com essas classificações dogmáticas e com essa superpreocupação social, tão a gosto marxista: Mallarmé, por exemplo, é um excelso, altíssimo poeta, na mais pura e profunda acepção do termo, a sua poesia é desprovida de todo e qualquer fundo social, por isso negaremos ad absurdum seu incomparável valor artístico??! A participação só me parece importante e necessária quando os problemas do homem são urgentes, sublinho, porém, que sou, em princípio, pela literatura que colabora com o ser humano e não se alheia às dimensões de seu mundo ambiente.”

LGR – Como Henry James, o Sr. corroboraria que a Arte inclui todas as formas de ser e de expressar-se?

AM – “Plenamente, integralmente. A Arte tem uma única regra inflexível da própria Arte, nada lhe é estranho, a Arte é uma forma de conhecimento absoluto.”

LGR – E como forma de conhecimento como diferem a poesia e a prosa entre si?

AM – “A prosa, principalmente na novela, menos do que no romance (este é mais afim à poesia, mais subjetivo), é uma forma de conhecimento mais impregnada de um racionalismo intrínseco, a prosa é mais intelectual, por natureza, mais objetiva e mais vulnerável a um método já quase filosófico de indagação especulativa. A prosa já tem uma como que estrutura interna de conteúdo racional, que lhe ser e de fundamento. A poesia, não, é uma forma de conhecimento do mundo muito menos racional, menos ideológica, menos conscientemente filosófica e portanto mais perto da intuição, do subjetivismo, a poesia é sobretudo mais religiosa e frequentemente mística, numa busca de conhecimento irracional ou além-do-racional do Universo em que está integrado o homem como artista.”

Elsa Morante, que se recusa a ser conhecida sob a fórmula fácil e injusta de esposa de Moravia, é amplamente conhecida em toda a Europa como uma das mais importantes revelações literárias dos últimos tempos. Total e lamentavelmente desconhecida no Brasil, sua obra principal abrange duas novelas: L’Isola di Arturo e Menzogna e Sortilegio, saudada por Gabriel Marcel e pelo crítico húngaro Georges Lukacs como a mais importante escritora surgida na Europa, no período do após-guerra. Uma personalidade marcante, uma inteligência inquieta e vivíssima, Elsa Morante se distingue sobretudo pela sua espontaneidade, sua ausência total de divismos literários e pelo seu credo individual de uma tolerância vivificadora, que abrange todas as raças e preferencias individuais. Como ela diz, com convicção e sinceridade evidentes, toda discriminação é infame. Durante o breve colóquio que com ela tivemos e que integra, de certa maneira, o diálogo com seu célebre esposo, pudemos anotar algumas de suas frases, de suas opiniões que deixam entrever a riqueza interior dessa extraordinária escritora, um dos raros artistas feitos de um só bloco, que não apresente separações odiosas entre a personalidade do escritor e a sua individualidade como ser humano. Elsa Morante é, realmente, como a escritora Elsa Morante e vive, de momento a momento, suas convicções e sua doutrina de humana tolerância.

EM – “Creio que esta seja a única possibilidade de exprimir-nos: a de tentarmos modificar nossa sociedade, tornando-a principalmente uma sociedade tolerante, sem falsos tabus nem hipocrisias e puritanismos ocos. No tocante a escritores como Coccioli e Gide, que revelam o mundo sob a perspectiva homossexual, minha opinião é a de que no terreno das preferências sexuais cada um de nós deve ter sua liberdade de escolher, desde que isso não acarrete dano para os demais. Recordemos a Antiguidade grega, em que o jovem adolescente só atingia a virilidade através de experiências desse tipo, além do que, é lícito indagar: onde começa a moralidade? Ela não muda seus critérios de acordo com a época e a civilização em que vivemos? São Paulo, por exemplo, pregava a castidade como forma de vida: logicamente, ela não pode ser adotada universalmente. No campo erótico, ou melhor, do amor, não existe pecado, a verdadeira moralidade é a de interferir na vida de outrem.”

Falando das grandes cidades que já conheceu, Elsa Morante demonstra imediata preferência por Nova Iorque: “Nova Iorque parece corresponder, na época atual, aos grandes centros da Antiguidade, como Alexandria e Persépolis, nos quais existia uma verdadeira e palpitante democracia, inclusive racial, a par de uma inebriante vida cultural e artística, creio até que hoje em dia Nova Iorque se tornou o centro cultural do Ocidente, colocando Paris em plano secundário. No Rio de Janeiro, que vejo há pouquíssimos dias, fiquei profundamente impressionada com a atitude democrática e simpática de seu presidente, Kubitschek, que durante a inauguração do Festival de Escritores, em Copacabana, se misturou à multidão, que o aclamava. Eu já conhecia o Brasil principalmente através das palavras de Rossellini, que aqui esteve e voltou transtornado, literalmente deslumbrado. Em sua casa, em Roma, ouvimos maravilhas a respeito desse mundo novo, que eu sempre quis conhecer. Falava-se da grandiosidade e da exuberância de tudo aqui, que reproduzia as dimensões da natureza tropical, sem, contudo, oprimir o homem climaticamente. Na Europa já conhecemos também bastante a música de Villa-Lobos – segundo me asseguram amigos brasileiros melhor até do que seus compatriotas. Tenho uma impressão fascinante do que vi no Brasil: um país em formação, com uma natureza soberba, uma assombrosa atividade industrial, uma comovedora cordialidade e mistura entre as raças diversas que compõem este ciclope moderno. Creio que o Brasil trará contribuições importantes à humanidade não só como exemplo de fraternidade racial como também no campo da música, das artes plásticas.”

Falando a respeito de seus livros e de Literatura, em geral, Elsa Morante declara: “Creio que meu primeiro livro, Mentira e Sortilégio, seja mais importante do que o segundo, que, no entanto, foi o que mereceu maiores elogios da crítica, já estando traduzido em 15 idiomas. Cada escritor, creio, tem um só tema, em todos os seus livros. O meu, desde quando era uma criança de 13 anos e que escrevia meus jornais, ilustrados por mim mesma, tem sido sempre o da relação entre o homem e a realidade, relação trágica porque revela sempre um desnível entre a realidade que imaginamos e a realidade concreta, objetiva, se é que ela existe em estado puro. Escrevi já um pequeno ensaio sobre esse tema que me obsessiona: na minha opinião, há só três modo de reagir diante da realidade (estou falando de reação literária principalmente): A primeira forma é a de aceitar plenamente a realidade, integrar-se completa e conscientemente nela, como o fez por exemplo Aquiles na Antiguidade grega, que vivia na realidade como se ela fosse seu próprio habitat natural, seu elemento espontâneo. A segunda forma é a de não se adaptar à realidade, refutar a realidade que nos é dada, como é o caso de Dom Quixote. Ele fabrica, inventa e vive nessa atmosfera inexistente. Meus personagens, bem como, por exemplo, os de Tennessee Williams, enquadram-se nesta segunda categoria quixotesca. A terceira reação é constituída pela não aceitação da realidade, acompanhada, tragicamente, da impossibilidade de inventar uma outra realidade que a anule. Hamlet ilustra esta categoria, o mesmo sucedendo com vários personagens de Tchekov, principalmente no seu teatro. Esses protagonistas recusam a vida, pela qual sentem repugnância, revelando-se, porém, incapazes de criar uma outra realidade. Sim, exatamente: como no caso da Literatura romântica, que via na poesia uma verdade”absoluta e superior à realidade aparente”.

Indagada a respeito de suas preferências literárias na Itália e fora dela, Elsa Morante não hesita um segundo e cita: Stendhal, Tchekov, Cervantes e Shakespeare. Na literatura italiana, Pier Paolo Pasolini a impressiona vivamente como ser humano e artista: “Pasolini tem uma insaciável ânsia de viver plenamente, um desejo veemente de atingir uma totalidade, de não perder nada do que a vida oferece aos ávidos de experiência e de conhecimento; Saba, como poeta, parece-me ser o maior poeta italiano depois de Leopardi”.

Ela classifica o Cinema como uma arte demasiado complexa e difícil, não podendo ser considerada absolutamente uma arte menor: “O Cinema, como orquestração de elementos díspares, exclui a elaboração solitária da literatura e também o diálogo entre autor e leitor que exclui outros participantes. Sem chegar ao extremo de considerar o Cinema como mero passatempo não creio, porém, que possa substituir, pela imagem, o universo múltiplo da página impressa. O teatro poderia interessar-me muito, se soubesse escrever para ser representada, aliás, em minhas novelas, há frequente utilização de um diálogo dinâmico, que talvez pudesse convir às necessidades cênicas.”

E terminando nosso breve encontro ela justifica sua verdadeira idolatria pela música de Mozart: ” Mozart é uma divindade. Tenho quase todos os discos existentes de sua música, que é, para mim, absolutamente incomparável. É o único artista que me ensina até mesmo a solucionar certas relações psicológicas entre meus personagens, quando escuto música.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Alberto Moravia e Elsa Morante: entrevista a Leo Gilson Ribeiro .” In Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do pós-guerra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 8. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.