Doris Lessing, brilhante. Apesar da má tradução
“O homem branco… poderá me ensinar como fazer uma camisa ou a ler e escrever, mas meus ancestrais e eu bem que lhe poderíamos ensinar algumas coisas também, se pelo menos ele nos desse atenção e se permitisse a si mesmo sentir plenamente. Não existe mais a África apenas para o branco vir a ele para lhe dar lições e controlar a sua alma e seus recursos naturais sem concordar em aprender também dela.” Ezekiel Mphlele
Pobre Doris Lessing! Está sendo vítima, no Brasil, de traduções maçantes ou incompetentes ou apressadas ou todas ao mesmo tempo em certos casos. O que fazer? Quando se dará a oportunidade de se retraduzir bem a sua magnífica, majestosa prosa? Agora a editora Record arbitrariamente amalgama seis contos reunidos sob o título de This Was the Old Chief’s Country e três das novelas da coletânea Fice e o resultado, além de abusivo, é tragicômico, pois esta deve ser a primeira tradução esquizofrênica que se faz da admirável autora de Shikasta. De fato, na tradução brasileira (de Carlos Evaristo Marques), o leitor alternadamente tem lampejos do que possa ser a grandeza original de Doris Lessing e arrepios de rejeição diante das calamidades cometidas contra ela. Dever ser uma forma nova de know-how brasileiro digno de um congresso de psiquiatria literária.
Os exemplos são abundantes e aflitivos, desde o quase inocente “it doesn’t help” traduzido como “não ajuda”, quando deveria ser “não adianta” até transformar “insurance policies”, meras “apólices de seguro” em “políticas de seguros”, ainda bem que Deus nos preservou de uma “polícia de segurança”! E não nos quedamos mudo diante da inventividade do tradutor ao ler a frase: “… nunca tivera anteriormente nada a tratar com africânderes e o que lhes sabia a respeito era por ouvir dizer…” E “Mas que tinham sido nascidos para curar”?!
Diante deste texto trepidante em português, pelas surpresas que inflige ao leitor, presa de uma montanha-russa de erros e acertos, não se deve, porém, desistir. O vigor, a inteligência, a sutilíssima sensibilidade de Doris Lessing sobrevivem a mais essa erosão ecológica de suas frases. Aqui e ali se entreveem momentos tocantes desse primeiro painel da Rodésia, publicados quando a escritora inglesa estava ainda na década dos 30 anos de idade, em 1950, 1951, e lhe valeu precocemente o prêmio Somerset Maugham em 1954. Como ela afirma, com toda a segurança da sua vivência africana e seu militante combate contra o racismo e o colonialismo europeus naquele continente:
“Acredito que a principal dádiva da África aos escritores, tanto brancos quanto negros, é o próprio continente, sua presença que, para algumas pessoas, é como uma antiga febre, sempre latente no sangue, ou como um antigo ferimento pulsando nos ossos quando o tempo muda. Não é um lugar para se visitar, a menos que se tenha escolhido tornar-se depois, para sempre, um exilado do silêncio inexplicavelmente majestoso que paira um pouco além das fronteiras da memória ou do pensamento. A África lhe dá o conhecimento de que o homem é uma criatura minúscula, entre outras criaturas, em meio a um vasto panorama.”
A Terra do Velho Chefe, título que se deu a estes contos, alterando o original que seria Esta foi (ou era) a Terra do Velho Chefe, não é apenas uma das primeiras rebeliões contra o odioso preconceito branco dirigido aos nativos da África Negra. Como ela próprio ressalta, a presunção e a arrogância é que sustentam a desumanidade básica de qualquer preconceito e há sempre atrofia da imaginação do se negar a ver o próximo a não ser por estereótipos de critérios que se pretendem absolutos, universais, uniformizadores de todas as culturas do mundo: os critérios do homem branco. Ao lado de outros grandes escritores brancos que revelaram à Europa a monstruosidade nazista do racismo, como E. M. Forster, Allan Patton, Nadine Gordimer e J. M. Coetzee, Doris Lessing, existem apreensão psicológica do comportamento humano sem endeusamentos de qualquer segmento racial nem uma visão “piedosa” dos despojados de seus mais elementares direitos humanos. Há uma ferina ironia na descrição dos colonos ingleses que tentam pateticamente reconstruir em pleno ambiente africano mansões que reproduzem as casas abastadas, de estilo gótico ou normando, dos bairros ricos de Londres. E há uma compreensão densamente humana dos valores autóctones dos “nativos”, sem jamais surgir uma literatura esquematizada entre os “bonzinhos” e os “maus”.
Os holandeses, sem dúvida, estão entre os mais bárbaros racistas: tratam os negros como animais, em contraste com os ingleses que, quando pensam no assunto, dão de ombros: “Os pretos são crianças”… Evidentemente, a simpatia, o calor humano, a sincera curiosidade pelo mundo não-europeu contagiam logo o leitor – não por constatar a apavorante injustiça diária cometida contra os colonizados apenas, mas por rir da imensidão da caricatura humana que o branco passa, involuntariamente, a apresentar de si mesmo. A bondade não basta para se vencer o muro da incomunicabilidade de culturas conflitantes: é preciso uma empatia que literalmente nos permita ver o mundo com os olhos de outrem, sem prejulgá-lo. Esses contos, de uma exuberante descrição da natureza, de uma intuição cuja argúcia a tornam uma legítima descendente de Jane Austen, dão a Doris Lessing o tom de uma matizada melancolia saudosa pelo empobrecimento que a destruição de culturas traz ao patrimônio da civilização humana, a ruína da África tribal, violada em sua integridade pela invasão do homem branco. Esses contos lhe dão um tom premonitório, profético de que não poderia perdurar por muito tempo o domínio da África por seus opressores.
“Não há Feitiçaria à Venda”, “O Pequeno Tembi” e “O Formigueiro”, entre vários outros desses contos perfeitos em inglês, bastam, mesmo nesta tradução acometida de artrose reumática degenerativa, para testemunhar suas verdades óbvias e paralelas. Uma delas, a beleza e a profundidade da literatura, do pensamento e da sensibilidade de Doris Lessing. A segunda, óbvia para qualquer leitor medianamente alfabetizado: a de que as editoras brasileiras não perdurarão muito tempo se continuarem a publicar semi-massacres de uma obra esplêndida, ofendida em sua integridade pela ignorância, pela péssima remuneração dos tradutores entre nós. A menos que elas considerem seu lucro o de destruir, para o leitor que não tem obrigação de saber inglês, uma das criações artísticas e filosóficas mais inquietantes deste século: ou será uma forma dissimulada de desleixo ou de um “racismo” cultural?
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Doris Lessing, brilhante. Apesar da má tradução},
booktitle = {As três grandes damas da literatura europeia: Virginia
Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {7},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-7/03-doris-lessing/00-doris-lessing-brilhante-apesar-da-ma-traducao.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1973. Aguardando revisão.}
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