Desafiando os rinocerontes do poder

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1988-09-24. Aguardando revisão.

O extenso romance tem um início que merece uma tela panorâmica e a direção plural de Fellini atrás da câmera:

“O anjo sobrevoou a cidade às 12:00 - 12:27 (hora solar). Era louro e de asas vermelhas e tinha um belo rosto triangular em nada semelhante ao dos querubins de igreja. Planou em lentas e tranquilas curvas por cima dos arranha-céus e das praias que contornavam a cidade, percorrendo-os com a sua sombra.”

Nas praias cariocas de Ipanema e Leblon, as multidões de banhistas se alvoroçam: seria uma aparição sobrenatural? Repentinamente, suas asas rubras se rasgaram e, veloz, ele veio estatelar-se nos rochedos do Arpoador. As autoridades da Ordem e a Igreja mexem-se quando a multidão acende velas votivas em torno a seu corpo esfacelado, vendedores ambulantes surgem do nada para comerciar amuletos, falsas relíquias do anjo. Um repórter da televisão indaga se aquele rapaz não fora castigado pela vaidade de Ícaro, dos tempos da Grécia Antiga, que ousou desafiar as leis da gravidade e, como ele, se espatifou à beira-mar. Outros vêm nele o símbolo da “vertigem de luxos, prazeres e devassidões” de uma sociedade que, como no filme La Dolce Vita, está mergulhado a volúpia suicida do aqui e agora.

O livro, como um novelo, vai-se desenrolando e mostrando as mil possibilidades de interpretação: o voador audaz da asa-delta, indaga a polícia, não poderia estar servindo a interesses ocultos, quem sabe até lesivos à Segurança Nacional? Ou pertenceria a uma seita esotérica? A hipótese de ter sido um extraterrestre tampouco se pode descartar. Um peão da zona rural do Ceará, apelidado de Boca Braba, não tivera dúvidas: pegou o “cospe-fogo” e disse ao amigo que o acompanhava pelas cercanias: “Compadre, pássaro que era não sei, mas lá que largou o home tenho certo”.

A cada página que se vira, o relato adquire novas feições: o rapaz assassinado, Waldir, dizia-se, vendia seu corpo a homens e mulheres. Haveria motivos passionais para que ele fosse abatido? interroga-se o delegado de polícia encarregado do “caso”. E o fio do novelo inicial vai-se desfiando: leva a Alexandra, a portuguesa sua amante que, como ele, trabalhava na gigantesca multinacional de publicidade Alpha Linn (Departamento do Brasil): ela, especialista em marketing, ele, como chauffeur de Administração da firma.

Para fugir ao desdobramento sórdido e fantasioso do acontecimento - Waldir estaria ligado não só à prostituição de si mesmo como ao tráfico de drogas, latrocínio e falsificação de documentos -, Alexandra torna-se, como ela mesma dirá, com ironia, “uma madrasta solteira”.

Raramente a literatura cifrou em uma personagem central um símbolo negativo de um país, se pudermos falar tão esquematicamente. Porque o extraordinário escritor porrtuguês contemporâneo, José Cardodo Pires, neste seu belíssimo romance, Alexandra Alpha (Editora Companhia das Letras), a princípio quer despistar o leitor, levando-o a crer que essa Alexandra realmente existiu e que, na cidade de Beja, em Portugal, há fitas gravadas com a voz dela e palestras que ela teria feito em colóquios internacionais de publicidade, tudo guardado no cartório de Beja. É uma licença poética do autor: Alexandra, cujo sobrenome que assume é a da própria empresa em que trabalha, a ponto de não ter uma identidade própria completa, é dolorosamente, humanamente, a parte de Portugal que mentiu sempre sobre a barbárie salazarista. Para ela e a maioria dos portugueses só interessva ocultar a realidade, a troco de um ótimo soldo. Há cenas pugentes de publicidade do café produzido em Angola: enquanto o país africano estava destripado por uma guerra colonialista monstruosa, a propaganda exibia agricultores negros sorridentes, palhoças encantadoras, música de cadência alegre, tudo para vender Angolan coffee.

Homem da esquerda lúcida, ao contrário da maioria dos nossos canhotos esquizofrênicos e stalinistas, 70 anos atrasados no estudo da História de nosso século, José Cardoso Pires não produz jamais retratos em branco e preto, de um hediondo “realismo socialista” soviético. Alexandra é uma criatura complexa, irresoluta, apolítica, colhida de roldão pelas forças a favor ou contra a Revolução de Abril, dos Capitães, dos Cravos, a revolução que decepou as correntes do fascismo que ataram e dessangraram Portugal na imensa mendacidade salazarista e na hipocrisia deslavada das “províncias de além-mar”: Angola e Moçambique. Indecisa, inconclusa, Alexandra tanto pode frequentar os restaurantes “do Antonio’s em Ipanema, do Jangadeiro e doutros inferninhos onde fazia a mesa a esquerda festiva de Tom Jobim, João Gilberto e Chico Buarque”. Como pode ser surda e cega à realidade que a circunda em Lisboa, imersa apenas em gráficos de lucro para a Alpha Linn, em eficiência, em crescimento mercadológico. Alexandra não é condenada e o fantástico desfecho deste livro - que seria inaceitável revelar para quem pretender lê-lo - fecha também um círculo que se iniciara com seu amante brasileiro alvejado quando descia da pedra da Gávea, no Rio de Janeiro.

É conhecida a alergia que José Cardoso Pires tem por Eça de Queirós, provavelmente o maior gênio da prosa que Portugal já produziu, preferindo a ele Machado de Assis. No entanto, a visão ácida, de ódio/amor que mantém sempre com Portugal não poderia ser mais parecida com a de Eça de Queirós. Ele fustiga, até com os mesmos termos: “Isto é uma choldra”, não vale nada, a futilidade da burguesia média e alta que continua boquiaberta diante de um visitante ilustre francês - ah!, a França! - como Roland Barthes. O finíssimo crítico parisiense está na boca de todos que jamais o leram e, se o lessem, jamais o compreenderiam:

“Queria esquecer o lamentável desta coisa, deste país onde todo o idiota aventurava opiniões. Principalmente desde que o Barthes andava em visita a Lisboa, não havia bicho-careta que não emitisse o seu zumbido. Alexandra:”Isto não é um país, é um sítio mal frequentado”.

Enquanto isso, a temível polícia politica de Salazar, a Pide, prendia um padre que ousara falar em nome das classes pisoteadas pela camadas de cima, explusando-o da Ordem Religiosa e cassando-lhe o brevet de piloto.

Com a faca aguçada de um Swift, Cardoso Pires cria situações surrealistas, por exemplo, a das Irmãzinhas Despidas, que “tinham escolhido como supremo sacrifício irem para a cama com os seres mais repelentes deste mundo”. Sua “caridade sexual” as levava a receber “os mal-amanhados de toda espécie, quasímodos, lepras-mansas, desbraçados e tremebundos”. Para não engravidarem, tomavam antes, regularmente, a pílula consagrada (uma alusão violenta à hóstia consagrada, é óbvio) e se abstinham de qualquer prazer físico, nessa sua heroica doação do corpo.

Alexandra, entre um fugidio e inconsequente amante ocasional e outro, gravava, solitária, para si mesma, suas meditações:

“Repetimo-nos em círculo fechado, passamos a vida a repetir pessoas, locais e situações, e eu creio que é por uma afirmação de identidade, não vejo outro motivo. Procuramos sinais de grupo onde quer que a gente esteja… Procuramos uma identificação com o lugar, é o que isso quer dizer. Segurança. A identificação também quer dizer segurança…”

O autor vergasta tudo que é postiço, sebento, como “as preocupações de Diogo Senna, diplomata”, entre as quais está a interrogação: “A fotografia documental não está isenta de especulações ideológicas”, não é verdade? E ainda “a abrir o álbum, sim ou não à citação de Sartre: A foto flutua entre a percepção, o signo e a imagem”?

Adentra-se pela ópera buffa, de uma comicidade dolorosa, a respeito dos que temem desmesuradamente o comunismo, como o interiorano João Berlengas, defensor do franquismo e das legiões de Cristo-Rey. Ele “para o que desse e viesse tinha no quarto de dormir um gavetão atulhado de revólveres e munições porque os vermelhos, na fuga da derrota, podiam aparecer por aí, chamuscados pelas balas do (seu) irmão e do generalíssimo Franco. Já lhes sentia o esturro, já as advinhava, uns escondidos nas caves, outros disfarçados de cegos, outros de moços de fretes e alguns até com sotainas de padres. Tudo era possível, Lisboa estava minada de rojos, republicanos, anarquistas, mata-frades e incendiários, só quem fosse distraído é que não notava.”

Pela sua própria exiguidade de espaço, resenha alguma poderá abranger a contento um livro de quase 400 páginas, variadíssimas, todo um mural imenso de Lisboa, incursões pelo interior do País e pela África, quando não aos Estados Unidos e outros lugares.

Há um pseudofaquir que se intitula Rama Silva, na realidade Amaro Silva, “inscrito na Direção-Geral dos Espetáculos”, provavelmente com carteirinha de “artista telepático”, como proclama seu cartão de visitas. Há os falastrões inveterados, como o chamado Opus-Night, que falam, falam, embebidos, empapados de uísque e não levam a nada, comparando os bispos e as polícias como “inquisições paralelas” e concluindo: “Os seminários hoje em dia são autênticas fábricas de comunas. Não? Olha o Stálin, onde é que o Stálin foi aprender a ronha toda senão no seminário?”

A irrisão de Cardoso Pires, ele a reserva, feroz, para o fanatismo sentimentalóide, piegas, das beatas e dos de extrema-direita. Durante uma procisão a um lugar de aparições supostamente santas, a descrição que delas ele faz é goyesca:

“Do outro lado da vitrina chegou um autocarro de peregrinos a entoarem hinos sagrados. Parou e, ato contínuo, saltaram de lá de dentro numa aflição de velhas e corcundas, solteironas, cristãos estropiados e senhoras de matilha, e todos à uma invadiram o bar a caminho das retretes, com o motorista e duas freiras no comando. Uma delas não se sabia se corria para aliviar a bexiga, se para se livrar dum cão vadio que lhe tinha filado com os dentes o rosário que ela trazia à cinta. Um estardalhaço, uma desorientação. A irmãzinha esperneava, o cachorro mordia e o Opus-Night iluminava-se com gargalhadas jacobinas.”

O afrancesamento servil, ridículo de tão exagerado, de certos círculos cultos de Lisboa, também é objeto de suas cenas sulfúricas de ironia. Um quase anônimo cineasta francês ouve do afrancessadíssimo Bernardes teorias enjoativas sobre a psique portuguesa: a tendência para a abstração e as viagens, a taxa dos suicídios, o sebastianismo, a solidão dos portugueses, resumindo doutamente: somos todos “patriotes provisoires d’une patrie incertaine”. Devastador é o retrato do cineasta que quer a tela nua como o cinema supremo, a exploração do vazio e do nada, “um discurso em situação-limite, o som anulado até a crueldade, a cor despojada até ao branco retórico”.

E como esquecer a cena que é uma profunda metáfora do mudo que com os lábios forma as sílabas da letra de um fado, acompanhado por um grupo de bêbados sob a regência de um cego? Como deixar de mencionar, de passagem, o Afonsinho Pompaduor, que jogava a escada rumo à sua varanda para qualquer homem que passasse, soldados, ciganos, rapazotes gatunos, o que fosse, e depois importará de Paris manequins de plástico configurando mulheres a que dava nomes, cuidava e batia, conforme o seu instável humor, enredando as beatas em doações e missas sem fim, penitências a água-benta o tornando cada vez mais religioso e digno de respeito aos olhos daquelas parvas que queriam através dele e da Igreja conquistar o céu que não tiveram em vida?

Mas tudo, mesmo o grotesco “Natal de Combatente” transmitido pela televisão, com recados dos que estão combatendo na África, dirigidos a suas mãezitas, namoradas, noivas, parentes, nem as cenas apavorantes das batalhas corpo a corpo em Angola e Moçambique ultrapassam o sopro épico, único, das páginas rapsódicas, perfeitas, da morte de Salazar, literalmente caído da cadeira, e a triunfal rebelião dos capitães. A alegria parecia ter enlouquecido um povo inteiro, amordaçado e tornado paralítico durante 47 anos pelo ditador soturno e silente. O leitor não poderá ler esses capítulos sem comover-se, até as lágrimas, com o júbilo que explode ao som da música “Grândola Vila Morena”: é todo um povo martirizado que se redime e atinge, ontologicamente, a faculdade de ser, já que então não conseguiria mais do que respirar segundo a batuta dos rinocerontes no poder.

Cardoso Pires não se limita à embriaquez contagiante do momento: vê também as criminosas perversões, tanto do lado reacionário quanto dos extremistas de esquerda, dois lados da mesma medalha: uns atemorizados e jurando agora pelo Catecismo dos Direitos Universais do Homem e outros querendo, como novos vândalos, pôr abaixo o capital e a cultura com o trator do povo. São cenas alucinantes e que não permitem citações fragmentadas, pois formam um friso, um painel ininterrupto de força represada que vem à tona.

Se entre os brasileiros menos informados havia alguma dúvida, este livro e seus anteriores, O Delfim, A Balada da Praia dos Cães e O Anjo Ancorado, deixam meridianamente claro e certo: José Cardoso Pires é o mais importante, o mais valente, o mais profundo escritor deste Portugal que exibe à Europa restante, prostrada na impotência literária, seu Renascimento atual. Não há ousadia sem base em se afirmar, com plena convicção, que esta é a suprema obra-prima de um narrador que se colocou inteiro, sem piedade nem pieguismo, numa obra magistral. Pouco importa a divulgação que se faz do nome de José Cardoso Pires em outros países da Europa. Para nós, brasileiros, é decisivo podermos ler - e sobressaltar-nos - com esta Alexandra Alpha excepcional em todo o panorama europeu de hoje.

Sim, não há dúvida, se dúvida havia: José Cardoso Pires e Agustina Bessa-Luís são prosadores que perfazem com o poeta Eugênio de Andrade a tríade, não hesito em usar o adjetivo: a tríade perfeita da Literatura com L maiúsculo escrita em português. Voltamos às fontes portuguesas agora, neste Brasil abusivamente americanizado, transformado num insosso hambúrguer da Mc Donald’s no plano cultural: colonizado em sua música, aplastada pelo rock, na sua linguagem, cravejada de termos ingleses snobs e tantas vezes inúteis, ou em posição de adoração diante do lixo literário que a França de hoje, por exemplo, coroa de prêmios altissonantes, meras embalagens ardilosas do nada dentro. Talvez não seja demasiado martelar que linguisticamente estamos delimitados pelas fronteiras autênticas: as que têm ao Norte, Portugal, em torno, as literaturas hispano-americanas e, atravessando o oceano Atlântico, a Literatura africana de expressão portuguesa. O resto, como diria um Hamlet atualizado, é marketing, right?

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1988) 2022. “Desafiando os rinocerontes do poder .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.