Eis um grande escritor
Agora, José Cardoso Pires vai deixar jornal, universidade, Lisboa, para ir viver num pequeno subúrbio da capital. Só vai escrever e viver da literatura “embora modestamente”. E hoje o escritor mais famoso de Portugal, principalmente devido a O Delfim descoberto recentemente pelos franceses.
Chegou a vez dos brasileiros descobrirem O Delfim e Cardoso Pires, 45 anos, parecendo ter dez a menos, 8 livros - um esgotado e outro proibido pela censura portuguesa - José Cardoso Pires foi estudante de Ciências, oficial-piloto de um cargueiro, intérprete, editor de revista, secretário de editora, professor de inglês, publicitário.
Em 1960 fundou a revista Almanaque, de onde saiu o “grupo Almanaque” (Cardoso Pires, Alexandre O’Neill, Abelaira). Sua estréia, com Os Caminheiros e Outros Contos (1946), teve a benção dos neorealistas, que dominavam a literatura portuguesa da época: outro livro de contos, Histórias de Amor (1952), foi proibido por motivos morais e políticos. O Anjo Ancorado, seu primeiro romance, de 1958, foi recebido excepcionalmente pela crítica e está em 3a edição.
O Render dos Heróis foi o livro seguinte: uma peça “em três partes e um epílogo, concluído em apoteose grotesca”, dissecando a mitificação do herói em Portugal. O ensaio A Cartilha de Marialva também é de 1960.
Três anos mais tarde, Cardoso Pires publicou o romance O Hóspede de Job que ganhou o prêmio Castelo Branco, traduzido em vários países europeus. Antes de O Hóspede, saiu Jogos de Azar, coletânea de contos que incluiu alguns trabalhos de Os Caminheiros, O Delfim é de 1968.
José Cardoso Pires está apresentado. Agora, uma entrevista com ele:
Qual o seu método de trabalho?
“Uma das coisas que mais faz mal é tomar notas para escrever ficção. Se o escritor esqueceu de alguma coisa que achou importante, é porque el não era tão essencial assim. Há muitas obras prejudicadas por isso, documentais, romances com excrecências. O importante é a força do consciente. Para mim, também não é possível ser escritor de fim de semana. Certa vez, estava empregado como intérprete de uma companhia de aviação norte-americana. Para escrever os contos de Jogos de Azar, pedia licença para faltar um dia, mas só voltava dali a oito. O primeiro dia é só para ver, se adaptar: escrever é o que se passa a seguir. Às vezes, escrevo durante 12 dias. Sempre muito devagar, com versões sempre variadas. Preciso escrever sempre só, e acho deve se deitar e estar convencido de que escreveu uma obra-prima: mas, no outro dia, ao se deitar, achar que aquilo tudo não vale nada.”
Qual a sua situação no quadro da literatura portuguesa?
“Minha obra é um produto exterior ao neorealismo. Evidentemente, tocada pelo grande impacto que a literatura neorealista teve nos anos 40-50; quando estreei fui bastante apoiado pelos neorealistas. Minha obra pode assim, ser interpretada como uma continuidade histórica dessa escola.
Mas eu e minha geração deixamos as preocupações naturalistas do neorealismo e assumimos uma consciência do país onde vivemos. Nós entramos, nos preocupamos com a vida portuguesa. Portugal é o país de que mais gosto, a vida portuguesa é a que mais me interessa. Mas a representação literária dos problemas dessa vida não pode ser direta, imediata.
Sou um escritor engagé, sou cidadão que toma partido de tudo quanto se passa na minha terra, mas isso não quer dizer que se reflita tal coisa na superfície da minha obra.”
Por que, de repente, sua obra e a literatura portuguesa em geral, chamou a atenção dos centros culturais europeus?
“A Europa tem se caracterizado por estar pobre de criação: a França que é uma espécie de bolsa de valores dos escritores - a meu ver, infelizmente - é de uma pobreza atroz na ficção. Como eles têm de exportar cultura, interessam-se por países que não reconheciam até há pouco. Vários problemas de ordem política tiveram influência: Portugal, um pequeno país, às voltas com uma guerra colonial com três frentes, despertou curiosidade de saber o que acontece em seu território.”
Quais escritores tiveram influência sobre sua obra?
“Escritor português que me tenha interessado, não como influência, mas como ensino de escrita: Fernão Mendes Pinto, irônico em relação a si mesmo; tenho sido professor de Literatura Portuguesa, tendo uma visão herética em relação a ela. Hoje, sou mais tocado por um cineasta que por um escritor. Por exemplo, Michelangelo Antonioni. Quando comecei, gostava muito dos escritores anglo-americanos, como resposta à influência geral, que era a francesa, Faulkner, Hemingway, por exemplo. Mais perto do meu gosto: Stephen Crane, que ainda hoje, considero extremamente perigoso para um escritor, se fixar.”
Que escritores são importantes em Portugal, atualmente?
“É uma pergunta clássica, mas classicamente difícil de responder. Na minha geração - é natural que me esqueça de nomes - posso falar de alguns do movimento Almanaque: Augusto Abelaira, Alexandre O’Neill, o teatrólogo Sttau Monteiro. Num plano bastante diferente do nosso movimento Urbano Tavares Rodrigues; no campo experimental, Herberto Helder, Júlio Moreira; de geração mais velha, Carlos de Oliveira, Alves Redol. Outro nome importante: Almeida Faria.”
Por que há tantas mulheres escrevendo ficção e poesia de qualidade em Portugal?
“Há uma contista excepcional, Maria Judite de Carvalho. Sempre houve grandes escritoras em Portugal, mas só agora é que apareceu um conjunto de mulheres-escritoras de nível importante. Nenhuma mais representativa que Maria Judite de Carvalho. Isso pode ser visto como um reflexo da nova situação da mulher portuguesa: nesta nova revisão constitucional, a mulher tem mais direitos, não todos os necessários. O acesso ao emprego, especialmente.”
Quais suas primeiras experiências de escritor?
“Só como aluno do liceu, dirigi uma revista infantil. Comecei a escrever em 1945 e, depois de um ano, publiquei Os Caminheiros e outros contos. Anotava os muitos livros que lia, fazia apontamentos. Publiquei Os Caminheiros com dinheiro emprestado por escritores.”
E hoje, que prêmios já tem? Em que países foi traduzido?
“Tenho o Prêmio Castelo Branco (de 1963/64, com O Hóspede de Job) e o Prêmio Suplementos Literários. Nunca concorri a nenhum prêmio oficial, nem da Academia. Fui traduzido na Espanha, França, Itália, Alemanha, Rumenia, Hungria, Checoslováquia, URSS, Inglaterra. Brevemente O Delfim será publicado nos Estados Unidos pela Editora Knopf.”
Além de escritor, você foi professor e dramaturgo. Pretende continuar nessas atividades?
“O teatro não me interessa, principalmente pelas condições com que se faz teatro em Portugal. Minha concepção de teatro mudou: acho que é uma mensagem que se começa a escrever no palco, com os atores, e na discussão com o público. Só posso ser escritor de teatro, voltando ao começo da Idade Moderna, à Renascença. A Gil Vicente ou Shakespeare. Gil Vicente fez um teatro moderno, dentro do seu tempo. Os autos foram escritos dentro do princípio da discussão com o público. Isso durava até que o autor considerasse que sua obra alcançara estado definitivo. Terminado meu contrato no King’s College da Universidade de Londres, acabou minha carreira de professor. Agora só escreverei.”
Quais os seus planos agora?
“Vou me fixar em Portugal, mas não vou fazer jornalismo. Só escreverei. Como não gosto de Lisboa, vou viver num lugar a 40 km da capital, Rabida, por questão de tranquilidade. Só consigo escrever em casa, preciso de uma certa perspectiva, de um isolamento. Enquanto escritor, o homem é um animal solitário.”
Quando começou a escrever O Delfim, quanto tempo levou?
“Comecei a escrever em 1964, ele foi publicado em 1968. Houve muitos intervalos nesses quatro anos: escrevi versões do livro, antes da definitva.”
Na sua opinião, o que é O Delfim?
“Aparentemente é uma história de exemplo e castigo, uma história policial de um”marialva” que se envolve num crime. Mas, além das aparências, é história de um tempo abstrato, mais de clima, cheiro, uma insônia onde estão todas as transfigurações.”
Gafeira, onde se passa O Delfim, é real?
“Não, é um território mítico que formei com a palavra”gafe” mais o sufixo “eira”, que significa conjunto, população. É também para orientar erradamento o leitor, para ele ficar sem saber se houve ou não o crime, toda a história. Um caso curioso e propósito: tenho um artigo publicado no jornal Notícias do Porto, com um professor falando sobre o Abade, a monografia do Abade, corrigindo-me, dizendo que fiz citações erradas, etc. Mas tudo isso, eu que inventei, são livros irreais.”
Que é “marialva”?
“Marialva é uma figura sociológica portuguesa, que representa a idade média contemporânea, no campo político, psicológico, econômico e até literário. Seria uma espécie de símbolo do”machismo” português, que estudei em aspectos como o do contrato de casamento, que é um contrato de propriedade, como o da autoridade, do paternalismo em relação à mulher. Em A Cartilha do Marialva fiz uma invocação do passado para afirmar o presente; a partir da revisão de várias perspectivas, vi o comportamento de hoje, deste tempo e desta hora, explicando as motivações desse comportamento.”
Acha que O Delfim pode ajudar na penetração da literatura portuguesa no Brasil?
“Espero que sim, estou convencido que sim. Com poucas exceções, a literatura portuguesa é conhecida no Brasil em período bastante histórico: há uma série de preconceitos, especialmente em relação ao linguajar, que disfarçam a verdadeira realidade portuguesa. Há uma ideia deformada da literatura portuguesa contemporânea. Pensa-se que é retórica, empolada, universitária, como se o país estivesse parado. Um país aberto, que tem gente como Vieira da Silva em pintura, marchands inernacionais, um Fernando Lopes Graça na música, não é um país de pobres coitados. A coisa mais importante é o Brasil precisar se atualizar em relação a Portugal. Um país novo, cheio de vida e potencial, também tem de estar atualizado com relação a Portugal. Os portugueses estão muito mais atualizados com relação ao Brasil. Gostaria que houvesse um entendimento mais autêntico e profundo do que o que há atualmente.”
Está escrevendo algum livro?
“Há cinco meses não escrevo nada, mas meu próximo romance está em elaboração.”
Já teve alguma obra filmada?
“Vendi os direitos de O Anjo Ancorado, mas o filme não foi feito. Gostaria de ver minhas obras filmadas exclusivamente por causa do dinheiro. Acharia melhor trabalhar com um realizador, como Antonioni, Jean-Luc Godard ou Elio Petri.”
XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
O Brasil ainda não descobriu este maravilhoso português
Há uma surpresa imensa esperando por todos os que enterraram a literatura portuguesa junto com o caixão funerário de Eça de Queirós. Ah, que descoberta fenomenal aguarda todos os que achavam que o sol literário de Lisboa emitia seus últimos raios fortes com os romances e contos de Miguel Torga, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Joaquim Paço D’Arcos!
País voltado de costas para as suas raízes, o Brasil desconhece um grande escritor português contemporâneo, palpavelmente vivo - e extraordinário: José Cardoso Pires.
Depois que a Itália e a França celebraram seus livros, chega até nós, por esse desvio típico, uma de suas criações mais perfeitas e inquietantes, O Delfim (Editora Civilização Brasileira).
José Cardoso Pires aos 45 anos de idade e apenas com este romance, demonstra está a par das mais revolucionárias técnicas do estilo atual propostas por Alain Robbe-Grillet, por Cortázar, por Nabokov. Focaliza um Portugal de hoje, invadido por motocicletas alemãs em aldeias de arquitetura mourisca, por juke-boxes importadas por emigrantes que foram para a França e para os Estados Unidos - um país do passado que medita sua história, aprofunda a análise filosófica da condição humana na latitude social e cultural de Portugal do século XX.
São demasiado ricos os motivos que José Cardoso Pires aborda em seu magistral romance para serem sintetizados numa resenha forçosamente breve. Complexo como Camus, irônico como Günter Grass, transcendental como (Ítalo) Calvino, José Cardoso Pires ultrapassa as dimensões fisicas de Portugal para assumir sua posição legítima de grande escritor europeu deste final de século. Mas para nós sua grandeza maior está em ter construído, com o idioma português estas 183 páginas angustiadas, profundas líricas, melancólicas, de inigualável mestria vocabular.
Para citar só um aspecto - dos muitos - que formam o mosaico colorido e esplêndido de O Delfim: o tema do Tempo, quando uma lagartixa se espoja ao sol sobre uma antiquíssima inscrição latina na cidade de Gafeira, fundada pelos romanos. Desafio qualquer comparação com qualquer autor vivo - Manuel Puig, Alejo Carpentier, Juan Rulfo, Jorge Luís Borges, Carlo Emílio Gadda - capaz de superar a perfeição clássica deste trecho:
“O terreiro estava como se imagina, deserto. Argolas inúteis, sol a pino; as mesmas tabernas sonolentas, os mesmos cartazes de pólvora e de adubo do ano passado e, ao fundo de certa loja, o Regedor, de chapéu na cabeça, a guardar o balcão. Para lá da porta, a muralha continuava com a sua lenda e o seu orgulho na outra extremidade do largo. Como se disesse:”Quod scripsi, scripsi” - e fosse um imponente eco romano. O que está escrito em mim, está escrito há mais de vinte séculos e há-de perdurar. Quer os vossos delfins estejam mortos ou vivos; quer o fumo dos vossos tractores me venha turvar o rosto; quer os eruditos da região, abades e outros que tais, me lancem as excomunhões que me lançarem - eu, muralha, posso bem com as arrogâncias, e cá estou. “Quod scripsi, scripsi”. Só acato as razões da Madre-Natureza, as ervas que me agasalham e a companhia dos bichos silenciosos. Esta lagartixa, por exemplo.
E era verdade. Espalmada na inscrição imperial, havia uma lagartixa. Parda, imóvel, parecia um estilhaço de pedra sobre outra pedra maior e mais antiga, mas, como todas as lagartixas, um estilhaço sensível e vivaz debaixo daquele sono aparente. Pensei: o tempo, o nosso tempo amesquinhado.
Ficamos frente a frente, à luz do meio-dia. Eu, senhor, escritor da comarca de Portugal, e portanto animal tolerado, à margem, e ela, ser humilde, português, que habita ruínas de História; que cumpre uma existência entre pedras e sol, e se resigna (é espantoso); que é, ela própria, um fragmento de pedras gerado na pedra - um resto final, uma sobra; que se alimenta de nada (de quê) e é rápida no despertar, e sagaz, e ladina, embora votada ao isolamento de uma memória do império; que não tem voz, ou a perdeu, ou não se ouve… Lagartixa, meu brasão do tempo. Posso encontrá-la amanhã no mesmo sítio (talvez lá esteja ainda) ou nas traves do solar da lagoa, ou num buraco da adega que já foi o bodegón das minhas ceias no ano passado com o engenheiro e nunca mais o será. Posso, simbolicamente, supô-la no alto do portal, imposta sobre a legenda Ad Usum Delphini, porque em todos esses lugares ela estará perfeita na sua modéstia abstrata como a imagem de um tempo ou de uma idade em que os anos escorrem alheios à mão do homem e em que a erva cresce e morre e se diz: Afinal, também temos Primavera”.
Misto de nouveau-roman - em que o autor se coloca como observador, segundo os ditames da école du regard atual parisiense -; de irônico romance policial de mistério sobre dois crimes; de apreensão profunda das repercussões humanas da dependência política de um país com relação a outros; romance social sem panfletarismo esquerdizante; criação estilística do mais alto nível existente desde que a lingua portuguesa separou-se do castelhano na era medieval, O Delfim é o mais importante, o mais angustiante documento literário que nos vem de Portugal desde A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras ou do existencialismo niilista dos poemas de Fernando Pessoa.
Mesmo para um Brasil que conta com um Guimarães Rosa, um Carlos Drummond de Andrade - é o inverno da Descoberta de 1500: a constatação de que Portugal continua esplêndidamente vivo na área que foi sempre a de seu maior triunfo: a palavra. País pequeno, pobre, espoliado, sua grandeza - como a da Grécia Antiga e dos judeus que criaram a Bíblia - é toda interior e perene: está cifrada nos grandes poetas, romancistas e contistas desde o século XII até hoje.
Fora de quaisquer enfoques políticos, de quaisquer julgamentos apriorísticos, acima de qualquer conceito de ditadura, de totalitarismo como sufocador da liberdade criadora, José Cardoso Pires - não hesito em afirmar - é o equivalente, em qualidade e grandeza de concepção à Solzjenitsyn no outro extremo da escala política.
O leitor brasileiro tem um encontro importante marcado com uma das inteligências sensíveis mais incisivas da Europa - um encontro na nossa própria língua, sem o inferno das traduções deturpadoras, sem a adaptação a ambiente e valores franceses, ingleses, italianos ou alemães.
Enquanto outras nações instauram um Renascimento científico no espaço - atingindo a Lua, desvendando novas galáxias -, o pequenino Portugal ancestral desce ao interior da efêmera dimensão humana: a passagem do homem pelo tempo, pelo seu país, pela sua época. E revela uma grandeza sinfônica, madura, perfeita como este Delfim, de leitura não só indispensável e urgente: de leitura oxigenante para o intelecto, o coração e o espírito embotados pela poluição de pseudo-livros e pseudo-artes.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Eis um grande escritor},
booktitle = {Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns
escritores portugueses},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {6},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-6/15-jose-cardoso-pires/00-eis-um-grande-escritor.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1971-07-27. Aguardando revisão.}
}