João Cabral rega com poesia a aridez de nossa literatura

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1975-12-06. Aguardando revisão.

Parabéns, Leitor. 1975 guardou para o final o melhor: o magnífico poeta pernambucano João Cabral da Melo Neto ressurge, em seu último livro - Museu de Tudo (Editora José Olympio, 96 páginas de ouro finíssimo, Cr$ 25,00 mas na realidade sem preço) com o renovado vigor dos cinquenta anos, com a amplificação de seus temas, com uma deslumbrante dilatação de seu restrito território lírico, voluntariamente contido, concentrado, conciso e perene.

Em entrevista recente, o soberbo autor de Morte e Vida Severina com oque abandonaria a responsabilidade pela sua poesia, achando que depois dos 45 anos de idade sua obra estava completa.

Nada mais incorreto, com perdão da impertinência Museu de Tudo de museu só tem o título e de tudo só cata o melhor, escolhido severamente.

Para este ano esturricado pela seca que queima a cultura e a inteligência brasileiras, com obras abaixo do medíocre, com exceção de uma escassa meia dúzia, este livro é como o Nascimento renovado no Natal de uma esperança maior, só que situada no plano não da religião em si mas da civilização. Ou seriam sinônimos, em termos de História interpretada por Arnold Toynbee? Seja como for, para crentes e ateus aqui está uma coletânea de poemas que tem o mérito insólito de se desmentir a cada página. Não é “caixão de lixo” nem “arquivo”, nem “depósito”, como o poeta modestamente a aquilata no poema que abre o volume e lhe dá o título.

Não há ecologia mental capaz de observar como “lixo” poemas tão originais, como o do rei de Aragão que se fez enterrar numa banheira como sepultura. Como os poemas da legítima altivez pernambucana contra o Sul que vê “do alto da mandância”, sem perceber que naquele Estado do Nordeste só o mapa é horizontal.

As imagens das regiões da África Negra ou árabe assoladas pela seca, “Impressões da Mauritânia”, extravasam de qualquer arquivo que quiser contê-las. Nem há depósito poético com capacidade para guardar, na sombra, o poema sobre o futebol de Ademir da Guia, de uma força e uma originalidade expressiva só igualadas pela profundidade filosófica do poema dedicado a Manuel Bandeira e que se refere a “certo sotaque do ser” pernambucano que ficou no poeta recifense embora falasse “num carioca federativo”.

É um João Cabral de Melo combativo, que afirma a superioridade do fazer sobre o não fazer, embora ambos sejam possivelmente inúteis. Que recorre ao grande poeta espanhol Quevedo para atacar a poesia sem engenho e que se quer “mais que arte”. Que combate eficazmente os poetelhos que pululam pelo Brasil afora que nada têm a dizer.

Combativo socialmente também, ele continua sendo o maio poeta social brasileiro vivo, na celebração admirável de Frei Caneca, mártir da liberdade cujo nome no Rio de Janeiro acabou por designar um famoso presídio. Lúcido quando em quatro linhas devasta a morna Suiça de imoral submissão argentária em “Saudades de Berna”. Reivindicativo quando apresentanto o escultor Franz Weissmann, ironiza os informalistas da arte ao passo que o escultor austríaco-carioca redimensiona o espaço, tornando-o “portanto justo”.

Enraizado na riqueza do idioma quando utiliza seus vocábulos clássicos, empoeirados pelo desuso da ignorância da maioria dos que manejam essa língua como se ela possuísse apenas meio milhar de palavras, João Cabral de Melo Neto ressuscita e dá cores e frescor novos a explosões expressivas como “esgalhamento”, “pubescente”, “cautérios”, “treno”, “travejamento”. É toda uma orquestração sonora surpreendente em um poeta predominantemente visual mas que se torna compreensível pela composição arquitetônica de seus textos poéticos.

Revelas mais seria ir além da medida. O leitor ganhou seu presente de Natal antes do dia 25 de dezembro. Como em seu Morte e Vida Severina, com o Menino e com a poesia desta qualidade perene fundem-se as datas: é a Páscoa precoce, é a Ressureição de fim de ano com a presença fascinante destes poemas, ou seja, a quitessência da própria cultura brasileira no que ela tem de mais imperecível, sensível e universal.

Este livro comprova a inata insubserviência de Pernambuco, que como Minas Gerais não mede sua superioridade pela quantidade de automóveis, de “progresso” ou poluição. Mais sutil e por isso mais profunda e mais inabalável, ela é feita de uma matéria predominantemente menos material: a massa cinzenta e a sensibilidade, impermeáveis à ferrugem.

Por tudo isso, obrigado, Pernambuco.

Algumas peças do Museu de Tudo

“Viagem ao Sahel”

“O sol com suas lâminas,

sua luz matemática,

não cora com bisturi limpo,

faca de ponta, bala exata.

Quando opera a paisagem

opera a machadadas,

e com algum machado cego,

rombudo, de pedra lascada.

A água que tem os dedos líquidos

esquece aqui as finas maneiras:

como aqui vem tão raro,

vem demais e às carreiras.

Deixa por onde opera e passa,

apesar de suas moles sedas,

uma terra estripada

de estupradas canteiras.

Como entender que o vento

que não carrega lixas

possa desse jeito escavar

a chã em que opera cada dia?

Suas mãos, ou o que trazem,

não estão para a vista,

mas fundo esvaziam a paisagem

com suas ferramentas vazias.

Como o tempo, ainda mais sem corpo,

pode trabalhar suas verrumas?

E se seu corpo é nada,

onde é que as dissimula?

Ora, como mais que o vento é oco

e sua carne é de nada, é nula,

não agride a paisagem:

é de dentro que atua.”

“O artista inconfessável”

“Fazer o que seja é inútil.

Não fazer nada é inútil.

Mas entre fazer e não fazer

mais vale o inútil do fazer.

Mas não, fazer para esquecer

que é inútil: nunca o esquecer.

Mas fazer o inútil sabendo

que ele é inútil, e bem sabendo

que é inútil e que seu sentido

não será sequer pressentido,

fazer: porque ele é mais difícil

do que não fazer, e dificil-

mente se poderá dizer

com mais desdém, ou então dizer

mais direto ao leitor Ninguém

que o feito o foi para ninguém.”

“Estátuas jacentes”

“1. Certas parecem dormir

de um sono empedernido

que gelasse seu sangue,

veias de arame rígido;

e que veias de ferro

lhe fossem interno cárcere,

aprisionando o corpo

entre enramadas grades.

  1. Outras como que dormem

do sono empedernido

mas não interno, externo,

ou de um sono vestido;

estão como vestidas

de sua morte, emgomadas,

dentro dos seus vestidos

duros, emparedadas.”

“O número quatro”

“O número quatro feito coisa

ou a coisa pelo quatro quadrada,

seja espaço, quadrúpede, mesa,

está racioanal em suas patas;

está plantada, à margem e acima

de tudo o que tentar abalá-la,

imóvel ao vento, terremotos,

no mar maré ou no mar ressaca.

Só o tempo que ama o ímpar instável

pode contra essa coisa ao passá-la:

mas a roda, criatura do tempo,

é uma coisa em quatro, desgastada.”

“Ademir da Guia”

“Ademir impõe seu jogo

o ritmo de chumbo (e o peso),

da lesma, da câmara lenta,

do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando

no adversário, grosso, de dentro,

impondo-lhe o que ele deseja,

mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,

de água doente de alagados,

entorpecentes e então atando

o mais irrequieto adversário.”

“Túmulo de Jaime II”

“Jaime, rei de Aragão,

se fez estranha tumba:

da banheira de pórfiro

de uma sultana turca.

Ou pensava que a morte

é mar de espinhos, puas,

e uma barca de pedra

viaja-o mais segura,

ou que a morte é um banho

morno, deliquescente,

e na tumba banheira

se vai mais sensualmente.”

“Pernambuco no mapa”

“Só vai na horizontal

nos mapas em que o mutilaram;

em tudo é vertical:

dos sobrados e bueiros da Mata

até o mandacaru

que dá a vitalícia banana

a todos que do Sul

olham-no do alto da mandância.

Aquela horizontal

é enganosa, está só nos mapas;

não diz de sua história

e muito menos de sua casta.”

“Catecismo de Berceo”

“1. Fazer com que a palavra leve

pese como a coisa que diga,

para o que isolá-la de entre

o folhudo em que se perdia.

  1. Fazer com que a palavra frouxa

ao corpo de sua coisa adira;

fundi-la em coisa, espessa, sólida,

capaz de chocar com a contígua.

  1. Não deixar que saliente fale:

sim, obrigá-la à disciplina

de proferir a fala anônima,

comum a todas de uma linha.

  1. Nem deixar que a palavra flua

como o rio que cresce sempre:

canalizar a água sem fim

noutras paralelas, latente.”

“O pernambucano Manuel Bandeira”

“Recifense criado no Rio,

não pôde lavar-se um resíduo:

não o de sotaque, pois falava

num carioca federativo.

Mas certo sotaque do ser,

acre mas não espinhadiço,

que não pôde desaprender

nem com sulistas nem no exílio.”

“O Museu do Tudo”

“Este museu de tudo é museu

como qualquer outro reunido;

como museu, tanto pode ser

caixão de lixo ou arquivo.

Assim, não chega ao vertebrado

que deve estranhar qualquer livro;

é depósito do que aí está,

se fez sem risca ou risco.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1975) 2022. “João Cabral rega com poesia a aridez de nossa literatura .” In Poetas brasileiros contemporâneos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 4. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.