Um poeta místico na era atômica
Para inaugurar “Pelos Caminhos da Cultura” pensamos que faríamos bem se começássemos com a divulgação de uma expressão literária em nosso próprio idioma. Ao mesmo tempo, é nosso propósito retirar esse extraordinário Poeta da penumbra de esquecimento a que ele está relegado - injustamente - entre nós. Daí dedicarmos a nossa primeira atenção ao meio poeta místico da nossa época, como ele é considerado por vários críticos suiços e alemães, a mais alta inspiração mística de Portugal, desde Frei Agostinho da Cruz, o eremita da Arrábida. Mais tarde voltaremos a analisar outros aspectos dessa rica e fascinante personalidade, atendo-nos hoje a considerações forçadamente lineares.
Já os primeiros versos dos Cantos Indecisos (publicados em 1921):
“De olhos no Além,
Ergui, um dia, às nuvens o meu canto”
Definem a atmosfera de melancolia e de espiritualidade que circundou a vida de Teixeira de Pascoais, o criador de novas dimensões artísticas e filosóficas no âmbito da língua portuguesa. Ele próprio tinha consciência dessa conquista de novas regiões expressivas, ao declarar: “O amor que dedico à minha obra não é somente amor paterno. Amo-a porque estou convencido de que ela deu ao espírito português alguma coisa que lhe faltava.” O movimento fundado por ele no Porto, no início deste século, foi denominado “Saudosismo” e preconizava alterações radicais na estrutura social e política de seu país, alterações baseadas no reconhecimento de que a Saudade é a característica mais intrinsecamente portuguesa e se encontra presente em todas as manifestações da raça (“A Arte de ser Português”). Pouco depois, porém Pascoais isolou-se do mundo. Como local de seu exílio voluntário, ele escolheu a aldeia de Amarante, no norte de Portugal, às margens do rio Tâmega e emoldurada pelos maciços imponentes do Marão.
Este retraimento, que o protege da brutalidade do convívio humano, criam um diálogo, uma comunhão permanente entre o poeta e a natureza. As suas leituras, a sua solidão, a sua meditação contemplativa impregnam-se cada vez mais de um acentuado caráter panteísta. Nas suas próprias palavras: “Para quem vive perto de altas montanhas, palavras como Deus, Eternidade, Infinito não soam a quimeras metafísicas, mas ganham em profundeza e significado e tornam-se tão reais como as próprias montanhas.” É difícil distinguir, na sua obra, o místico do poeta, já que os termos lhe parecem idênticos: “A poesia que não for mística, brilha, mas não é de ouro.” Para Pascoais, como para Stefan George, Platão e Jacques Maritain, o poeta é um profeta, um iluminado, iniciado nos mistérios originais em que Arte e Religiosidade, mensagem poética e sacerdócio se confundem. Como ressalta Hatzfeld em seus Estudios Literarios sobre la Mística Española: “… el místico y el poeta tienem experiencias similares… uno y otro… recibem uma iluminación que les hace aprehender intuitivamente, no analiticamente una realidad oculta en el hombre corriente… El poeta místico tiene la única e doble función de aprehender a Dios y de someterse a la incitación y capacidad de trasladar esta aprehensión a una obra de arte, es decir, en este caso particular: a una poesia mística.” Na sua fase artística final, no seu magnífico “São Jerônimo”, Pascoais exclama: “São os últimos místicos, os mais distantes de tudo, os únicos solitários verdadeiros, os que sentem absolutamente a solidão, que, por fim, já não é deserto nem montanha, mas um perfeito estado espiritual, a solidão interiorizada em nós, para que só Deus apareça nesse infinito espaço dolorido.” Essa contemplação metafísica da natureza e da vida encontra sua expressão cifrada na poesia, esse “estado intermediário” entre o Homem e a Divindade. O Poeta é predestinado a concretizar a transformação do ser humano em Deus, isto é: a regressar à essência original de que emanou toda a criação: “O Poeta é um ser enviado. Ele vem ao mundo afirmar as superiores Potestades que misteriosamente presidem ao drama da vida e lhe dão um sobrenatural sentido. Ele vem sublimar o vulgar, revelar o grande que as pequenas coisas escondem… Só ele deu uma alma divina ao corpo da Natura… Poeta quer dizer Profeta.” Fray Luís de León, um dos mais excelsos poetas espanhóis, confirma, quase com as mesmas palavras, essa convicção: “La poesia… sin duda la inspiró Dios en los ánimos de los hombres para con el movimiento y espiritu della levantarlos al ciclo, de donde ella procede, porque poesia no es si no una comunicación del aliento celestial y divino, y asi, en los profetas casi todos, los que fueran movidos verdaderamente por Dios… el mismo espiritu que los despertava y levantava a ver lo que los otros hombres no veian…” (Los Nombres de Cristo). O Poeta,”esse ser interior a tudo”, penetra a verdadeira e oculta essência das coisas, ele “compreende” uma pedra, uma árvore, um riacho. Daí constituirem uma constante da temática de Pascoais as pequenas criaturas, o mundo miniaturesco das flores do campo, dos “bichinhos”, das coisas inanimadas e anônimas:
“Coisas fraternas, solitárias coisas…
Pobres bichinhos…
Para que foi, Senhor, que ao mundo vim,
Se eu nasci para amar unicamente
A mais sequinha flor do meu jardim?
Minha boa janela, abandonada e triste…”
(versos de vários poemas)
Pois tudo é um fragmento do infinito. As plantas, as pedras representam fases anteriores à fase animal e à fase humana:
“E lembro-me do tempo que fui névoa e terra…
O homem é o universo consciente: pelos
Seus lábios fala a pedra e o nevoeiro…
E tomada de assombro, quantas vezes uma pedra me fala:
Ó meu irmão, tu lembras-te de mim?…
Quando era esse teu corpo humano isto que sou,
Esta aspereza estéril, bruta e fera?…”
(idem)
São Francisco de Assis, segundo testemunha o seu mais caro discípulo, Frei Leo, reagia de maneira semelhante: “A contemplação da origem primeira de todas as coisas fazia transbordar a sua grandeza interior: por isso ele chamava todos os seres, até os mais insignificantes, de seus irmãos e irmãs, recordando-se da origem comum que com eles compartia”:
“Louvado sejas, meu Senhor…
Pela irmã lua e as estrelas…
Pelo irmão vento e pelo ar…
Pela irmã água… pelo irmão fogo…”
Esta penetração intuitiva da natureza permite ao poeta apreender o sentido da vida e da Criação. A inspiração, como expressão imediata e dinâmica da sua intuição, o anima a recriar o universo, aproximando o Homem, através do poeta, de Deus: “Então o poeta é o ser, quase divino, que faz com palavras o que Deus fez com água, terra e sol.” O Poeta, como guardião da Verdade absoluta, a Verdade inicial e final, recorda ao Homem a sua origem divina: “E por isso, a ideia do infinito, ou melhor: o sentimento, é, em todas as criaturas, como vaga lembrança universal, acordada nos poetas, esquecida, nos outros, que são poetas esquecidos…” Em sua esplêndida exegese da mensagem poética e filosófica de Pascoais, O Poeta, essa Ave Metafísica, Santana Dionísio ressalta a importância de que se reveste para o poeta, a Religião, a par da Poesia, já que ela não é somente uma revelação pessoal e intuitiva, mas também um “fenômeno da memória” (“a crença é memória”), pois no princípio o Homem existia integrado na própria essência divina. A sua identificação entre a Criatura e o Criador anula a própria morte: “É que a nossa pessoa íntima não nasce nem morre… porque é idêntica a de Deus.”
Como o amor, a arte, a dor, a paisagem, até mesmo a Saudade simboliza, para Pascoais, um aspecto espiritual da verdade total e transcendente, latente em todas as coisas: “Só a Saudade cria a imagem espiritual e eterna das coisas. Nós somos verdadeiramente na nossa imagem evocada, que é o nosso ser transcendente, emanado sob a influição… idealizante da Saudade… Os grandes acontecimentos (e os pequenos), enquanto atuais, são infecundos. É preciso que o tempo os converta em lembrança…” É surpreendente a afinidade dessa concepção com a théorie de l’absence de Mallarmé e com parte da temática de Proust, na sua evocação, pela memória, do tempo passado. Em seu ensaio “La Poésie de Mallarmé”, Thibaudet esclarece: “Ele (Mallarmé) vê na ausência a soma das presenças ideais, evocadas, pensadas, graças ao próprio fato de que exteriormente elas não existem.” O “sentimento saudoso”, que Pascoais crê ter sido anunciado por Camões na literatura pátria, identifica o Homem com o Universo, porque a Saudade, “composta de Lembrança e de Esperança” (isto é: lembrança da origem divina e esperança da reunião final com Deus), une o homem ao passado e ao futuro. O seu poema “Hora Final”, com que Pascoais encerra o volume Terra Proibida, expressa esse mesmo anseio de reunião - tema constante da mística universal - uma vez desfeita “a ilusão das formas mentirosas”: a vida terrena, o sofrimento, a angústia.
“… Quem é, quem é, meu Deus, que ampalidece
E se cobre de cinzas, no meu ser?
Alma que se despreende numa prece…
Como seria bom assim morrer…
Morrer, como a paisagem desfalece…
… Morrer, cair nos braços da ternura,
Morrer, fugir, enfim, à morte escura,
Morrer, enfim, na eterna paz de Deus!”
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Um poeta místico na era atômica},
booktitle = {Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns
escritores portugueses},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {6},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-6/10-teixeira-de-pascoais/00-um-poeta-mistico-na-era-atomica.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Diário de Notícias, 1959-10-11. Aguardando revisão.}
}