Dalton Trevisan. No 20º livro, um texto arejado. E a competência de sempre
É ridículo pretender, apressadamente, como muitos, que Dalton Trevisan conta sempre as mesmas histórias, exponha sempre os mesmos personagens.
Cada livro de um dos supremos contistas brasileiros é uma variação de um tema: a infidelidade, o sadismo, o estoicismo, o grotesco, o kitsch e os problemas banais que atormentam seu painel curitibano da classe média inferior brasileira. Presas num mundo eternamente repetitivo de luxúria com senso de culpa, de frases feitas como ideias recebidas e nunca questionadas do tipo “nunca deixei faltar nada em casa”, “se passar por mim, não olhe”, “sempre fui mulher direita”, seus Joões e Marias nunca conseguem sair do círculo vicioso em que vivem. Incapazes de um pensamento novo que as faça sair do imobilismo, da rigidez em que concordaram em ficar, as pessoas mastigam uma mesmice pasmacenta: quem sair do rame-rame de todos os dias será apenas pela via do suicídio, do assassínio, do feroz e muitas vezes esquizofrênico isolamento dos lugares-comuns e dos julgamentos preestabelecidos. A fantasia, quase sem exceção, corre por conta das mulheres. Dalton Trevisan tem como que uma concepção equivalente à do diretor sueco Ingmar Bergman: a noção de que a mulher é, na esmagadora maioria das vezes, um ser superior ao homem. Ela inova mais, ela ousa mais, expõe-se mais a riscos decisivos. Nada ilustra melhor essa disparidade entre homem e mulher do que a série de diálogos em que, parece, ambos falam sozinhos, dois monólogos simultâneos. O homem tem uma punica obsessão: o sexo. Armando-se de chicote e obrigando a companheira a ficar nua, mas de botas, ele frequentemente a contagia e seu sadismo torna sua vítima uma improvisada masoquista. Ou então a mulher, muito mais inteligente, arguta e perspicaz do que o homem, delira, desfiando suas fantasias românticas que quase nunca coincidem com a alucinação sexual permanente do seu interlocutor, obcecado por posições lascivas, por humilhações da mulher e manias de “macho” onipotente.
Em seu 20º livro, Meu Querido Assassino, Editora Record, 121 páginas, o vampiro de Curitiba areja seu texto, graças à soltura permitida pela Censura e se embrenha por sinais característicos do Brasil de hoje. As palavras inglesas que importamos (muitas vezes sem necessidade) fazem parte do dia a dia desses desesperados: lanchonete, xorte e outros termos concorrem com o código hipócrita dessa raia-miúda, apavorada com a aparência, mas vivendo uma vida dupla, dilacerada pela dissimulação. Essa relativa modernidade traz também a seus contos personagens que raramente surgiam em livros anteriores. Protótipo de todos, o médico casado, pai de vários filhos, que paga a uma mãe, que deixa as filhas no parquinho da praça enquanto o “atende”. Raríssimas vezes o sentido múltiplo da angústia, irrealização, violentação de si mesmo terá surgido junto com um humorismo que torne a cena tão pateticamente cômica. Instada a assumir funções nada ortodoxas, a prostituta-mãe-de-família-que-se-preza tenta utilizar um vibrador, diante do alarido femíneo de seu cliente, quando de repente o aparelho pifa, na história que dá o título ao livro: “Meu Querido Assassino”. Como é frequente no mundo de Dalton Trevisan, esse conto é a continuação de um diálogo ou de uma situação anterior revelados em vários capítulos ou segmentos isolados.
Parece-me também que as cenas de horror se intensificaram com o relato do velho que guardava as filhas para o incesto forçado, como se fossem membros do seu harém de tarado. Há uma nova, uma inesperada intensificação dos elementos apavorantes precedentes. “Bom, Belo e Garboso” enfoca uma suposta demência senil – os velhos e velhas ocupam um lugar destacado nesse carrossel que causa riso e pavor com seu aspecto de tragédia e comédia alternadas. Mas a anciã será realmente vítima das filhas? Ou as filhas torturam ou ambas as situações são paralelamente verdadeiras? Dalton Trevisan, como sempre, se permite deliciosas paródias literárias. Anteriormente, da Bíblia, de Homero, de Camões etc. Aqui, de Oscar Wilde, que numa frase famosa diante do tribunal londrino, fala do “amor que não ousa dizer seu nome”. Esse inferno em que estão mergulhados os seus protagonistas, no entanto, nada tem de teatralidade nem de refinamento. É o cotidiano que convive com o metafísico, é o vulgar que roça o transcendente, na desordem da própria vida.
Qualquer trecho, transcrito a esmo, reflete a perfeição concisa que distingue Dalton Trevisan da escola bombástico-retórica de tantos escritores menores brasileiros:
“Aperta mais uma vez a campainha. Do outro lado o João, aos urros e palavrões, se bate contra a fechadura. A muito custo abra a porta.
Já não consigo acertar a chave.
Furioso e exausto, o velho desaba no sofá. O triste pijama azul de bolinha, a braguilha sempre devassada.
- Meus parabéns. Está com boa cara.
Esquálida e cinérea – a doença que não ousa dizer seu nome. Posto que é mentira piedosa, João sorri esperançado. Murcho e ressequido, cuida que a dentadura não se solte.
- Ela está cada vez pior. Não aguento mais.
Inquieto, vigia o corredor.
Assalta na geladeira o meu creme de abacate. Deixa só a metade. Se me queixo, revira os olhos para o céu: Não fui eu. Que Deus me castigue.
Paciência, João, não deve…
Quem está aí?
Ei-la que chega, trôpega, mas faceira, se amparando na parece e nos móveis.
Você é bom, Tito. Diga ao João que não me torture. Ele judia de mim.
Sofre de velharia, essa aí…”
Se esse que é um dos maiores contistas de nosso tempo busca, como Guimarães Rosa, texto após texto, chegar a poucas linhas de narrativa, com seus onze haicais de agora toda uma história densa é reduzida a poucas palavras:
“A moça vaidosa apertou demais a cinta. Assim deste tamanhinho nasceu a criança. O que é pior, sem uma orelha.
Morreu de poucos meses, era um menino: lesão congênita. Os pais não quiseram ver o pobre anjo.
A avó ficou embalando o corpinho, envolto no lindo cobertor rosa. Logo improvisado o caixão no fundo do quintal.
Foi aninhá-lo no caixote forrado de papel crepom azul e branco. Só que o avô protestou:
- Com esse, não.
Olhou, surpresa.
- Ele é novo.
Obrigada a desmanchar o embrulho. E refazê-lo no velho cobertor cinza de soldado.”
Meu Querido Assassino é um ângulo ligeiramente novo dos contos precedentes. Em Cemitério dos Elefantes assinalava-se um dos marcos decisivos da literatura brasileira: a praça onde os bêbados e mendigos saídos de Esperando Godot, em exemplar curitibano, vinham dar, sabendo que a etapa mais próxima era a morte. Em O Pássaro de Cinco Asas a velha trancafiada num asilo pela filha única que quer que seu amante venha ocupar o lugar da mãe expulsa à força da casa, até o final em que, presa entre as lunáticas, a velha amansa, como solitária companheira, uma mosca varejeira. Em Morte na Praça o amor nunca correspondido de uma malcasada pelo marido brutamontes. Não há praticamente lacunas no maravilhoso acúmulo becktiano das situações humanas irremediáveis fotografadas por Dalton Trevisan. Cada conto é irrepetível na sua nuance, no seu tom musicalmente poético, apesar de sua aparência monstruosamente cruel.
Dalton Trevisan sobrepõe às ideologias o “medo de viver” que tantos de seus personagens exprimem, indiferentes à morte e que pulsa sob qualquer regime político, como quintessência da condição humana em si. Há uma grandeza majestosa naquilo que a futilidade contemporânea designa como a “grife” e que melhor se designaria com a marca, o sinete indelével de Dalton Trevisan. É a grandeza que temporariamente não podemos ver, tão conspurcada está a palavra por políticos inescrupulosos, se a expressão não for redundante: a grandeza do povo que ecoa nas letras de Adoniran Barbosa, nas músicas cantadas por Nelson Gonçalves. Sem dúvida: cafona, de mau gosto, risível. Mas, como o compositor e o cantor, Dalton Trevisan transmite ao leitor ou ao ouvinte um sentimento de tragédia inelutável e resignadamente aceita. Ninguém se atreveria ao risco de circunscrever essa grandeza a um sentimento cristão da vida. Sem dúvida, porém, a uma ainda que muda, solidariedade com tudo o que é humano.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2022,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Dalton Trevisan. No 20\textsuperscript{o} livro, um texto
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series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
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doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1983-11-26. Aguardando revisão.}
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