Um marco na literatura política do século

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1976/12/11. Aguardando revisão.

Trotsky.

Trotsky.

Trotsky.

Trotsky nas entrelinhas. Trotsky evocado sem ser nomeado. Trotsky entrevisto, fugidiamente, enquanto abre a porta para o seu assassino que conseguira se infiltrar em sua vida íntima, no México do seu exílio, o exílio do profeta lúcido que previra o terror e o sinistro massacre de milhares de vidas por Stalin na Rússia.

Nunca uma figura histórica se impôs, com a obsessão de um mito e de um herói, no centro, nas alusões, nos labirintos de um livro que é ao mesmo tempo um canto, uma ode, uma elegia trafica, uma advertência. O autor desta fascinante invocação arranca profundas reflexões políticas da sua própria consciência indignada e é seu coração sangrento e mutilado em suas esperanças que pulsa em cada linha deste apaixonante romance que mistura a ficção científica com fatos históricos.

A Segunda Morte de Ramón Mercader, de Jorge Semprun (Editora Paz e Terra, 351 páginas), triunfa onde a maioria dos autores ergue seu próprio epitáfio: na biografia romanceada. Henri Troyat sucumbiu grotescamente nas quase mil páginas que dedica, em vão, a denegrir a grandeza múltipla de Tosltoi. É a tentativa patética de uma lacraia querer rugir com um leão. André Maurois, membro da pegajosa Académie Française, só deixa boquiabertas, com suas “biografias” superficiais e de efeitos “literários”, as mocinhas e donas de casa que leem seus livros sobre a vida e a obra de Proust e Shelley, a cabeça recheada de “bobs” e as bocas mascando chicletes, no Meio-Oeste norte-americano, maior produtor mundial de Bíblias, milho e tédio.

Jorge Semprun, ao contrário. Como inúmeros outros marxistas convictos, Roger Garaudy, Sartre, Lucien Goldmann, Gramsci, tem a coragem de desafiar o ídolo corporificado em milhares de estátuas, de Budapeste e Pequim, de Havana à Criméia: a figura macabra de Stalin e seu eterno sorriso perfidamente benévolo. Nem Evtuchenko, com todo o ódio represado com que se lança contra a figura do ditador morto em sua Autobiografia Precoce nem Sartre com seu Fantasma de Stalin retardado de algumas décadas em sua denúncia dos “expurgos” stalinistas, nem mesmo Soljenitsyn com toda sua ira e fogo contra o encarcerador de milhões de pessoas têm a raiva fria e a argumentação política de Jorge Semprun. Espanhol exilado da Espanha desde os 15 anos, membro da Resistência francesa, prisioneiro do campo de concentração nazista de Buchenwald como marxista, Jorge Semprun escreve também roteiros de cinema, dois dos quais em associação com o diretor Alain Resnais e exibidos no Brasil: Stavisky e A Guerra Acabou, além do roteiro de A Confissão e Z, de Costa Gravas.

A evocação de Trotsky nada tem a ver com a biografia em 3 volumes que lhe dedicou Issac Deutscher. Maravilhosamente imbuído de um estilo dúctil, inovador, culto Semprun se espraia em descrições conscientemente barrocas, longas, detalhadas, à maneira de Proust.

Adota técnicas da École du Regard de Michel Butor e Alain Robbe-Grillet, do nouveau roman francês, para focalizar, como o olho de uma câmara cinematográfica, um quarto, uma fotografia, uma roupa, em páginas extensas, pormenorizadas.

A Segunda Morte de Ramón Mercader, portanto, é um pluri-romance. É uma história de espionagem e suspense, em que agentes da CIA e da KGB se defrontam, silêncios, na Holanda. É uma invenção irônica, pois Ramón Mercader, segundo as pesquisas históricas mais recentes, era o verdadeiro assassino de Trotsky, embora se ocultasse sob o nome de um belga obscuro, Jacques Monnard. É também o que os franceses chamam de um roman à clef, isto é, deixa pistas para que o leitor identifique as personagens apenas esboçadas. E é uma indagação abissal sobre a revolução traída. Jorge Semprun fala do marxismo pervertido pelos bolcheviques e por Stalin.

Fala com a cólera impaziguável de um mártir cristão ardendo numa fogueira da Inquisição por amor a Cristo e denunciando o obscurantismo de uma Igreja hipócrita e desvirtuada do Cristianismo original, para se tornar um poder político e temporal como o de qualquer Estado depois da Reforma. A sua é a ira de Lutero vendo as bulas papais sendo comerciadas por dinheiro, é a revolta de Savonarola contra o luxo e a pompa de prelados sibaritas, em Florença e em Roma.

Só que seu credo é um credo humanista na própria essência de um marxismo utópico, como o que Martin Buber descreveu magistralmente e que Dubcek falhou em criar: um comunismo de rosto humano, que permitisse a pluralidade democrática de partidos políticos e a liberdade da arte, da cultura, a inexistência da censura e a liberdade das pessoas de ir e vir de um país para outro.

Seu livro nada tem de maniqueísta, o que por si só já é um raro alívio para o leitor nauseado de tantos livros doutrinários da esquerda ou da direita, ávidos de propagar o Novo Evangelho do neocapitalismo ou do marxismo inquestionável. Mais rarefeita ainda é sua percepção, aguçada como uma lâmina cortante, da independência de uma obra de arte com relação às circunstâncias sociais em que foi criada. Diante de um quadro de Vermeer, exorta um velho comunista, agente da KGB e desiludido com o rumo que a Revolução tivera com Stalin, Kruschev e Brezhnev:

“Não seja pedante, penetre além da estrutura ideológica, histórica do quadro. Mergulhe na transparência inesgotável desse universo mínimo, na alegria que proporciona esse acordo formal e que é da essência universal, entre uma matéria e uma luz, entre a materialidade do mundo e a sua visão, quase abstrata, de tão depurada que é”.

Enredam-se propositalmente os fios dessa trama que prende o leitor sem fôlego: o jovem espanhol que vivera exilado na Rússia depois que seu pai republicano fora fuzilado pelos franquistas, aquele enigmático Ramón Mercader era um agente russo que queria passar para o lado ocidental? Ele era realmente um segundo Ramón Mercader ou seria, ao contrário, um comunista judeu-soviético, Ievgueni Davidovitch Guinsburg, cujo pai também fora fuzilado, mas por ordem de Stalin, dando vivas à Revolução enquanto morria trucidado?

Diante da tela de Vermeer, que Proust evoca longamente em seu romance A Busca do Tempo Perdido, marcam encontro o segundo Ramón Mercader (um russo judeu de aparência morena do sul da Espanha?), o velho comunista desiludido que só pensa em sua aposentadoria da Polícia Secreta do Estado, a KGB, e os agentes da CIA, com fisionomias de cosmonautas bem comportados, só alguns com aspecto humano, e um pedante casal francês burguês, ele incapaz de ler Proust por considera-lo maçante e ela, pernóstica “intelectual” que coloca o filho de dez anos diante da tela para que ele absorva “cultura” desde cedo, dizendo-lhe: “Olhe bem, Philippe, Proust disse que este era o quadro mais belo do mundo”. O que gera uma fútil altercação com o marido ávido por contradizer: “Não, quem disse foi Malraux”.

Há um diretor norte-americano que, convidado a depor pela polícia holandesa sobre o misterioso Ramón Mercader que viajara no mesmo avião que ele e estava hospedado no quarto ao lado no mesmo hotel, confessa que não olhara bem para seu vizinho, pois estava absorvido em uma “leitura apaixonante”, a do Profeta Banido, um dos volumes da biografia de Trotsky que lhe servia de base para a filmagem da vida do revolucionário morto em 1940 no México, possivelmente por um fanático a soldo de Stalin.

Jorgem Semprun com este romance-tributo cria a sua obra-prima, justamente recebida com o entusiasmo unânime da crítica francesa quando publicada em Paris em 1969. Na sua química refinada de erudição cultural, política, literária, histórica, ele exige do leitor conhecimentos se não tão aguçados, pelo menos uma busca enriquecedora de definições em Enciclopédias, mas sem pedantismo, sem a jactância oca de uma superioridade cultural a serviço de uma inteligência privilegiada. Daí resulta um singular equilíbrio entre a frieza científica do julgamento político e intelectual do franquismo e do stalinismo, fenômenos que se identificam, afinal, e a eclosão passional do ódio, a emoção vulcânica que lateja sob o cérebro glacialmente analítico. Daí brotam páginas inesquecíveis como esta:

“... aqueles homens arrastaram José Maria Mercader até os automóveis, que partiram de novo em arrancada, no meio dos gritos e do ruído estridente das buzinas, para o cercado do velho cemitério, e a noite já havia caído, então eles acenderam os faróis dos automóveis e, à luz dos faróis, colado ao muro – como uma testemunha, anos mais tarde, ousara contar a Adela Mercader – seu pai havia portanto levantado o punho na saudação da Frente Popular, ele, um cristão, ele, um burguês, que escolhera os pobres nessa guerra entre os pobres e os ricos, havia portanto levantado o punho, gritara alguma coisa que o barulho da descarga tronou inaudível, levantara o punho para não estar sozinho nesse momento derradeiro, para reencontrar, nem que fosse por uma fração de segundo, no momento de morrer, a cólera e a alegria, a força e a esperança na saudação dos pobres que iam morrer, às centenas, aos milhares, durante esses anos, como morriam já há um século, levantara o punho à luz dos faróis, gritando qualquer coisa, para não ficar sozinho, para enraizar-se definitivamente nesse exército de cadáveres invencíveis, no surdo exército de operários e camponeses que iam morrer, levantara o punho, ele, o advogado católico para estar entre os seus, com os seus, no momento de morrer, com aqueles que incendiavam as igrejas, raivosamente, desesperadamente, alegremente levantara o punho à luz dos faróis, talvez sob os insultos ou os sarcasmos, dos jovens da sua classe, do seu mundo, mas havia escolhido morrer com uma outra classe, com um outro mundo, com o sombrio, imenso exército de cadáveres que povoariam de gritos e de sangue, de punhos levantados, as noites de Espanha por mais uma década inteira, e você achava agora as duas lápides, lado a lado, estiradas juntas no versor da relva do grande sono, você as olhava à luz de setembro...”

A mesma sanha monstruosa de destruição do inimigo indefeso se reflete na evocação lúgubre de Stalin:

“... Assim, antes do interrogatório, quando pensava que perguntas absurdas, que acusações malucas vão ser feitas hoje, quando pensava quantas horas ia ficar sob a luz direta dos projetores; mas também depois do interrogatório, quando voltava quebrado, tendo por único ponto de apoio, como única esperança insensata, a ideia de que tudo aquilo devia ser um erro ou talvez um monstruoso mal entendido, que minha inflexibilidade iria frustrar, pois eu era um comunista, conheciam minha vida, a verdade acabaria forçosamente aparecendo; assim, tanto na ida como na volta, dos interrogatórios, impassível, com um sorriso imperceptível, mas certamente benevolente, a imagem de Stalin vos contempla. Sempre, todos os dias, durante semanas, meses, tanto na ida quanto na volta dos interrogatórios cruzava com o olhar de Stalin, severo mas paternal, agudo mas compreensivo – aquele mesmo olhar que tinha quando cortava rosas sob o sol pálido e o céu azul daquele filme, que era exatamente sobre a queda de Berlim – e o olhar de Stalin, do alto da imensa imagem fotográfica pendurada na parede da sala subterrânea, aquele olhar era a garantia de uma verdade latente, que não poderia deixar de aparecer... Os anos tinham passado – quantos? Fora em 1949 – as coisas mais imprevisíveis tinham acontecido, mas a fotografia de Stalin continua no mesmo lugar, na grande sala retangular onde terminam todos os corredores daquele labirinto subterrâneo. É ainda lá que os serviços de segurança interrogam os suspeitos e Stalin continua lá, contemplando os guardas e os detidos com aquele mesmo olhar implacável e benevolente... (Mas seu olhar não era benevolente, dizia Hauptmann; era sinistro. Aquele olhar sorrateiro e amarelo, por sobre o uniforme rutilante do generalíssimo, era sinistro...) Como se, nas profundezas daquele universo fechado dos serviços se segurança, escondido sob a cidade morna e barulhenta de Berlim, o olhar de Stalin, inalterável, só estivesse para fazer com que todos os suspeitos atuais e futuros compreendessem bem a sobrevivência de um sistema de valores opacos e inacessíveis; como se Stalin estivesse apenas aparentemente morto, e, além disso, por toda parte, prosseguindo ali, na sonoridade multiplicada e enlouquecedora dos corredores, e das celas de cimento áspero, uma vida hipócrita e vingativa”.

Jorge Semprun deslumbra o leitor, atordoado com tanta lucidez em meio à incandescência de um ódio que rompe os diques. De capítulo em capítulo, quanto mais se adensa o mistério em torno daquela reencarnação do assassino do contestador do stalinismo e sua violência sanguinária e bestial, mais imagens lancinantes e gravadas e fogo e frio metal desfilam, macabras. Insuperável é o capítulo em que o velho marxista que vira esboroarem-se na prisão stalinista todos os seus sonhos de liberdade recita Mayakovsky e Essenin enquanto de sua janela contempla o circo de uma parada na Praça Vermelha. Verifica como a revolução estética foi esmigalhada pela censura, pela denúncia de “formalismo”, “cosmopolitismo”. Constata que Le Corbusier não construiu a Sede dos Sindicatos em Moscou. Que Carlitos e Picasso foram banidos. Que a Revolução que ia dinamitar toda a noção de classe criou uma nova classe odiosa de cosmonautas, bailarinos e alto funcionários da burocracia estatal, o esporte, o Sputinik e os expurgos para os arquipélagos Gulag massacrando o cinema de Eisenstein, “a batalha de ideias, o choque das ideias e da realidade, a liberdade de desacordo dentro do objetivo comum”. Tudo desfilando com cartazes com dizeres como “A Saúde é a Riqueza do Povo” e “Respeitar as Normas é Respeitar-se”, formando uma maré humana que ondearia sob o Mausoléu (de Lenin), diante do imundo chapéu de feltro de Leonid Brezhnev”.

E novamente não o espectro, mas a presença vívida de Trotsky se impõe, não como lembrança de um passado amordaçado, mas de um futuro que é preciso forjar de novo: a Revolução soviética é um câncer que se multiplicou no corpo da nação e do povo russos. A tarefa inadiável é combater os aparelhos estatais soviéticos: não só a Revolução era uma tarefa permanente. Ela não estava sujeita à “dialética” oportunista e bajuladora dos que queriam o poder a qualquer custo: o culto à personalidade de Stalin podia ser visto sob um prisma “dialético” – podia ser útil ou nefasto, conforme os ventos que soprassem do Politiburo.

É nas páginas abrasadoras em que ele propõe o combate à Rússia mumificada e envilecida de nossos dias e de seu regime podre como a única consciência revolucionária contemporânea, que Jorge Semprun atinge um sopro épico dificilmente igualável pela literatura política deste século.

É a justificação do filho do velho comunista da Alemanha Oriental que vê na URSS “a injustiça, a mediocridade burocrática, uma sociedade de classes de um novo tipo que nem Marx podia prever...”

Obstáculo para a consolidação da democracia e da justiça, os Estados da degenerescência soviética são apenas (a redução da classe operária) “a inerte produtora de uma mais valia manipulada pela burocracia... No (campo de concentração nazista) de Buchenwald, em 1940, 1941, você lutava para preservar o Partido, para manter aberta uma perspectiva. Molotov vinha a Berlim, brindava à saúde de Hitler, à prosperidade do Terceiro Reich, Stalin assassinava comunistas alemães da oposição e denunciava outros à Gestapo e Ulbricht fazia carreira sobre um monte de cadáveres”.

A Segunda Morte de Ramón Mercader compõe, com A Reivindicação do Conde Don Julián e Réquiem por um Caudilho de Juan Goytisolo, o grande tríptico da literatura espanhola de exílio mais vibrante, mais pertinente e mais perfeita sobre os fenômenos gêmeos do franquismo e do stalinismo. Não é possível desconhecer estes livros e falar seriamente sobre literatura e política em nosso século. Nem meditar sobre Franco, Stalin, Primo de Rivera e Trotsky sem percorrer estas páginas magicamente devastadoras em sua sinceridade, melancolia, sarcasmo e paixão, entranhadamente espanholas, como se a lucidez da Espanha falasse, por momentos, por toda a consciência do mundo.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Um marco na literatura política do século .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.