Esperando Godot

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1961/01/15. Aguardando revisão.

Um dos diálogos de Esperando Godot poderia resumir a reação de grande parte do público que assiste a essa peça ou a lê:

“Nesse melo tempo, nada acontece,

Você acha enfadonho?

Um pouco. Nada acontece, ninguém chega, ninguém vai embora, é horrível”

Essa atmosfera voluntariamente imprecisa faz-se sentir desde as indicações iniciais: o cenário restringe-se a “uma estrada rural, uma árvore” e o tempo durante o qual se desenrola essa tragicomédia, como a define o próprio autor, é “durante o anoitecer”. Dois mendigos, Vladimir e Estragon (que se chamam mutuamente de Didi e Gogo), executam uma série de ações inúteis e trocam impressões desconexas sobre vários aspectos de suas vidas limitadas, enquanto esperam Godot. Nada se sabe sobre esse personagem, que no decorrer da peça envia duas vezes um Menino para dar o recado de que ele, Godot, não virá hoje. mas amanhã, sem falta. Mais tarde, únicos personagens que contracenam com os dois vagabundos, surgem Pozzo, um homem, Lucky, um ser humano que Pozzo utiliza como cão atando-lhe uma coleira aо реscoço e dando-lhe ossos para comer. A cena final é idêntica à primeira, nada muda, no decurso de dois atos e de um caudal imenso de palavras trocadas sem um propósito definido. É natural, como relata Jean Anouilh, comentando a estreia dessa obra no Théatre de Babylone, em Paris, em 1952, que o público se sentisse confuso e intrigado, já que não lhe são dadas pistas para compreender o que parece, à primeira vista, um quebra-cabeças sem solução. Alguns jornais londrinos, chocados com o clima de absurdo que predomina em toda a peça, acusaram Samuel Beckett, seu criador, de querer meramente ferir a sensibilidade do público, insultar-lhe a inteligência, apresentando-lhe durante duas horas uma sequência de episódios idiotas, propositalmente desprovidos de qualquer intenção reconhecível como tal. Cremos, porém, que seja possível ler entre as linhas de Esperando Godot reconhecer, em meio a essa selva de conceitos e caótica confusão de frases, um fio condutor, uma continuidade lógica, embora interrompida e não levada à sua conclusão final. Sobretudo, parece-nos que Beckett expresse por meio das situações absurdas de sua tragicomédia, o absurdo da tragicomédia humana, em sua nudez total, vista sob a luz sutil de uma inquietação religiosa marcante em toda a obra. Recapitulando certos trechos de diálogos podemos, assim, restabelecer uma constante do pensamento becktiano: por exemplo, quando Vladimir, o mais especulativo dos dois maltrapilhos sem rumo, monologa, examinando atentamente o próprio chapéu: “A esperança prolongada faz adoecer - o que? Eu me sinto aliviado e ao mesmo tempo aterrorizado...”. Um dos ladrões foi salvo. Por que crer só em um dos quatro Evangelistas, que fala da salvação do ladrão? “A salvação a que ele se refere, como ele esclarece logo depois, é a salvação da morte. Da mesma maneira, Estragon, ar ser despertado violentamente pelo companheiro, desperta, conforme indicação do autor, para o horror da situação em que vive”. Como veremos, todas as aparentes digressões de Beckett são impregnadas de um profundo simbolismo religioso: quando Pozzo, já cego, volta à cama, Vladimir vê no seu desamparo, no seu desespero, a humanidade inteira e grita como que num acesso de lucidez: “Não percamos tempo com conversas inúteis! Façamos alguma coisa enquanto é tempo, não é todo o dia que nos sentimos pessoalmente necessários. Esses gritos de socorro são dirigidos à humanidade inteira, mas neste momento, neste local, a humanidade somos nós, queiramos ou não. Devemos agir da melhor maneira possível antes que seja tarde demais!” Como em outro instante ele utiliza uma imagem barroca para referir-se ao gênero humano, que “procria à beira do túmulo”, a luz brilha um só instante e depois a noite cai novamente. No século das explosões atômicas do progresso tecnológico, do choque de ideologias politicas transformado na “guerra fria”, em que vozes subterrâneas ne ergueram para relatar a angústia do homem no século dos campos de concentração, de Hiroshima do desmoronamento das religiões notado por Moravia por Graham Greene, no Oriente e no Ocidente, Beckett vem acrescentar seu testemunho pessoal, o testemunho da sua consciência diante do absurdo, aos depoimentos de Camus, de Simone Weil, de Kafka, de Anne Frank, de Brecht e de Ionesco. Muitas vezes o método que ele utiliza para refletir esse absurdo é o mesmo que do autor de As Cadeiras e A Cantora Careca e que era já o que Cervantes adotara para retratar Sancho Panza: o acúmulo de provérbios, de lugares-comuns, utilizados sem propósito e da maneira mais inoportuna possível. No entanto, até mesmo do longo monólogo de Lucky – único momento em que o homem-cão fala – pode-se extrair uma frase, não terminada e interrompida por palavras soltas repetidas de maneira irritante, como um disco quebrado ou como o discurso de um louco: “Dada a existência de um Deus pessoal, de barba branca, que fora do tempo, das alturas da divina apatia, do divino amor ama a todos nós com algumas exceções, por razões desconhecidas, e sofre com os tormentos dos que estão imersos no fogo eterno, é indubitável que o homem, apesar do progresso obtido...”.

Esses diálogos ventilam vá rias possibilidades de reação, várias atitudes, perante o fenômeno religioso do conhecimento de Deus: a do ceticismo, quando os mendigos, cansados de esperar Godot, decidem enforcar-se, mas decidem não fazê-lo, “роr ser mais seguro não fazer nada”, logo depois mencionam, de forma vaga, o tema da Fé: “o que foi que Godot queria de nós? Ah, nada de definido, uma espécie de oração uma súplica vaga”.

Há uma crítica social veemente, velada sob a alegoria do homem que utiliza outro como seu cão e o maltrata de maneira brutal e cruel, da mesma maneira que a simbologia do homem transformado em animal é bastante semelhante à simbologia de Kafka, em A Metamorfose e de Ionesco em O Rinooceronte: o ser humano degrada-se, sendo infiel a seu destino mais elevado e por perder a consciência de ser humano, isto é: representar o elo entre o animal e a Divindade, é relegado ao nível bestial do instinto, do infra-humano. A invocação dos mendigos loucos de Beckett é a de toda a humanidade presente, que em meio aos totalitarismos do Estado, à desumanidade do homem para com o homem, à ausência de sentimentos religiosos ou simplesmente de bondade entre os seres humanos, exclama, como Estragon: “Num instante tudo desaparecerá e ficaremos sós novamente, no meio do nada!”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Esperando Godot .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.