A Rebelião Cultural da Juventude Russa. I - A herança de Kruchev
Os jornais brasileiros refletiram toda a mesma preocupação básica da imprensa mundial ao comentar a queda recente de Kruchev. De fato, a deposição do Premier soviético só foi analisada sob o seu aspecto político, seja sobre os que utilizavam a terminologia da “direita”, considerando que houve um legítimo golpe de estado militarista na URSS, seja pela “esquerda” que justificavas eu afastamento sumário pelos erros cometidos no planejamento agrícola e nas relações com a China de Mao. Não se publicou uma única linha sobre a política cultural seguida por Kruchev e as suas repercussões no “degelo” do qual Evtuchenko foi um expoente vivo até nos países do Ocidente.
É sabido que na União Soviética se trava uma acirrada batalha entre os “chineses” e os “revisionistas”, entre os “conservadores” e os “progressistas”. Ignora-se, porém, até que ponto – crucial – esse choque se estende ao campo da arte e da cultura, dividindo principalmente os milhões de jovens russos dos representantes oficiais da “linha dura” no setor da Kultura. Como se verificará, porém, facilmente, as manipulações do Presidium com relação à liberdade criadora e às diretrizes impostas aos literatos, pintores, diretores de cinema e compositores têm uma raiz mais do que ideológica, pois é eminentemente política a sua razão de ser.
Defrontam-se assim os que defendem uma arte puramente fotográfica, realista, otimista e os que, ao contrário, desejam maiores contatos com a arte do Ocidente, que saúdam o jazz e a arte abstrata como conquistas artísticas do nosso século> O lado “reacionário” da arte russa compõe-se na esmagadora maioria de medalhões sessentões, embalados pela arte do “realismo socialista” da era stalinista: figuras de heróis soldados ou camponeses, pintados de forma grandiloquente e com um realismo que “só falta falar” para utilizar a nomenclatura burguesa que é paradoxalmente comum aos bem-pensantes do Ocidente capitalista e do Marxismo soviético. Sartre colocou-se, durante o último congresso dos escritores realizado em Moscou, decididamente a favor da coexistência cultural entre regimes rivais, foi mais longe até, preconizando o confronto desafiador das duas concepções de arte e não escondendo sua adesão aos que preconizam a libertação da criação artística. Fundamentalmente, as artes plásticas na Rússia estão com um atraso de quase 100 anos com relação ao Ocidente, pois foi em 1874 que Claude Monet causou sensação em Paris com os primeiros quadros impressionistas da época e que foram recebidos com chacotas e repulsa pelos acadêmicos de então. O próprio Evtuchenko declarou que concordava com Cocteau quando este afirmava que os artistas viajam de automóvel e o público de ônibus, por isso havia esse desnível cultural entre a arte, que é sempre de vanguarda, e o grande público consumidor, numa corrida intelectual tão desigual quando a da lebre e da tartaruga.
Embora a Rússia nunca tenha tido grandes pintores (os povos, como os indivíduos, têm vocações definidas) duas figuras exponenciais da Arte contemporânea são dela originárias: Kandinsky e Chagall e logo no início da Revolução de outubro os grupos que hoje buscam a liberdade para o artista predominaram durante certo tempo, sendo logo depois submergidos pela maré avassaladora dos que creem na arte bien rangée e que se abstém de descrever situações tristes, deprimentes ou que não se coadunem com um conceito panfletário da arte. Rebelando-se contra esses cânones filistinos, Mayakovsky chegaria ao suicídio, decepcionado com os rumos artísticos de uma Revolução que surgira como esperança não só de justiça social como também de rumos novos para a arte de uma geração que rompera as estruturas feudais e o tsarismo:
“Nos corações revolucionários a tempestade cessou
E toda a imundície da União Soviética ressurgiu do lodo.
E por detrás das costas da URSS
Insinuou-se o sorriso grotesco
Dos pequenos burgueses filisteus.”
Num país vastíssimo em que literalmente milhões de pessoas têm por hábito ler livros, ir a concertos, ao teatro, ao ballet, a participação muitas vezes apaixonada da juventude pelas questões culturais constitui uma das facetas mais agradáveis e extraordinárias da vida russa – no entanto, a erradicação do analfabetismo, o aumento fenomenal do nível cultural da massa trouxe como resultado uma efervescência constante das novas gerações crescidas sob um regime comunista. O poeta Evtuchenko – medíocre como poeta talvez, mas significativo como expoente dessa fermentação – conseguiu simbolizar o inconformismo de milhões que se rebelavam contra a cloroformização cultural do stalinismo. Durante algum tempo, parecia realmente que os jovens que o saudavam nas praças de Moscou e de Leningrado lograriam persuadir Kruchev da necessidade de desestalinizar também a Kultura. Evtuchenko e Vossnessensky tiveram permissão para ir ao estrangeiro, permitiu-se a publicação de livros altamente críticos do governo como Degelo, de Ehrenburg e Nem só de Pão Vive o Homem, de Dudintsief. Cholokov, autor de Plácido Flui o Dom e que vivera isolado durante o período de Stalin, aderiu à causa dos jovens e circulou por toda a União Soviética a sua frase de que “Os nossos escritores são almas mortas. Preferem uma existência fácil e segura à tarefa de contribuir para a formação de um novo homem”. Sartre, regressando de Moscou, concedia a entrevista eufórica ao jornal parisiense Libération em que dava as boas-novas: Kafka ia ser traduzido, preparava-se uma montagem de Brecht (quase inédito na URSS) e o cinema dava sinais claros de reintegrar-se nas correntes do século XX. Finalmente o Papa do Existencialismo em seu diálogo com o jornalista Paus Morelle afirmava: “Em conclusão, muitos russos parecem realmente convencidos de que a verdade na arte não é nem exclusiva nem limitativa e que ela se nutre de todas as verdades desde que essas verdades sejam verdadeiras.” (Sem o saber, Sartre tornava válidas para a Rússia da década de 1960 as reivindicações de Henry James formuladas pouco menos de um século antes ao exigir em seu magistral ensaio The Art of Fiction a mesma liberdade e a mesma totalidade da experiência criadora).
A esperança dos que se opunham à tutela do Estado no setor da cultura bradaram vitória quando depois de luta feroz contra os acadêmicos fossilizados a ala jovem da cinematografia russa outorgou o prêmio do Festival de Moscou ao revolucionário e belíssimo Fellini 8 ½, arrancando lágrimas e aplausos de muitos integrantes do júri e do público presente.
Mas logo se dispersaram todas as esperanças e Kruchev, que abalava profundamente a União Soviética com suas revelações e decisões espetaculares, como a condenação violenta de Stalin no XX Congresso e a proibição imposta à Parternak de receber o Prêmio Nobel, fazia explodir agora uma bomba que culturalmente teria efeito tão devastador quanto a do hidrogênio no setor político. De fato, mal tinham ecoado na França as palavras de Sartre e a autobirografia de Evtuchenko publicada no L’Express quando a diatribe de Mr. Kres soou, no Pavilhão Sverdlow do Kremlin, diante das figuras mais representativas da Kultura soviética. Descrito pelo escritor Tijonov como “um evento histórico”, esse discurso constitui um verdadeiro “pronunciamento” contra qualquer tentativa de se criar uma arte experimental, inovadora, pessoal e que não fosse inteiramente acessível ao povo e presa à ditatura da temática social do “realismo soviético” de que tivemos uma amostra na última Bienal de São Paulo. A arte abstrata, as novelas e poemas que não glorificassem o Estado, o cinema de vanguarda soviético premiado no Festival de Veneza – tudo passava a levar uma existência próxima a dos cristãos durante a Roma dos Césares: subterrânea, nas catacumbas que modernamente assumem a forma de poemas mimeografados e passados de mão em mão, sous le manteau, como dizem os franceses.
O Diktat categórico de Kruchev, impondo severíssimas restrições aos artistas, não constituiu, porém, propriamente uma surpresa, só chocando pela violência. Não sendo exatamente um tímido, Kruchev em seus frequentes desentendimentos com os artistas não procurara ocultar a ortodoxia de suas opiniões com relação ao que deve ser a arte. Visitando uma exposição experimental de arte abstrata, ele deu largas à sua origem campônia e, como diria pitorescamente o carioca, “engrossou, apelando para a ignorância”. De fato, declarou, depois de infignar-se com os quadros exibidos:
“Parece que uma criança sujou as calças e depois espelhou com os dedos as fezes sobre o quadro”.
Acusava-se os pintores de terem buscado inspiração “nas latas de lixo” e não poupava invectivas também contra o jazz que começava a se espraiar principalmente entre a juventude russa. Kruchev declarava não compreender como era possível, com tão lindas canções como a “Internacional”, a “Varsoviana” e outras, aceitar o jazz “que dá vômito e dores de barriga a quem o escuta”...
Nos próximos artigos em que analisaremos a guerra interna que se processa na União Soviética de hoje entre os jovens e a ala conservadora e estultificada da Kultura oficial soviética, focalizaremos detalhes extraordinários desse choque de gerações e de concepções, dessa insurreição crescente contra o obscurantismo cultural, contra a atitude inquisitorial no campo das artes. Já Milovan Djilas, ex-vice-presidente da Iugoslávia, denunciara em A Nova Classe a semelhança entre as diretrizes culturais de Stalin e do Nazismo na Alemanha, ambos tendo da arte uma concepção vitoriana, insurgindo-se contra a arte moderna a ponto de Hitler ter mandado organizar em Munique uma exposição chamada “Arte Degenerada” (Entartete Kunst) que abrangia – oh, ironia do tempo e miopia dos totalitarismos – os grandes mestres da pintura mundial, desde Chagall, Kandinsky, Van Gogh, Gauguin até Braque, Matisse, de Chirico e Munch.
Evidentemente, os sucessores de Stalin, sejam eles Kruchev e Brejnev ou quaisquer outros, não conseguirão fazer regredir a arte na União Soviética ao ponto da aquiescência stalinista que atingiu seu ápice com a declaração bajuladora de Yaroslavsky durante o 18º Congresso do Partido Comunista da URSS: “O camarada Stalin inspira os artistas, dá-lhes ideias guiadoras... As resoluções do Comitê Central do Partido Comunista Soviético e o relatório Jdanov (Ministro da Cultura) proporcionam aos escritores soviéticos um programa de trabalho já completamente preparado”.
Já Brecht, com vitriólica ironia, se insurgira contra esses cânones esterilizadores da arte declarando no “Neues Deutschland” (Nova Alemanha, publicado no setor comunista de Berlim):
“Levando em conta as conveniências administrativas e a qualidade dos funcionários disponíveis, seria então mais simples elaborar modelos definidos, sobre os quais se baseariam as obras de arte. A única tarefa dos artistas seria então a de adaptar seus pensamentos ao padrão estabelecido, a fim de que”tudo corresse direitinho”. Mas então, se utilizarmos esse método, o material vivo de que precisamos para criar arte será transformado em material bom unicamente para ser enterrado. A arte tem as suas próprias regras. O Realismo, visto do ponto de vista socialista, constitui, na verdade, um amplo e grandioso princípio artístico, mas a adoção de um estilo pessoal e de um ponto de vista individual não o contradizem, mas, ao contrário, só ajudam sua causa. A campanha contra o Formalismo não deve ser considerada simplesmente como uma tarefa artística, mas também como uma tarefa de conteúdo político. Constitui realmente parte da luta das classes trabalhadora a busca de soluções autênticas para problemas sociais autênticos e é por essa razão que soluções falsas no terreno da arte devem ser combatidas também como soluções falsas do ponto de vista social e não somente como erros de valoração estética”.
Mas de nada valiam os argumentos do carneiro diante do lobo na fábula de La Fontaine e nada significaram os argumentos dos demais países comunistas, principalmente a Polônia e a Iugoslávia, ou de Togliatti (chefe do PC italiano) que se insurgia contra os ditames culturais de Kruchev. Tudo que não fosse compreensível para o povo (isto é, para ele, Kruchev) devia ser proibido. De certa forma, ele poderia exclamar como Luís XIV: “L’État, c’est moi!”
************
Nota do editor: Decidi não transcrever os quatro artigos subsequentes que LGR publicou no Correio da Manhã, visto que eles se detêm em muitas datas e minúcias do que estava acontecendo naqueles anos na URSS. Como outros artigos de LGR abordarão esses temas em anos sucessivos, pareceu-me mais interessante a análise que nosso crítico fez da situação político-cultural da URSS nos anos subsequentes. Transcrevemos abaixo, contudo, os títulos e as datas de publicação dos referidos artigos:
A Rebelião Cultural da Juventude Russa. II. O bilhete de loteria da Ehrenburg e o fim do brevíssimo “degelo” - 14 de fevereiro de 1965;
A Rebelião Cultural da Juventude Russa. III. Kruchev corrige Marx e defende os “bem-pensantes” burgueses - 21 de fevereiro de 1965;
A Rebelião Cultural da Juventude Russa. IV. A resistência de Sholochov e Ehrenburg; triunfo de Evtuchenko - 7 de março de 1965;
A Rebelião Cultural da Juventude Russa. V. Chopin decadente; o jazz inimigo do povo; e Gramsci - 14 de março de 1965.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {A Rebelião Cultural da Juventude Russa. I \textbackslash- A
herança de Kruchev},
booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
os despotismos e os totalitarismos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {12},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/04-urss/01-a-rebeliao-cultural-da-juventude-russa-i-a-heranca-de-kruchev.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Correio da Manhã, 1965/02/07. Aguardando revisão.}
}