A reafirmação feminista de Dalton Trevisan

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1982-10-23. Aguardando revisão.

A confirmação surpreendente dos quase 20 livros já publicados de Dalton Trevisan é a de que, desde Adolfo Caminha, nenhum autor brasileiro se mostrou mais coerente e convincentemente feminista em nossa literatura. É claro que se os 18 volumes anteriores acentuavam a guerra letal entre o homem e a mulher, a crueldade dos filhos e cônjuges com os paus e companheiros velhos, agora em Essas Malditas Mulheres (Editora Record) os objetivos do magnífico contista paranaense, debruçado sobre a sua minúscula Dublin, Curitiba, estão sendo obtidos de maneira mais concisa, telegráfica, impessoal. Não são diálogos propriamente entre esta moça presumivelmente jovem, bonita, desesperada e seu confessor, amante à força, saldador de pequenas dívidas dela e no fundo o agente (permitido contra a relutância dela) de uma concupiscência sempre ativa. Tudo isso nada mais é do que a expressão do egoísmo feroz masculino simultaneamente com a coisificação da mulher. Histórias de amores contrastados, súplicas, vislumbres da sua própria condição espezinhada em seus mínimos direitos humanos – nada comove a lubricidade de quem quer sugar a figura bonita e aflita: a mulher é apenas um doce sabor logo transformado em bagaço pela inescrupulosidade absoluta de seu pseudo-interlocutor.

É típico destes diálogos que eles propriamente nem começam nem acabam, são fatias a esmo cortadas ao vivo do Tempo e mostram a incomunicabilidade intrínseca entre os dois interlocutores. As mãos esmaltadas, por exemplo, servem como isca estética para os homens e quando inutilmente a mulher lembra que “estas mãos também lavam e passam” o desejo libidinoso de servir-se delas para fins eróticos ignora a utilização da mulher no áspero trabalho útil para comentar apenas “tão macias”. A mulher? É o cãozinho a erguer as patas diante da Voz do Dono. Pior ainda: a mulher não existe para o homem insensível e que vê nela apenas o alvo mais ou menos imediato de, por lábia dependência financeira ou falso enternecimento por seus sofrimentos, levá-la para a cama. Desdêmona sempre a priori condenada, às vezes por um ciúme que não existe, mas serve de pretexto para um Otelo que quer livrar-se dela e o inventa, a mulher tem, mesmo dilacerada pelo amor, lampejos da sua própria inexistência diante do mundo masculino, cifrado neste amado desonesto e que literalmente não a leva a sério. É quando ela grita ou quando a sua consciência a leva, lucidamente, a reconhecer: ” E você não vê que eu existo?”

Ao longo de todos os diálogos entre a mulher e o homem dessa maravilhosa coletânea que é Essas Malditas Mulheres, Dalton Trevisan capta, na realidade citadina brasileira, aquelas figuras estáticas dos “milagres” medievais de Todo-mundo e Niguém e que foram depois absorvidas até pelo drama inglês do Everyman e pelo escritor austríaco Hoffmansthal: a manutenção eterna do status quo. No entanto, a figura feminina vem-se modificando nos últimos contos de Dalton Trevisan e nestes ela adquire uma vaga noção de que é usada pelos homens, é um instrumento do prazer deles e paralelamente nela amadurece um conceito novo que revela o machão não mais, como antigamente, o macho potente, vigoroso, mas, dado novo da sua evolução como mulher pensante, sim como aquele que não age eticamente: ser macho não é só ser um Don Juan curitibano: é ver o próximo, neste caso a mulher, como o outro, digno de respeito tanto quanto os companheiros de perseguição às saias. Ser macho é cumprir com a palavra dada, é não ver a mulher apenas a fonte mais rápida de atingir o prazer, é simplesmente ter caráter. Essa transformação do conceito do homem como Mestre indisputável, inquestionável, lhe vem do exercício de uma profissão, início da sua longa libertação.

A mulher sem rosto das histórias ímpares que aqui dialoga sempre com um João eternamente lúbrico, avarento, egocêntrico, é uma Maria moderna, não presa mais à contemplação e lamentação do estado de coisas em que o machismo a prende, mas uma Maria que exerce uma profissão, que decide mais ou menos acertadamente sobre a própria vida. Há instantâneos tão fiéis quanto deliciosos do apelo a resoluções extremas: o pozinho mágico das drogas que amigas cínicas lhe propõem como saída para um paraíso artificial, efêmero, mas eficaz enquanto dura. Há a busca do saravá, da umbanda, como remédios eficazes para os males do amor não correspondido, a indolente e logo abandonada procura, na leitura dos versículos da Bíblia, de um caminho e um apoio moral para a sua desolação. E, se tudo falhar, a entrega à prostituição mais reles, antepasso de um suicídio gradual, mas trágico: quem nunca foi (um ser por si mesmo) como pode deixar de ser (aquilo que nunca lhe permitiram chegar a ser)?

As modificações são também as que se processam vindas do mundo de fora: “Curitiba não é a mesma”, ela constata, com a aparição aparentemente repentina de uma chusma de homossexuais: “O Ito aos beijos na boca com o soldadinho, o Marquinho sombreia o olho azul e pinta as unhas do pé. A puta velha do Nelsinho perseguindo meninos”, com o relaxamento dos costumes que permite a invasão de revistas pornográficas com fotos explícitas, a menção da palavra orgasmo, nem mesmo outrora sonhado pelas mulheres: “Mais uma coisa. Sobre orgasmo. Há mulheres que têm filhos, dormem com o marido a vida inteira, e nunca chegam ao fim. O macho é egoísta. Faz o que ele quer, bruto e apressado. Satisfeito, vira-se para o lado, ronca feliz”. Sem dispensar o toque humorístico com o qual Dalton Trevisan mescla o trágico com o grotesco, nas mais tétricas condições: “Conheci uma senhora que só atingiu o delírio depois do terceiro filho. Foi a maior alegria da vida. Era casada com um velho. Depois que descobriu, ficou insaciável. Até banho frio de assento ela tomava para acalmar a fúria”. Até os racismos – mais teóricos do que práticos – da pequena burguesia curitibana afloram: os japoneses (citados estranhamente com nomes chineses pelo autor), os negros, as polacas são os satélites dessa galáxia em que os brancos, homens, latinos reinam como astros-reis incontestáveis mesmo com as metamorfoses sobrevindas com o Brasil atual de relativa abertura política.

Autor plurivalente, porém, Dalto Trevisan não se limita a focalizar a escravidão da mulher, cidadã sem direitos, atrelada ao carro em desfile pomposo do Rei Príapo a enxotar com seu cetro portentoso as mocas incômodas do sentimento, da justiça, da liberdade, da pílula anticoncepcional, da ameaça sempre presente de uma crepuscular impotência a diminuir seu Reino, sem limites, da prepotência. Evidentemente que o deslumbrante autor paranaense alude a temas mais amplos.

Como já acontecera em contos de toda a sua longa criação, um enfoque condoído e patético dos velhos e sua degenerescência, física e/ou mental, atravessa todos estes racontti. Se já na Guerra Conjugal a megera e o monstro alternavam para tornar a vida da dois um inferno cotidiano, miúdo e sem saída a não ser pela morte, agora são quadros surrealistas de velha vaidosas, egoístas aos sofrimentos dos maridos paralisados por doenças graves como em “O Nome do Jogo”: a filha relata à amiga que, enquanto o pai era acometido de trombose, a mãe, “um caco de velha, vaidosa da cintura fina”, envolta nos shampoos e secadores do cabeleireiro onde passava horas e horas, preocupava-se em avisar a filha que não deixasse ir embora o médico (o tétrico doutor Alô), pois queria que ele tirasse a pressão dela. Da mesma maneira, no período de dieta do marido ela sente um arrepio de prazer maligno ao negar um figo cristalizado ao ancião reduzido à infantilidade do desejo ou à animalização do irracional: “Pescoço estendido de cavalo antigo no cocho.

A desumanização corre dupla: a mulher se queixa da estreiteza do apartamento que aceitou, deixando “a nossa querida casa”, irritada com o marido que perdeu a vista: “Quem manda ficar cego?” Igualmente o homem, carrasco da esposa, martiriza os filhos e a companheira conformada, ele “bem torto no travesseiro, pijama de pelúcia manchado de café com leite, a dentadura flutuando na boquinha torta”, a uremia o acossando nove vezes na noite insone: a degenerescência é o símbolo visível da despersonalização que torna a vida um mero fato biológico, um resto fisiológico do passado: “Na hora de assinar, o velhinho muito fraco, com aqueles óculos tortos: como é meu nome? Quem sou eu mesmo?”

Quem já foi o Rei da Casa, o Imperador Oculto do Submundo das Boates de Prostituição Barata de Curitiba faz, agora, contra a vontade, um strip tease do seu vigor, da sua inteireza, até das suas chamadas faculdades mentais. São velhos estoicos que obra na cama “quando abusam do virado com torresmo”, que se sentem um estorvo para os válidos ao seu redor, incapazes de vontade própria, morto o movimento dos braços atingidos por artrites deformantes, a monologar consigo mesmos: “Preciso de quem me ajude a viver”. Seria inútil enumerar os casos trágico-hilariantes: do velho que com medo de choque tomava banho de chuveiro vestido de touca plástica, luva e sandália. Ou seria mais lancinante o acúmulo de sal que a velha enlouquecida fazia pela casa inteira, temerosa da guerra, quando o sal desaparecia de todos os armazéns?

Ensombreceu a visão filosófica da vida que Dalton Trevisan projetava em seus livros. Se antes havia cenas de vaudeville farsesco, cenas que diluíam o trágico com simultâneos enfoques hilariantes, agora parece predominar, ao lado da libido kitsch dos sátiros encanecidos e repelentes, a constatação tão cara ao movimento barroco de quem leu o Eclesiastes e proclama a sua verdade segundo a qual “Tudo é pós e vaidade” e de que não há vencedores nem vencidos nessa luta de classes transferia para uma feroz guerra dos sexos. O derrame cerebral, a paralisia dão cabo das tiranias domésticas dos “reis da casa”, os humildes no final se libertam da canga de sofrimento ou pela morte de seu algoz ou pela solidão que lhe advém como prêmio de sua viuvez.

Emergem, então, nitidamente, desta vez com uma insistência não encontrada nos livros que precederam este, os sinais de uma tímida, lenta, conscientização da mulher. Dalton Trevisan não faz demagogia para fins políticos: está acima dos diagnósticos e terapias ideológicas. Cava mais fundo e, parece-me, vê na mulher jovem um elemento subversivo ao tomar consciência de que ela também tem direitos, embora milenarmente pisoteados pelo homem. Sem descer e pregar um feminismo de comício para arrebatar votos, Dalton Trevisan entrevê na nova mulher a modificadora de uma estrutura social injusta. Ele, indo muito além do político, indaga sobre as possibilidades potenciais da mulher como nova coadjuvante da condição humana. Quem sabe ela será possivelmente o agente da sua atenuação, em prol de uma sociedade menos hedionda e monárquica, erguida para o Rei Homem, senhor único de todas as verdades e utilitarista na manutenção de um estado de coisas que favoreça unicamente o seu prazer.

Presumivelmente agnóstico, o autor paranaense não deixa entrever entre uma linha e outra um Deus ou um Céu, uma vez findo o Inferno da vida. Mas se seus livros antes refletiam imagens desse microcosmo humano que é Curitiba no seu estar-no-mundo, Essas Malditas Mulheres tiram holografias de um mundo dinâmico, sem a placidez aparente do mundo de ontem. Ao contrário: com o dinamismo da mudança e das consequências, para certos grupos catastróficas, que a mudança traz. Como sempre, mesmo usando os mesmos cacos de vidro coloridos vistos contra a luz, Trevisan consegue imprimir-lhes um movimento que tudo altera, banindo a monotonia e sugerindo relações novas, imprevistas, entre os componentes desse seu universo. Um cosmos fundamentalmente aristotélico, em que o homem é um animal social, e portanto suas relações com os outros é que determinarão as suas qualidades de justiça, de ternura, de autenticidade, de liberdade – ou seja: restituindo-lhe suas características mais entranhadamente humanas.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1982) 2023. “A reafirmação feminista de Dalton Trevisan.” In Grandes contistas brasileiros do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 10. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.